Capitulo I
por Fator X - Legado – Nem tudo é o que parece
– O que você quer?
– Ir com a Senhora. Não tenho esperanças aqui… Sou escrava, se me levar vos servirei. Tenho conhecimento nas artes da cura, sei cozinhar, não darei trabalho nenhum…
Xena olhava para a loura mirrada à sua frente sem querer acreditar que alguém em sã consciência desejaria segui-la, mesmo se tratando de uma escrava. Tinha uma reputação de invejar qualquer deus lascivo que vivia sob os domínios do Olimpo, de desfrutar dos despojos de suas conquistas. Embora que essa reputação fora construída em outros tempos, mesmo assim, era algo que se mostrava claramente nos dias de hoje, tanto aos olhos de seus exércitos quanto de seus conquistados. Não agia mais como uma fera descontrolada e sedenta de sangue. A escuridão era algo com que aprendera a conviver e a deixar em um canto escondido dentro de si. Hoje só se apresentava assim em batalhas e das quais valia a pena. Não gostava de se desgastar deixando que a ira desenfreada lhe tomasse o ser sem mais. Era profundamente doloroso passar dias se reestruturando em uma guerra interna para retomar novamente a paz de sua alma. Que ironia isso! Conquistou tudo que almejava por conta de sua inteligência e de seu terrível temperamento e inclinação para o sabor da morte. No entanto hoje esses mesmos sentimentos faziam-na morrer um pouco a cada dia por conta dessas lembranças.
– O que sabe de mim para achar com tanta veemência que tratarei você melhor do que qualquer outro que a compre em um leilão?
– Não sei, mas curvo-me diante de vós para que me leve. Não tenho mais esperanças de rever minha família. Sei que muitos foram mortos ou vendidos há muito tempo. Não sei onde estão ou se estão vivos. Sei que é uma conquistadora e tens um lugar em Corinto. Leio em pergaminhos sobre suas conquistas. Seguirei para onde quiseres ir de boa vontade, pois não tenho mais esperanças.
Xena olhava aquela pequena figura vestida em andrajos. Foi tirada de uma pequena cela que mais parecia uma jaula para guardar animais. Sabia que estaria ali por algum motivo particular de seu senhor. Ninguém colocaria uma escrava em um tão ultrajante local se não fosse por um motivo sórdido ou para castigá-la por algo. Porém a garota a sua frente causava-lhe um incômodo que se estendia desde a base de sua coluna até à nuca. Em todas as suas campanhas, e já se passavam muitos verões, nunca se importara com quer que seja. Os homens que não a seguissem eram mortos por sua própria espada. As mulheres e crianças ficavam viúvas, órfãos ou teriam que suportar seus maridos e pais que se rendessem em seus exércitos ou então aceitar contribuir “generosamente” para o próspero reino que agora se estendia por quase toda a Grécia.
“Que Hades faço eu, Xena a conquistadora, diante de uma pequena e insignificante criatura escutando suas súplicas?”
– Disse que leu sobre mim em pergaminhos? Como sabe ler?
– Recebi ensinamentos em minha terra natal e depois continuei os ensinamentos sob a tutela de meu primeiro senhor, porém ele era velho e quando faleceu, fui vendida por seus herdeiros e vim parar aqui.
Xena estava cansada, não exatamente a nível físico. Apesar de já estar beirando quarenta verões, tinha mais vigor que seus recrutas mais jovens, mas o tempo fora inclemente com sua consciência e seu coração. Estava só, tinha o mundo que queria e não tinha nada. Nada que hoje realmente lhe importasse. Vivia bem, tinha fortuna, um império que conquistara… Mas não tinha mais sua família, não tinha amigos realmente, com exceção de dois de seus capitães mais velhos que sempre lhe foram muito leais, alguns homens que realmente se espelhavam em sua figura, e Calina que cuidava de seus pertences pessoais, sua comida, e sua consciência. Essa sim podia chamar de amiga. Já era sua empregada há muito tempo para reconhecer seus bons e maus momentos. Mas muitos queriam vê-la pelas costas.
“Que idiotice está você pensando em fazer? Aah! Xena, não está pensando em certificar-se se vale a pena não é?”
– Está bem. Já foi uma escrava de amor?
Agora era Gabrielle que se chocava. Sabia das tendências lúbricas da conquistadora, porém não pensava que ela fosse se interessar por uma escrava maltrapilha e tão mal apresentável como ela estava naquele momento. Gabrielle calculara mal. Sempre se apresentou para seus amos de uma forma que sabia que causaria nojo e desgosto para que não se incomodassem com ela e a colocassem para afazeres corriqueiros e de limpeza. E agora? O que faria?
– Bom, minha senhora. Nunca fui digna de tal apreço. Não sei exatamente me portar como tal, mas se lhe dá gosto…
Ao proferir tais palavras, Gabrielle se ruborizou e rezou para que a conquistadora a repudiasse e nesse momento desejou que não tivesse feito o oferecimento.
– Está bem.
“Xena… o que está acontecendo com você mulher? Não gosto de escravos me cercando para que ao menor deslize se amotinem e causem transtornos a minha paz.”
Xena a olhava com mais intensidade e concentração agora. Era um rosto sujo, aparência asquerosa e definitivamente não era o tipo de pessoa que quisesse que estivesse perto de si. Além do mais a havia tirado de uma prisão pouco convencional, não que os tipos de pessoas que conservam escravos por perto, se importem com que lugar irá colocar um escravo de castigo. Aliás, esses tipos normalmente conservavam muito gosto por fazerem-se fortes diante de criaturas insignificantes e desarmadas. Ela conhecia muito bem qual era o sabor de tais atos. Já os havia praticado. Não se orgulhava de muitas coisas que fez, mas também não se arrependia, pois todas essas vivências deram a ela tudo o que desejou e levaram parte de sua alma, porém certamente lhe deram toda a sabedoria acumulada para distinguir o que deveria fazer sobre algo e o que não deveria.
