Capitulo II
por Fator X - Legado– “Um mal pequeno é um grande bem”
– Sinto muito Senhor Anaxágoras, mas a Senhora Conquistadora pediu para não incomodá-la. Não creio que seria prudente.
– Você é que não está entendendo. Ela não nos procurou depois que pôs seu Capitão para governar Tropea. Não nos consultou e não nos deu qualquer explicação. Estamos sendo preteridos das decisões. E agora se recusa ir ao conselho durante esses dias!
Calina estava em frente à porta do quarto de Xena, tentando impedir que Anaxágoras batesse a sua porta. Enquanto isso Gabrielle estava arrumando o quarto de banho. Estava distraída colocando sais na banheira que já estava cheia de água. Não entendia por que Calina havia pedido para ela esvaziar e encher novamente a banheira se a Conquistadora há dois dias nem dormia em seu quarto.
“Onde será que estaria por esses dias? Será que arrumara alguém para se distrair?”
Não sabia por que, mas esse pensamento a incomodou inexplicavelmente. Bom, aprendera a escutar tudo com cuidado e a nunca falar nada. Nunca sabia quem poderia querer extrair informações de escravos fuxiqueiros. Assim que era melhor que achassem que você não sabe de nada para preservar sua vida. Estava extremamente distraída em seus pensamentos quando escutou um pequeno farfalhar de tecido atrás de si. Quando se virou, deu um pulo para trás, pois se encontrou com a Conquistadora olhando-a intensamente. Ajoelhou-se imediatamente abaixando a cabeça em sinal de submissão.
Xena havia entrado pela sua pequena porta escondida sem que Gabrielle percebesse e já havia tirado a roupa da viagem e a armadura. Estava apenas em um roupão.
– Senhora Conquistadora, me desculpe por ainda não ter terminado de aprontar seu banho. Calina não sabia se chegaria por agora.
– O que Calina lhe falou sobre onde eu estava?
– Nada Senhora, apenas que andava ocupada e chegaria tarde.
– Levante-se. Deixe-me vê-la.
Gabrielle se levantou, mas não elevou seu olhar. Xena se aproximou e tocou o queixo de Gabrielle com a ponta dos dedos e levantou sua cabeça para olhá-la nos olhos. Xena não sabia por que, mas sempre que estava com a escrava, sentia essa necessidade pungente de olhar diretamente em seus olhos. Toda vez que o fazia, sentia-se revigorada, sentia-se viva. Era como se Gabrielle pudesse transmitir uma energia que preenchia as lacunas sombrias de sua alma. Soltou o rosto de Gabrielle e se dirigiu para a banheira.
– Ajude-me a me banhar Gabrielle.
Xena deixou o roupão deslizar para o chão permitindo que seu corpo ficasse todo à mostra.
Gabrielle já estava completamente ruborizada com a atitude da sua ama segurar-lhe o queixo e fazê-la encará-la nos olhos. Porém, quando Xena pediu para ajudar a se banhar ficando completamente nua, sem nenhum pudor, o rosto de Gabrielle começou a pegar fogo. Não sabia para onde olhar e nem como se portar. Nunca havia tomado os cuidados pessoais de um amo, não sabia como fazê-lo. Sempre evitou servir diretamente um amo e agora lá estava ela sendo posta exatamente nesta situação.
“As parcas devem estar às gargalhadas”. – Pensou consigo mesma.
– Vai ficar aí parada? Não tenho a noite toda. – Soltou Xena com um ar de irritação.
Gabrielle se aproximou da banheira rapidamente.
– Desculpe-me, Senhora. O que quer que eu faça?
– Primeiro pegue aquele xarope em cima daquela bancada e lave meus cabelos. Esfregue bem, gosto que meus cabelos fiquem bem macios e limpos.
Gabrielle se dirigiu a bancada, pegou o xarope, se posicionou de joelhos atrás da banheira e atrás de Xena e começou a lavar seus cabelos com o xarope. Gabrielle começou a observar as nuances da conquistadora. Não só em relação a sua personalidade, mas também seus atributos físicos. Gabrielle começava a estranhar a si mesma. Tinha todos os motivos do mundo para sentir muito medo dessa figura a sua frente, no entanto tinha sentido falta de sua presença naqueles dias. Era como se a curiosidade a respeito dessa lenda que lera em tantos pergaminhos e escutara em tantos lugares estivessem nublando sua percepção do perigo que sempre se avizinhava perto dela. O cabelo de Xena era volumoso com fios grossos e macios.
