Uma história leve, para todos os públicos, usando a figura da Deusa do amor e seus mais profundos sentimentos como personagens principais.

Ter todo o tempo do mundo nas mãos e ser confrontada com a doce imortalidade pode parecer um mar de vantagens para a maioria dos seres comuns. Eu também costumava pensar que sim, e desfrutar do privilégio da minha própria deidade em total absorção e egoísmo.

Muito provavelmente uma das únicas coisas que os deuses temem é a perda de poder e influência sobre os mortais, seja por ego, mesquinhez ou simplesmente porque é divertido. E eu sempre apreciei o quão divertido era! Ser cobiçada pela maior parte dos mortais, estar sempre radiante e coberta de luxos, ter quem eu quisesse em minha cama, costumava ser o ponto alto dos meus dias. Até que tudo mudou.

Quando Dahak ascendeu, nós tivemos medo, porque pela primeira vez de maneira concreta encaramos o abismo de nossa própria mortalidade, mas eu tenho que confessar que não me preocupei tanto, porque sempre tive fé nas capacidades daquela guerreira implacável, que se tornou uma das minhas favoritas. No final das contas, sequer foi ela quem deu conta daquele ser asqueroso que ameaçou destruir todo o panteão em nome de um novo reino. Mas sim, foi ela, quem surpreendentemente se tornou nossa próxima ameaça.

Egoisticamente eu protestei e a maldisse por semanas, mas eu jamais poderia dizer que não a entendia. Não era justo o que minha família tentou fazer. Ironicamente sempre fui reconhecida entre eles como uma deusa fútil de inteligência questionável, mas aparentemente fui uma das únicas lúcidas ou suficiente para ver que tudo que circundava Xena e seu bebê era uma profecia autorrealizável. Ela só passou a significar o nosso fim a partir do momento em que quisemos – ou a verdade seja dita, minha família quis – o fim dela. Zeus jamais daria ouvidos a mim, e mesmo após a morte dele – e eu digo isso com um pouco de escárnio, pois ele era uma bela desculpa esfarrapada em forma de pai – Athena se recusou a ouvir qualquer um que não concordasse com ela. Tamanha grandiosidade para quem se dizia a deusa da sabedoria.

 Eu nunca tive uma chance sequer de ser ouvida, ainda que tenha tentado, dia após dia, e após isso me conformado em apenas tentar me manter afastada do fogo cruzado entre Xena e a maior parte do panteão. Todos acharam que era porque eu, assim como Xena, era uma mãe e na qualidade de tal, jamais permitiria que alguém machucasse o meu Cupido, por mais crescido que ele estivesse. E isso era verdade até certo ponto. Mas mais do que a empatia pela maternidade de Xena, o que me fez temer e sofrer tanto com essa guerra, eram meus sentimentos por ELA.

Enquanto acreditei na minha família, pensando ser uma situação em que as únicas escolhas eram matar ou morrer, eu sofri. O pensamento de Gabrielle sofrer uma morte precoce no meio daquela guerra era o suficiente para me fazer estremecer, e ainda que eu soubesse que o alvo era apenas Eva, eu sabia que aquela barda teimosa faria QUALQUER coisa para proteger aquele bebê e Xena. Eu entendia isso melhor do que ninguém pois sabia a dimensão do amor que ela sentia. E no final das contas, eu passei 25 anos acreditando que isso de fato havia ocorrido, graças ao brutamontes sem cérebro que chamo de irmão até hoje.

Deuses sentem luto? Eu não sei. Mas a tristeza que senti durante aqueles anos deve ter esse nome. Era amargo, sobretudo por engolir em silêncio tudo que se passava dentro de mim, para não ser motivo de chacota entre os meus fiéis e entre minha família.

Mas tudo bem, eu podia viver com o silêncio. Eu estava acostumada a ele já fazia algum tempo e o motivo nem mesmo era a covardia – que admito, foi minha motivação em mais de uma ocasião – mas por puro e simples respeito a algo que eu via como a representação mais pura e palpável do amor.

Como deusa do amor, bastaria um abanar dos meus dedos e eu poderia ter QUALQUER mortal. Mas não ela, jamais ela.  Eu jamais ousaria bagunçar os sentimentos de alguém que despertou em mim o que EU estava acostumada a despertar nas pessoas. Ainda que platônico e jamais recíproco, aquele sentimento era um dos meus bens mais preciosos. Era a minha pequena fagulha que cresceu através dos tempos, que havia começado com tédio e irritação por todas as vezes em que ela invadiu meus templos, bagunçando tudo ou simplesmente tentando me persuadir a desfazer meus esquemas, mas aos poucos, aquele brilho nos olhos e o amor e respeito que ela nutria pela vida de todos os seres, por mais frágeis ou débeis  ou ridíííículos que fossem, me mostrou o verdadeiro significado do sentimento que eu deveria conhecer melhor do que todos os outros, mas sobre o qual eu estive enganada por tanto tempo.

Ah, Gabrielle. Você foi a primeira pessoa a me chamar de amiga. E você foi tudo que eu precisava há milênios.

Você nunca me venerou e tenho minhas dúvidas se alguma vez sequer me respeitou como deusa, mas você me ofereceu tudo que a mais sincera amizade poderia oferecer. E você entendeu e praticou o significado do amor como poucos mortais jamais conseguiram. Egoistamente eu invejei Xena em muitas ocasiões, mas nunca deixei de celebrar o sentimento único que vocês tinham.