Mas algo lhe chamou atenção. Os olhos verdes da garota agora já não estavam mais tão vivos, estavam cheios de medo e apreensão.
“Será que por acaso se arrependera? Será que se dera conta do que havia lhe pedido?”
Para Xena agora já era tarde. Já havia aceitado sua oferta e não retornaria. Então que a menina houvesse pensado antes de se oferecer.
– Aahran, leve essa escrava aos cuidados de Calina. Diga-lhe que a quero lavada, e muito bem lavada. Não suporto mau cheiro. Dê-lhe roupas limpas, depois trataremos do resto.
Xena se virou para a escrava.
– Qual é seu nome?
– Gabrielle.
Gabrielle permanecia de joelhos em frente à Xena, na mesma postura que os homens a haviam colocado. Agora se achava de cabeça bem baixa. Continuava sem acreditar no que estava acontecendo. Sabia por tudo que lera que Xena não mantinha escravos. Era contra essa prática; os seus serviçais eram pagos, empregados pagos. Achava que se oferecendo a Xena, esta se recusaria a vendê-la e a libertaria para se tornar uma empregada normal não precisando mais se preocupar em quem a compraria ou que um dia a matassem sem mais. Que engano o seu.
“Como pude achar que uma mulher acostumada a vitórias e dedicada à matança se importaria com uma escrava esfarrapada e mal cheirosa”.
Xena a olhava tentando decifrar seus pensamentos. Ficou assim durante um longo tempo apenas observando a figura diminuta à sua frente. Tinha um rosto bonito e se não fossem as marcas de sofrimento, diria até que poderia se parecer com a própria Cafira.
– Então Gabrielle. O que lhe direi, direi apenas uma vez. Se você resolver se levantar contra mim, seja pensando em fugir ou me trair de qualquer forma, será estripada por minhas próprias mãos. Usarei o que estiver a minha frente para arrancar-lhe as vísceras e deixarei o corpo no pátio para que os cachorros comam mesmo se ainda estiver viva. Você compreende o que digo?
– Sim, minha senhora.
– Agora acompanhe Calina e a respeite como se fosse a mim.
Calina estava um pouco atrás de Xena e se apresentou para levar a escrava.
O acampamento já estava montado e apesar de ter o castelo de Tropea próximo, gostava de estar com seus soldados. Já não saía de Corinto com tanta frequência, quando ocorria, gostava de demonstrar para sua tropa que não era diferente de antes. Isso sempre os inspirava. Estava cansada e queria um banho, depois comemoraria com os homens, voltaria para sua tenda e dormiria. No outro dia bem cedo queria estar em marcha para Corinto.
Levaram cerca de três dias para chegar a Corinto por conta das carroças e da marcha lenta que imprimiram. Xena precisava se inteirar dos acontecimentos durante a sua estada fora do castelo. Pediu para Daros levar sua égua para o estábulo. Já havia algum tempo que sua maior companheira de viagem havia morrido.
“Sim, Argo era excepcional. Foi minha amiga e companheira de viagem durante muitos anos e muitas conquistas. Nela sempre pude depositar minha confiança cegamente e ela nunca me decepcionou. Apesar de ter deixado sua filha em seu lugar, tenho verdadeira saudade daquela égua…”
– Daros, não se esqueça de alimentar e lavar Phoebe muito bem, ela merece.
– Sim, minha senhora. Tratarei dela como a senhora gosta.
– Bom menino.
– Minha senhora! – chamou Calina atrás de Xena
– Sim Calina, diga rápido, pois tenho que ver se os inúteis que eu deixo em meu lugar enquanto estou fora, fizeram alguma bobagem.
– O que farei com Gabrielle, Senhora?
– Gabrielle! Quem Hades é Gabrielle?
– A sua escrava, senhora. Aquela que tiraste da prisão de Tropea em Elia.
– Por Athenas! Havia me esquecido da pequena, Calina. Leve-a consigo e veja se consegue acomodá-la em algum lugar próximo ao seu quarto. Mas a tranque. Não confio em ninguém que queira me acompanhar como escrava por livre e espontânea vontade. Eu mesma não gostaria de trabalhar para mim. – Esboçou um pequeno sorriso para Calina que mais parecia um esgar de dor. – À noite após o jantar leve-a aos meus aposentos para poder saber onde podemos encaixar essa menina. Ela já está apresentável Calina?
– Sim senhora. Fiz como pediu, mas creio que teremos que providenciar roupas adequadas para ela. Está vestida com uma de minhas saias e com uma de suas camisas velhas. São muito grandes e se parece mais com um boneco de lavoura. – Agora foi a vez de Calina rir.
– Muito bem, então veja o que pode fazer. Como não a vi durante a viagem?
– Estava muito assustada. Disse-me que há muito não saía de Tropea e não estava mais segura de seu oferecimento. Perguntou-me se você tinha muitas escravas corporais.
Xena sorriu se lembrando da pergunta que lhe fizera quando ela se ofereceu para ser sua escrava. Havia perguntado se era uma escrava de amor apenas para saber seu papel naquele palácio, mas agora percebeu a confusão da menina e achava graça das suas preocupações.
– Achei a pergunta esquisita, mas resolvi não responder, pois não sabia dos detalhes de sua conversa com ela e o que você havia lhe dito. Preferiu passar os dias próxima à carroça que nos trazia, estava sempre me procurando para não ficar sozinha e não queria se aproximar dos soldados. Quando lhe perguntei por que estava tão assustada, disse-me que quando era escrava de Drátios, se por ventura alguma escrava era encontrada perto dos alojamentos dos soldados, era dada ao batalhão para que a despojassem.
Nesse momento Xena fechou o semblante. Sabia que a vida dos escravos de uma forma geral era muito ruim, mas alguns senhores se compraziam muito do sofrimento alheio. Ela mesma não era uma boa senhora. Afinal, escravo é escravo, mas sacrificar uma mão de obra apenas para o divertimento é uma perda de dinheiro e uma burrice.
– Agora vá Calina, ainda tenho muito a fazer. Cuide dessas coisas para mim e a noite leve-a até mim.
Xena foi à sala de reunião e encontrou seus conselheiros a esperando. Metade era um bando de esnobes engomadinhos e a outra metade eram guerreiros que haviam se aliado a ela para poder manter seu status e suas terras que em sua maioria haviam conquistado antes de Xena chegar com sua fúria avassaladora, derramando sangue, derrubando palácios. Ou seja, de qualquer dos lados não era muito bem quista. “Que se danem todos”, pensou. Ela havia fincado sua bandeira e que eles a engolissem até o dia que morresse. Depois poderiam se esfaquear para ver quem pegaria o governo.
Quando sentou na alta cadeira à cabeceira, levantou as pernas e apoiou as botas em cima da mesa pegando distraidamente uma fruta um uma cesta que havia perto a mordendo em seguida.
– Então, o que vocês têm a me contar…
Após horas maçantes de discussão, sobre quem deveria governar em Tropea, ela simplesmente jogou seu punhal cravando-o no centro da mesa para que os imbecis parassem de tagarelar.
“Estou cansada desses inúteis que nem sequer levantavam suas bundas das cadeiras e se acham no direito de decidir o que fazer com o que eu conquistei!”
Para ela tanto fazia quem ficaria para governar Tropea. Só se voltou contra Drátios porque o idiota achou que poderia atravessar todo o seu império para negociar armas e escravos com os persas sem que ela soubesse. A única coisa que queria é que a besta que se plantasse no governo de Tropea soubesse que caso se levantasse contra ela teria o mesmo fim. É bem verdade que os impostos de Tropea seriam bem-vindos, mas não tinha sido esse o seu motivo. E queria que isso ficasse bem claro para seus “aliados”, para que pensassem duas vezes no futuro antes de cometer um erro semelhante.
– Acabou! Vou me recolher e amanhã se não me derem um nome, eu mesmo o darei. – Levantou-se sem mais e se retirou da sala com um punhado de olhos exorbitados em cima de si.
Não foi direto para seu quarto. Passou no alojamento dos seus soldados. Queria falar com Tarsílio. Enquanto ela e Aahbran estavam em campanha deixara Tarsílio a cargo de vigiar essas sanguessugas. Não confiaria uma agulha de bordar a qualquer desses imbecis.
Chegou à porta e viu que apenas os soldados que estavam de vigília não se encontravam nos alojamentos. Tarsílio veio assim que a viu.
– Minha senhora. – Cumprimentou-a fazendo um gesto colocando a mão no peito e se curvando para frente.
– Vamos Tarsílio, sabe que não tenho a menor paciência para essas demonstrações e floreios desmedidos. Por acaso tens passado muito tempo com esses senhores de “boa aparência”?
Tarsílio não conseguiu se conter e gargalhou a valer. Batalhara ao lado de Xena muitos anos para saber que ela não deixaria passar com seu humor sarcástico a oportunidade de espezinhar os nobres de sua corte.
– Bem, não foi o que me pediu?
– E existe algum que ainda tenha coragem suficiente de me enfrentar ou são todos uns covardes que se escondem para fofocar como as meninas das cozinhas?
– Infelizmente minha senhora, são realmente uns frouxos. Sei que não falam pela frente, mas…
– Mas o que?
– Bem, ha quatro dias quando chegou o mensageiro com a notícia de que havia derrotado Drátios e estava voltando para Corinto, o senhor Sileno partiu para Megara dizendo que visitaria um parente. Achei uma atitude estranha, pois sabíamos que chegaria e se reuniria com o conselho para a escolha do novo governante de Tropea. Bem, mandei um de meus soldados segui-lo, mas até agora não tenho nenhuma notícia.
Xena escutava atentamente. Sabia que alguns de seus nobres e aliados levantaram a possibilidade de realizar um tratado de comércio com os persas, mas isso não lhe agradava. Conhecia como os persas lidavam com seus tratados. Enquanto não conheciam o caminho das pedras, eles eram aparentemente leais, mas depois se levantavam como aves carniceiras para tomar tudo que podiam. Já havia visto antes e não queria se arriscar agora.
“Pelas bolas de Ares, será que esses imbecis nunca vão me escutar? Será que terei que acabar com a raça de meia dúzia para me fazer entender?”
Tarsílio a observava e sabia que a notícia não havia agradado a Xena.
– Posso fazer mais alguma coisa para ajudar Xena.
– Sim Tarsílio, sei que Aahbran foi para casa ver sua esposa e filhos, mas precisarei que vá até ele e diga que amanhã marchará novamente para Tropea; já passou da hora de ter os meus no governo. Acredito que isso desagradará a alguns. Preciso que fique atento e escolha os seus melhores para a segurança aqui no palácio. Quero que diga a ele que vá com sua família, pois assim ficará mais seguro e que passe pela manhã antes do nascer do sol para me ver. Acredito que você terá bastante trabalho aqui, meu amigo.
Tarsílio não duvidava em nada da competência e discernimento de Xena, mas não entendia, o que o fato de Sileno ir para Megara influenciaria qualquer coisa em Tropea. Bem, de qualquer jeito apostaria em Xena até mesmo sob o tear dos destinos.
– Sim, minha senhora. Irei agora mesmo. – Agora prestou uma reverência digna de um soldado e saiu.
Xena retornou ao palácio através das portas dos serviçais. Não queria que nenhum nobre a visse perambulando pelo palácio e conversando com um de seus capitães de maior confiança. Isso levantaria suspeitas.
Chegou por um corredor estreito à ala principal e foi direto para os seus aposentos. Entrou na antessala e viu uma figura pequena, sentada de costas e sua empregada Calina de pé a sua espera. Mais uma vez havia se esquecido da escrava que trouxera consigo.