Eu nem sempre fui correta ou tive coragem, e acho que como imortal, terei que conviver com o arrependimento disso por mais tempo do que eu gostaria. Quando ficamos sabendo que a suposta morte da guerreira e da sua adorável barda se tratou apenas de uma das muitas trapalhadas do meu irmão, eu celebrei por tantos segundos quanto fosse possível antes que Athena lançasse uma nova investida contra elas e sua agora crescida, filha renascida em Eli.

         Eu vi grande parte da minha família morrer e eu sabia que poderia ser a próxima, porque conheço a fúria de uma mãe cuja cria está em perigo. Ainda assim decidi ficar, e contra meus princípios divinos, ajudei Xena a chegar ao salão do monte Olimpo. Fui corajosa – ou traidora – o suficiente para me voltar contra minha família, mas não corajosa o suficiente para renunciar aos meus poderes e curar o alvo do meu afeto.

         Ares nem mesmo se importava com ela, e ainda assim o fez. Talvez esperando algum tipo de gratidão ensandecida que fizesse Xena cair em seus braços, mas ainda assim, o fez. Eu não.  E essa pergunta tem martelado há tanto tempo em minha cabeça toda vez que a vejo novamente. E se fosse eu? Será que hoje eu teria uma chance? Será que como mortal eu poderia vivenciar a experiência total do que significava ser humano, sentir dor, ter um karma, poder reencarnar e reencontrar as pessoas em uma nova página, sem uma história de fundo cheia de culpas, arrependimentos e ações questionáveis? Se eu fosse mortal, a visão de Gabrielle sobre mim seria outra? Se eu fosse mortal, eu sentiria com mais ou menos intensidade? Doeria menos ou mais?

 Mas nada disso faria diferença agora, porque eu fui covarde para não o fazer. E mesmo que o tivesse feito, as consequências para os demais mortais seriam devastadoras. Tivemos uma pequena prova disso quando perdi minha divindade para um projeto de imperador romano mentalmente instável, uma de minhas muitas ações inconsequentes em nome da luxúria. Nessa mesma ocasião, ainda que ébria por toda a influência que sofria, eu senti Gabrielle me repelir quando sem pensar, a beijei. Teria doído mais se eu estivesse sóbria, mas eu jamais a culpei. Ela sabia a quem seu coração pertencia e eu respeitava isso como respeitei poucas coisas na minha vida imortal.

E apesar de todas as nossas desavenças em diversos momentos de nossa história, eu também sempre respeitei Xena demais para ousar vocalizar qualquer coisa que pudesse gerar um problema, ainda que por muitas vezes eu silenciosamente a tenha recriminado por ter feito Gabrielle sofrer, seja por não reconhecer adequadamente o QUÃO INCRIVELMENTE MARAVILHOSA era a mulher que tinha ao lado dela, ou por ceder aos seus impulsos carnais com alguma desculpa esfarrapada em direção a qualquer outro alto, moreno, gostoso e mortal que aparecesse no caminho. E eu sei o quão hipócrita da minha parte é eu, logo eu, recriminá-la, mas ainda assim…

Não, eu não posso culpar Xena por isso porque no final, ela havia tomado o jeito o suficiente nesse aspecto para reconhecer que Gabrielle era tudo que ela precisava ao seu lado.

Mas eu a culpo por uma razão diferente. Eu a culpo por todas as vezes em que recentemente eu procurei o olhar de Gabrielle cheio de luz e esperança e só encontrei amargura e tristeza. Eu a culpo por todas as vezes em que vi aqueles olhos verdes cheios de lágrimas. Eu a culpo por a ter deixado e levado embora consigo toda a alegria, as histórias e o furor que inundavam a nossa Gabrielle.

Xena, sua mortal estúpida. Como você ousa ter transformado a garotinha inocente de Potédia, cheia de sonhos, imaginação e histórias numa guerreira formidável, e simplesmente deixá-la sem poder ver no que ela se transformou? Eu não sou mortal. Entendo poucas coisas sobre redenção e reparação para compreender inteiramente sua decisão, mas eu entendo de amor, porque pelos cabelos da medusa, eu SOU A DEUSA DO AMOR e Gabrielle, sem saber, me ensinou a amar.

O que eu entendo, é que você renunciou ao amor, em nome da vingança e é por isso que eu prometi a Gabrielle buscar até os confins do mundo um modo de reverter isso da maneira mais justa possível sem que isso traga sofrimento para 40 mil almas que honestamente, creio que não estão pouco se lixando para essa bobagem toda.

Gabrielle não sabe, mas Ares também está tentando ajudar. Dane-se se é pelas razões erradas. Estamos todos aqui pelas razões erradas. Eu, porque sou egoísta demais para ver Gabrielle sofrendo e não fazer nada, Ares, porque é egoísta demais para deixar Xena morrer em paz e Xena, porque foi tola demais para acreditar que sua redenção seria através da vingança e não do amor.

Mas tudo isso leva mais tempo do que qualquer um de nós gostaria. E enquanto buscamos uma resposta, eu precisava manter a chama no coração de Gabrielle viva, porque se ela apagasse, eu não conseguiria viver por toda minha imortalidade, com isso. Foi por isso que lhe dei o único presente tão sincero quanto meu amor, que eu poderia lhe ofertar. E ela aceitou. E é por isso que agora, Xena, a nossa barda pelo menos por essa noite, dorme um sono profundo no conforto e segurança do meu melhor templo enquanto carrega em seu ventre a perfeita mistura de vocês duas. Minha melhor criação, a partir de uma lágrima e de um fio de cabelo deixados para trás.

Por isso, quando finalmente acharmos um jeito de te trazer de volta, não seja estúpida demais para perder isso. Aposto que terá os seus olhos e as bochechas de Gabrielle.

Com amor,

Afrodite.