“Mas onde estava com a cabeça para trazê-la para cá? Em que tártaro se enfiou hein Xena? E agora? O que fará com essa criatura que mais parece um filhote de coelho assustado?”
– Muito bem. Vejamos… Levante-se, quero vê-la – Xena pensava nas palavras de Calina sobre a reação dela quanto à pergunta que fizera em Tropea. Tinha um humor realmente sarcástico.
Gabrielle se levantou e se virou para a conquistadora.
Os olhos de Xena não acreditaram no que viram. Não se parecia em nada com aquele saco de trapos que vira em Tropea. Era uma menina que não devia passar de uns vinte dois ou vinte e cinco verões. Pequena, cabelos louros. Um dourado da cor do sol. Um semblante iluminado, mas com uma tristeza no olhar que tocou o mais profundo de sua alma. Seus olhos eram de um verde quase transparentes; parecia à Xena que estava entrando no reino de Ilusia, através de seu olhar. Ficou sem ar. Tinha que recuperar a sanidade perdida temporariamente pelo apelo enigmático desses olhos.
– Muito bem. O que farei com você menina?
Gabrielle a olhava agora sem entender o que acontecia.
“Que olhar foi aquele? O que essa mulher vai querer de mim? Depois de tantos anos conseguindo me preservar de amos libertinos e bárbaros, eu mesma me coloquei nessa posição tão vulnerável? Terrível erro…”
No entanto, Gabrielle olhava a mulher a sua frente e não conseguia crer em sua personalidade lida em tantos pergaminhos. Simplesmente, não conseguia vê-la de forma tão arrasadora e cruel.
“Estarei me enganando?”
Baixou o olhar, não conseguia sustê-lo. Foi como uma eternidade, esse breve momento de silêncio que as abraçava.
Xena rompeu o silêncio.
– Calina, quero que você cuide dessa escrava e a ensine os afazeres de meus cuidados. Assim, quando viajar, não precisará deixar o seu Tarsílio para enfrentar batalhas inúteis aos meus cuidados. Agora podem ir, tenho coisas a fazer. – Fez um sinal com a mão para que saíssem.
Xena estava completamente esgotada com os acontecimentos do dia e para fechar o seu dia ainda se surpreendera com uma escravazinha insignificante que ousava ter o olhar mais embriagador do mundo conhecido.
Aqueles dias estavam sendo surpreendentes para Gabrielle também. Foi ao tártaro ao ver as intenções de sua nova ama há dias atrás e foi ao Elísios ao encontrar com seu olhar azul-fogo e ver que ela não queria mais nada, senão seus serviços como serviçal pessoal.
“Quem era ela afinal? Sempre conseguira decifrar as pessoas. Mas a Conquistadora… Que mulher surpreendente!”
– Calina, ela sempre foi assim?
– Assim como?
– Bom… desse jeito de olhar? Quero dizer… humm… Sabe, diz uma coisa e depois se apresenta de outra completamente diferente… não pensei que ela…humm quisesse alguém só para cuidar de suas coisas. Sabe, lá em Tropea ela falou de uma forma que parecia… hummm… não sei. – Gabrielle estava confusa e não conseguia se expressar direito a respeito de suas percepções.
– Bem… Na verdade é uma mulher decidida, de temperamento incrivelmente forte e nunca aceita um não. Mesmo que discorde, não pode questioná-la e ao mesmo tempo odeia que mintam para ela. É uma situação difícil de lidar.
– E como saberei agir nesse caso e não acabar na ponta de sua espada?
– Bem Gabrielle, a escolha das palavras é fundamental. Conheço a conquistadora desde que casei com Tarsílio e isso já faz quase oito anos. Amo meu marido e ele ama Xena, não no mesmo sentido. Foram companheiros de muitas batalhas, são muito próximos e ele me ensinou a olhá-la de um modo simples e hoje a amo também. Não te direi que é fácil, é intempestiva, às vezes agressiva, mas também é justa. Talvez no modo de lidar com as coisas pudesse ser menos reativa, mas como já presenciei várias vezes, essa mesma forma agressiva e intempestiva, já lhe salvou diversas vezes a vida. Então, como não entendê-la?
Xena entrou em seu quarto extremamente agitada.
“Por Zeus!!!! Que olhar é aquele. Como a menina está diferente! Agora sem a sujeira em cima e com roupas mais apropriadas, como está interessante! Chegaria a repensar essa coisa de escrava de amor…”
Xena riu de seus próprios pensamentos. Havia muito que não tomava alguém para apaziguar seus anseios sexuais, mas também havia algum tempo que não lhe interessava acordar com uma criatura ao seu lado para lhe atormentar a manhã. Aborrecia-se muito quando via que alguém estava ocupando sua cama e a enjoava sobejamente esta cena logo de manhã.
“Vamos, Xena. Essa menina tem seguramente quase a metade de sua idade e possivelmente, se o que falou for verdade, seria uma péssima amante. Não gostaria de ter que ensinar truques na cama que aprendera durante uma vida inteira, né?! Ou talvez, sim?”
Xena sorriu de novo ao perceber onde daria sua linha de pensamentos. Pensou novamente nos olhos da escrava e um calor a tomou por dentro. Estava demasiado cansada e resolveu que essa não era uma coisa com que deveria se ocupar naquele momento. Seguiu para o quarto de banho e viu que Calina já preparara tudo para que ela pudesse se livrar de toda a sujeira de seu corpo e pudesse dormir em paz.
Calina levava Gabrielle para um quarto pequeno na ala dos empregados. Esta situação era inusitada. Já não havia escravos há muito tempo no castelo e logo Calina não sabia como proceder, mas a conquistadora dissera-lhe para colocá-la em um quarto próximo a si e trancá-la. Era uma situação realmente constrangedora.
– O que sabe realmente fazer, Gabrielle?
– Bem, com meu primeiro amo, aprendi as artes da cura. Não posso me queixar dele, era um bom homem, considerando sua aparência. Ele tinha uma doença que deixava sua pele em manchas como uma vaca pintada e um problema na coluna que fazia dele muito mais baixo do que realmente era. Quando me adquiriu, soube que sabia ler e resolveu me colocar a seus serviços para auxiliá-lo na feitura de seus medicamentos e acabei ajudando também no tratamento dos enfermos que chegavam até ele. Chegou um momento em que ele não podia mais atender as pessoas, pois não conseguia mais sair da cama, então me mandava em seu lugar. Fiquei muito triste quando pegou a doença da tosse. Sabia que seria difícil ele se recuperar, pois já levava muito tempo deitado e já era muito velho. Depois seus herdeiros disseram que não precisariam mais de mim, pois não manteriam mais um hospital no castelo e me venderam para Drátios. Foi uma época muito ruim, pois fui colocada para lavar as latrinas. Drátios falava que era para domar os escravos novos. Todos os escravos novos de Drátios faziam os piores trabalhos do castelo, mas a minha maior tristeza foi pela perda de meu amo anterior. Ele era um bom homem e gostava de manter o hospital e auxiliar o povo, mas seus herdeiros não se importaram com sua vontade e destruíram o que ele levou uma vida para construir.
Gabrielle agora estava de cabeça baixa. Calina se comovia com a história da menina e sabia o quanto poderia ser difícil para alguém ter muito mais do que espera e depois ser-lhe tirado tudo, mas sabia também que já tinha um lugar para Gabrielle no castelo.
– Também sei cozinhar. Bom… pelo menos em Tropea, quando era mandada para as cozinhas, todos elogiavam.
Gabrielle tinha esperança de poder fazer coisas melhores que em Tropea. Não fazia só os serviços das cozinhas, era designada para qualquer coisa que os empregados de Drátios a mandassem. Mantinha-se sempre suja para que eles a colocassem em serviços do mais baixo nível, mas também não se cercassem dela. Um dia viu que uma garota que foi limpar o quarto de um capitão de Drátios foi pega por ele e ele fez tantas coisas ruins que ela depois sangrou e morreu sem que a socorressem. Os soldados riam dessa ação de seu capitão. Nesse momento Gabrielle fez uma cara de dor e desespero ao ter essas lembranças.
– Bem, Gabrielle. Creio que a senhora Conquistadora já tem um papel para você. A partir de amanhã me acompanhará nos afazeres dos cuidados pessoais da Senhora. Talvez mais tarde ela descubra que você possa ter outros valores dos quais ela possa se valer. Este é seu quarto. Não é muito grande mais acredito que seja melhor do que quando vivia em Tropea. Ah! Lembre-se de todo dia de manhã banhar-se. A senhora conquistadora odeia sujeira e é capaz de não se importar de livrar-se de você mesmo sabendo que tens habilidades das quais ela poderia se interessar. Certamente ela não a venderia. Mataria você sem ao menos olhar em seu rosto para depois não lembrar-se mais que um dia existiu.
Uma onda de choque percorreu toda a coluna de Gabrielle. Parecia que Calina lera seus pensamentos.
– Sim, senhora!
– Não precisa me chamar de senhora, Gabrielle, mas aprenderá que a senhora conquistadora gosta que lhe deem reverências. Assim que nunca se refira a ela a chamando pelo nome. Sempre, sim senhora ou senhora conquistadora. Quando ela pedir que a olhe nos olhos, faça-o. Ela gosta de saber o que os olhos dizem, mas só nesse momento deverá olhá-la assim. Agora vá dormir, pois amanhã temos que acordar antes do nascer do sol. A senhora conquistadora acorda a essa hora e temos que preparar seu desjejum e seu banho matinal. Depois quando ela sair do quarto para seus afazeres deveremos arrumá-lo.
– Obrigada, Calina. Tem sido muito boa comigo esses dias. Já havia me esquecido como era ser tratada de uma forma gentil.
– Não tenho porque tratar de outra forma. Aqui não temos escravos Gabrielle, portanto não sei nem mesmo como tratar de outro jeito. Com toda a sinceridade, não sei por que Xena a trouxe para cá. Ela não gosta de ter escravos por perto. Diz que é o jeito mais fácil de ter aborrecimentos. Há muito tempo que ela não entrava em uma batalha e derrubava um governo como fez em Tropea, mas em outras épocas ela pegava os escravos e negociava. Como fez com o resto dos escravos de Tropea. Mas trouxe você conosco, e isso é inusitado até para nós. Bom, já passa da hora de dormirmos. Amanhã arrumaremos mais algumas roupas para você. No baú de seu quarto tem uma saia e uma blusa e panos para o banho. Boa noite, Gabrielle. Terei que trancar seu quarto.
– A isto já estou acostumada, não se preocupe. Boa noite, Calina.
Quando Gabrielle entrou no quarto, nem acreditou no que viu. Não era um quarto grande, mas certamente tinha mais conforto do que seu próprio quarto em Potedia. Tinha uma cama no canto, uma mesa com uma cadeira, um jarro com água para beber e um baú. Havia também uma bacia com água, sabão, um pequeno biombo com um pequeno cocho para banho e já cheio com água.
“Será que Calina havia posto isso ali? Deuses ela era uma escrava e estava sendo tratada com um respeito que nunca tivera… Nem mesmo…” – Parou sua linha de pensamento, pois não gostaria de determinadas lembrança ingratas.
Antes do nascer do sol, Aahbran e Tarsílio já estavam batendo à porta do quarto de Xena.
Xena se aproximou, abriu a porta e mandou que entrassem. Sentou-se em uma poltrona do vestíbulo.
– Onde Hades está Calina, Tarsílio?
– Preparando seu desjejum, minha senhora. Não sabia que viríamos tão cedo.
– Bem. Prestem muita atenção no que vou lhes dizer e não quero uma palavra fora desse quarto. Se souber que alguém além de vocês comentou algo por aí, saberei que saiu de suas bocas. Então verão uma Xena que há muito não aparece e irão se arrepender do dia em que me conheceram. Entendido?
Os dois se perfilaram e disseram ao mesmo tempo.
– Sim Senhora.
Pouco depois que Tarsílio e Aahbran saíram, Calina entrou no quarto de Xena acompanhada de Gabrielle com o desjejum. Esta trazia em suas mãos um cesto de frutas e ovos cozidos enquanto Calina trazia uma garrafa com água e outra com sidra. Gabrielle se mantinha com os olhos baixos como convinha a uma escrava. Depositou a cesta na mesa em frente à Xena fazendo uma reverência. Ia se afastando para dar lugar a Calina. Xena a segurou pelo braço lhe causando um estremecimento no corpo.
– Olhe para mim menina!
Assustada, Gabrielle olhou-a por alguns pequenos segundos, não conseguindo sustentar o olhar.
– Disse para me olhar! – Xena falou baixo, porém sua voz parecia mais um rosnar do que propriamente uma entonação vocal.
Gabrielle agora era pega pelo seu olhar profundo que parecia desvendar-lhe o mais fundo de sua alma. Estremeceu novamente. Olhos e rosto desfigurados pelo medo.
– Tem medo de mim, criança? – Agora sua voz era suave, porém mantinha uma entonação poderosa.
– Sinto senhora, mas sou uma escrava. A mim foi ensinado não conduzir meu olhar aos meus amos.
“Menina esperta. Aprende logo, na certa Calina lhe falou para não me encarar enquanto eu não a abordasse”.
No entanto, Xena sentia uma intrigante necessidade desta garota a encarar. Seus olhos eram puros, cheios de medo sim, mas dóceis, como se nenhuma maldade houvesse perpassado pela sua vida. Coisa que sabia não ser verdade. Como escrava devia ter passado maus pedaços, no entanto tinha uma pureza que chegava a embriagar Xena.
Mais afastada, Calina observava a atitude de Xena com certa desconfiança. Não sabia se temia sua reação em relação à Gabrielle ou se surpreendia. Xena não era dada a se incomodar com empregados, quanto mais uma escrava. Pressentia algo no ar e não conseguia decifrar se era bom ou ruim. Depois de alguns anos servindo Xena, a maior parte das vezes sabia quando gostava de algo ou tinha vontade de matar o mundo, no entanto esta situação a deixou apreensiva. Xena continuava encarando Gabrielle sem dizer uma palavra. Por fim, soltou seu braço e pediu para Calina arrumar seu quarto e preparar seu banho.
As duas entraram no quarto de Xena caladas. Ao cerrarem a porta, Gabrielle soltou um grande bocado de ar que havia preso em seus pulmões.
– Deuses! Quanto tempo levará até que ela queira acabar comigo?!!
– Não diga isso. Ela pode ser voluntariosa e impulsiva, mas nunca lhe faltou racionalidade. Você não lhe fez mal nenhum, apenas está se acostumando com a ideia de ter uma escrava por perto e tenta te interpretar. Vamos aos afazeres, pois se ela terminar o desjejum e o quarto não estiver arrumado e seu banho pronto, aí sim terá que temer uma represália.
Xena terminou o desjejum antes que o de costume e entrou no quarto para averiguar como as coisas estavam se saindo com Gabrielle. Como sempre, nunca fazia o menor barulho ao caminhar. Percebeu que Calina e Gabrielle já haviam arrumado o quarto e estavam por conta de seu banho. Aproximou-se da porta da sala de banho para escutar a conversa animada que Calina e Gabrielle desenrolavam com desenvoltura. Não queria ser vista. Tinha uma curiosidade imensa sobre essa menina que parecia apertar seu estômago com as próprias mãos quando a olhava. Aproximou-se mais do batente da porta.
– Como saberei que ela gostou do que fiz se não fala?
– Ela não fará elogios, Gabrielle. Se não reclamar, você fez o correto.
– Não procuro elogios, Calina. Acostumei a ser ignorada, só tenho medo de cometer um engano que poderá me levar à morte. Drátios e os seus guardas batiam, xingavam e quando estavam satisfeitos com o serviço, ignoravam. Escravos não recebem elogios, mas conseguia me manter afastada o suficiente para não morrer. Agora trabalho diretamente para ela. E se fizer alguma estupidez sem me dar conta?
– Não disse que tinha um amo que confiava em você a ponto de te dar a oportunidade de aprender a arte da cura e ajudá-lo em seu hospital?
– Ele era um bom homem, como te disse. Importava-se com as pessoas de seu reino, e viu em mim algo que normalmente os amos não querem ver em seus escravos. Sabia que eu sabia ler e percebeu que ajudar os doentes me agradava. Falava que só pessoas com um dom poderiam fazer o que ele fazia e dizia que eu tinha o dom, mas depois que fui vendida, isso não importou mais. Temo não conseguir agradá-la, ela me olhou… humm, não sei, como se estivesse entrando em minha alma. Na verdade quase morri de tanto prender a respiração.
– Bom Gabrielle. Para começar, vamos acabar de preparar o banho da Conquistadora, pois se ela chegar e não tiver pronto, você realmente vai precisar se preocupar.
Xena escutava a tudo atentamente. Achou graça dos pensamentos da menina. Achou interessante o fato de saber lidar com questões da arte da cura, mas se incomodou terrivelmente com o fato dela ter tanto medo em relação a si.
“O que é isso Xena, você está ficando mole? Qual é o problema de uma escrava sentir medo de você? Não é isso que sempre procurou em todos a sua volta?”
Quando Xena percebeu que haviam acabado, se afastou e foi se sentar em uma poltrona que ficava no balcão que dava para o jardim. Abriu um pergaminho fingindo concentração no que lia.
– Já terminaram ou fofocavam como duas velhotas vendedoras de peixe do mercado?
Pegas desprevenidas, Calina se dirigiu a Xena dizendo que explicava a Gabrielle como devia aprontar seu banho.
– Muito bem. Gabrielle venha aqui.
Gabrielle se aproximou de cabeça baixa.
– Calina irá mostrar hoje as dependências do castelo em que você poderá circular. Levará você para comprar algumas roupas para poder se apresentar dignamente em minha presença. Compre algumas calças para montaria também, Calina.
– Sim, Senhora conquistadora. – Respondeu Calina.
– Por enquanto, não quero que vá a parte do salão principal, nem nos quartos principais do castelo, muito menos nos alojamentos dos soldados. Ainda quero que fique restrita ao castelo. Não quero que saia para a parte externa sem que Calina a acompanhe. Entendeu?
– Sim, senhora conquistadora. – Foi a vez de Gabrielle responder.
– Quero que espere Calina em seu quarto. E não se distraia pelo caminho, ouviu?
– Sim, senhora conquistadora. – Novamente Gabrielle respondeu.
– Agora vá. Calina quero que fique. Tenho que falar com você. E não falem, sim senhora conquistadora novamente senão arrancarei as suas línguas. – Xena soltou com um bufo, mas se divertia por dentro.
Gabrielle saiu o mais rápido que pode. Quando Gabrielle fechou a porta do vestíbulo, Xena levantou e se virou para Calina.
– Muito bem, solte tudo a respeito dessa menina. Passou sete dias com ela e já a deve ter como confidente.
Calina verdadeiramente não entendia qual o interesse de Xena nessa escrava, mas não questionou. Contou tudo que havia escutado de Gabrielle e Xena se ateve a cada detalhe.
– Ok! Calina. Se ocupe dela durante os próximos quatro dias. Não quero contato dela com os nobres, soldados ou qualquer um que possa achar de se aproveitar da situação dela como escrava. Ela é minha escrava, deixe isso bem claro para qualquer um que queira se engraçar. Estarei fora e se alguém perguntar diga que não sabe e que deixei ordens expressas que se houver algum problema se reportarem a Tarsílio. Ele saberá lidar com esses canalhas que cercam esse castelo. Se ouvir ou vir algo diferente, fale com seu marido. Ele colocará os melhores soldados aqui dentro nesse tempo que estarei fora.
– Sairá sozinha?
– Não, mas não pergunte mais nada. Ficará mais segura assim.
– Sim senhora.
– E Calina. – Xena se deteve momentaneamente. – Leve essa menina à sala de medicamentos do antigo curador. Mostre-lhe também o herbário. Já deve estar cheio de ervas daninhas, mas se é boa nisso deverá saber como cuidar. Aja como se estivesse simplesmente apresentando as dependências do castelo e observe o seu interesse. Se perguntar algo do antigo curador responda com sinceridade, mas não lhe diga que fui eu quem mandou mostrar-lhe tudo e nem nada a respeito dessa conversa. Quero que aja com naturalidade, entendeu? Se essa menina se interessa tanto por esse assunto, uma hora se mostrará.
– Sim, Xena – Agora Calina ria por dentro. Começou a perceber que Xena estava se derretendo sobre o olhar de Gabrielle. Isso a divertiu e começou a entender algumas reações da conquistadora. Há muito que não via Xena interessada por algo verdadeiramente. É bem verdade que nunca a viu interessada por alguém, mas já havia visto esse olhar. Quando ela queria algo, tinha que conquistá-lo. Enquanto não o fizesse não sossegava.
Xena não se pronunciou sobre o seu atrevimento de chamá-la pelo nome. Sabia que Calina a chamava assim quando percebia algo nela que às vezes nem ela mesmo tinha notado. Não tinha tempo agora. Tomaria nota para inquiri-la mais tarde.
Após Calina ter saído, Xena se aprontou. Colocou uma calça de couro preto, um corpete e uma armadura bem ajustada ao tronco. Colocou uma bainha de espada que prendia ao tronco e atravessava por trás das costas, prendeu seu chakram à cintura e embainhou sua espada. Fechou a porta do quarto por dentro, foi até a tapeçaria que se estendia por toda a parede contrária a sua cama, afastou-a e empurrou um bloco de pedra encaixado perfeitamente à parede. Se não soubesse exatamente onde ficava possivelmente quase não o perceberia. Um pequeno vão se abriu dando passagem a uma escada estreita e mal iluminada. Começou a descer, mas antes se virou nos primeiros degraus e empurrou novamente um bloco na parede fazendo a passagem fechar atrás de si. Nos últimos degraus já se percebia um salão com um pequeno estábulo e uma égua, muito bem cuidada que relinchou ao perceber a presença de Xena.
– Como vai minha menina?
Esta égua, já era a terceira geração de Argo. Uma égua jovem com menos de 3 anos. Quando nasceu, logo a levou para seu estábulo particular e tomou para si seus cuidados. Não queria que ninguém pusesse as mãos nela para que tivesse Xena como sua única dona, assim como fora com Argo. Homenageara a velha amiga colocando o seu nome nesta bela criatura. Agora veria como Argo III se comportaria tendo que levar Xena o mais rápido possível para Megara. Tinha que pegar Sileno antes que este retornasse a Corinto.
De seu estábulo particular havia uma saída direta para fora de Corinto. Saída esta que só Xena conhecia. Pegou Argo III pelas rédeas e foi caminhando até se afastar bem da cidade. Mentira para Calina. Iria só, mas não seria prudente que outras pessoas soubessem disso. Quando já ia longe, montou em Argo III e saiu em disparada em direção a Megara através de um atalho que conhecia. Os anos de cavalgadas em batalhas pela Grécia fazia com que Xena conhecesse aquele território melhor do que a si mesma.
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– Bem Gabrielle, agora só falta um lugar para levá-la. Vamos descer por aqui.
Chegaram a uma porta que ligava a construção principal do castelo a um anexo dentro de um grande jardim entre muros. O anexo ficava isolado, uma construção pequena e que parecia abandonada. Calina tirou uma chave de ferro do bolso de seu avental e girou na fechadura. Fez um pouco de força, pois a fechadura estava enferrujada. A porta rangeu e Calina fez mais força para empurrá-la. Gabrielle já estava encantada com o jardim apesar de estar um pouco maltratado. Quando entrou no espaço, olhou ao redor e seu maxilar caiu deixando uma aparência cômica ao seu semblante.
“Xena tinha razão”. Pensou Calina. “Não demorará muito para a conquistadora arrebatar mais esse prêmio.”
– Calina, por que esse espaço não está sendo utilizado? Deuses, isso é um sonho!!!!
Gabrielle olhava admirando cada detalhe do local. Tinha uma enorme estante em um canto com vários pergaminhos que provavelmente trazia formulações de unguentos, remédios curativos a base de pós de ervas, antídotos entre outras substâncias. Calina só a observava e reparou que Gabrielle estava atenta a todas as nuances do ambiente e permaneceu afastada olhando-a como Xena pedira.
Gabrielle se aproximou de uma grande mesa onde havia vários tipos de frascos, alguns funis, alguns maceradores e outros vidros com soquetes para misturas. Havia também uma estante onde eram depositados muitos frascos contendo líquidos e alguns pergaminhos enrolados que continham alguns pós em seu interior. Estava maravilhada e Calina podia ver isso em seus olhos.
– Calina, se isso aqui for limpo e arrumado poderá ser de grande valia para a cidade. Por que está abandonado?
– O antigo curador conspirou contra Xena. Ela dava total liberdade para ele, mas ele achou que ela não era digna de governar nem Corinto nem as terras que fazem parte do reino. Procurou apoio de alguns nobres do norte e deixou que eles enviassem assassinos para matá-la. Permitiu que entrassem no castelo com segurança e os orientou como poderiam entrar no quarto de Xena à noite. Porém, ela parece nunca dormir de verdade. Entraram em seu quarto, mas só saíram mortos. No entanto, antes de matar o último, extraiu dele todas as informações da conspiração. Prendeu o curador e foi atrás de cada nobre que o havia auxiliado. Matou a todos em seus próprios castelos e não me peça para dar os detalhes de suas mortes. Tomou suas terras, que fazem parte hoje do seu reino e quando retornou, empalou o curador em praça pública. De lá para cá, não mais tem uma única pessoa para curar suas feridas de batalha. Sempre chama alguém diferente dentre o povo que tem conhecimentos na arte da cura para lhe assistir. Como todos lembram o fim de seu curador se esforçam ao máximo para curar suas feridas.
Gabrielle escutava a tudo estarrecida. Seus pensamentos davam voltas e ao final disse.
– Por que ela permitiu que me trouxesse aqui?
– O que a faz pensar que ela tenha dito algo a respeito.
– Calina, sou escrava, mas não sou burra. Você não me levou a todas as partes do castelo porque ela havia proibido e me trás aqui! Certamente ela deu permissão.
– Ahh! Menina, isso eu não sei responder. Terá que esperar que ela mesma lhe diga e isso se ela o quiser. Vamos Gabrielle tem mais uma parte aqui escondida que talvez você goste também. – Calina proferia as palavras se voltando de costas para Gabrielle e pensava que já desconfiava porque Xena estava tão interessada nessa menina. Ela era muito inteligente e definitivamente era uma coisa que chamava a atenção de Xena.
Calina foi caminhando até uma porta no fundo da sala com Gabrielle em seu encalço. Destravou com dificuldade o ferrolho com a ajuda de Gabrielle. Abriu a porta e se descortinou um pequeno espaço de jardim coberto com uma tela, onde o sol atravessava suas rendas para iluminar e acalentar as plantas que ali repousavam. Era um herbário protegido por muros e as paredes do pequeno anexo. Era lindo e os cheiros se misturavam em mil aromas diferentes. Gabrielle extasiava ao ver e sentir tão lúdico e maravilhoso lugar.
Um dia havia se passado quando Xena chegou a Megara. Levou Argo III para um estábulo público. Já estava anoitecendo e Xena se encaminhou para o porto da cidade. Lá se encolheu nas sombras observando as pessoas que iam e vinham. De repente olhou para o lado sul do porto e percebeu um navio alto de três mastros atracado no fim do cais. Esgueirou-se até chegar perto. Viu que o navio tinha filas duplas de remadores. Sim, definitivamente era um navio persa. Decidiu que ficaria por ali aquela noite para vigiar o movimento do navio. Algumas marcas mais tarde observou alguns homens saindo do navio em direção a cidade. Seguiu-os cautelosamente até uma taberna próxima ao estábulo. Entrou na taberna pela parte de trás e ficou observando os persas por trás de uma cortina. Viu Sileno se aproximando. Cumprimentou o mais alto de todos e se sentaram em uma mesa afastada do resto do grupo. Para sorte de Xena, sentaram-se próximo a ela e podia ouvir claramente o que comentavam. Percebeu também que havia um soldado de seu exército mais afastado, no entanto não estava preocupado que o vissem.
“Bastardo. Como fácil são comprados hoje em dia. Se arrependerá de ter deserdado”.
Xena escutou tudo atentamente. Quando Sileno se retirou, confirmou as suas suspeitas. O soldado saiu como um guarda-costas para Sileno. Retornariam para Corinto na parte da manhã bem cedo. Precisaria voltar e estar em Corinto antes que chegassem. Não permitiria mais uma insurreição, mas também não agiria apressadamente. Desta vez queria pegar todos. Foi aos estábulos, pegou Argo III e partiu de volta a Corinto.
Já era tarde da noite e Xena teve que parar para dar descanso a Argo III, mas não queria se demorar muito. Sabia que Sileno não se deteria muito tempo no caminho e provavelmente chegaria em um dia.