Xena já estava completamente excitada com a massagem que essas pequenas mãos suaves faziam em seu couro cabeludo. Estava a ponto de perder a cabeça e trazê-la para dentro da banheira, mas por algum motivo irracional Xena não queria que essa pequena e delicada figura a visse como uma monstruosidade que não seria tão diferente de seu amo anterior. O simples pensamento de Gabrielle a ver transformada em uma criatura egoísta e dada a atitudes puramente lascivas incomodava Xena e a fazia retroceder em seus pensamentos.
Nesse instante, Anaxágoras forçou a entrada no quarto de Xena empurrando Calina para trás de si. Percebeu a cama feita quase lhe dando a certeza de que Xena não se encontrava no castelo por esses dias como estava desconfiado.
– Senhor Anaxágoras, a Senhora conquistadora não gostará nada disso…
A voz de Calina foi morrendo ao entrarem na sala de banho e ver que Xena se banhava com Gabrielle auxiliando-a. Xena o olhou como se fosse soltar raios de seus olhos para matá-lo fulminado.
Anaxágoras baixou os olhos se desculpando e retornou ao quarto. Xena virou-se para Gabrielle e deu um rosnado para que ela parasse de banhá-la. Saiu da banheira secando-se com nítida ira estampada em seu semblante. Colocando o roupão dirigiu-se ao quarto.
– Agora você passou dos limites Anaxágoras. – Segurou-o pelo pescoço quase o tirando do chão. Xena era quase uma cabeça maior que o homem. – Dê-me um motivo para que não o mate agora mesmo, infeliz.
– Desculpe-me senhora não sabia que estava em seu quarto! – Falou com a voz embargada.
– E por acaso Calina estava de enfeite lá fora? E desde quando eu permito que entre em meu quarto mesmo quando não estou presente? – Agora apertava com mais intensidade o pescoço do chefe do conselho. Este começou a ficar roxo.
Gabrielle estava assustada e olhava agora a conquistadora com medo. Receou que o homem não fosse suportar e morresse sufocado neste mesmo momento pelas mãos da conquistadora. Olhava o rosto de Xena e percebia que estava desfigurado de ódio. Ainda não a tinha visto com tal fisionomia. Neste momento Xena olhou Gabrielle através de sua visão periférica. Sentiu um calafrio ao observar que os olhos da escrava estavam injetados. Isso a irritou por demais.
“Por acaso nunca tinha visto alguém ser morto antes? Por acaso não sabia que ela não permitiria tais abusos por parte de seus subordinados?”
Mesmo sabendo que se largasse este infeliz talvez manchasse sua reputação perante os homens do conselho, não conseguiu suportar a pressão do olhar da jovem escrava. Jogou-o no chão.
Seguiu para o seu escritório sem olhar para trás deixando os três no quarto sem proferir qualquer palavra.
Calina olhava incrédula para a conquistadora enquanto ela se afastava.
“Como ela deixara Anaxágoras vivo depois de já estar possuída por aquele olhar aterrador que a tomava em situações adversas como essa?”
Calina olhou para Gabrielle que estava um passo atrás e agora ela se dirigia para atender o chefe do conselho que se encontrava desacordado no chão. O manipulou e o fez voltar, estava confuso e desorientado.
– Por acaso mandei você fazer isso?
Uma voz irada soava atrás de Gabrielle. Gabrielle agora gelou até os ossos.
– Não, Senhora conquistadora.
– Então por que está ajudando esse bastardo?
– Ele estava inconsciente, senhora. – Agora a voz de Gabrielle não era mais que um fiozinho.
– EU SEI QUE ELE ESTAVA INCONSCIENTE. FUI EU QUEM O DEIXOU ASSIM!!! PARE AGORA MESMO DE ATENDÊ-LO OU QUER SE JUNTAR A ELE?!!
As palavras saíam agora sem controle nenhum pela boca de Xena. Não estava suportando o fato de não ter terminado com o idiota do Anaxágoras e suportava menos ainda ver Gabrielle abaixada o auxiliando. O fato dela colocar as pequenas e suaves mãos em cima daquele porco estúpido estava deixando Xena louca de ciúmes.
“Ciúmes?!! Como assim ciúmes? O que você está pensando Xena?!!! Ciúmes de uma escrava que mal conhece e além do mais… é uma escrava!”
O descontrole total tomou conta de Xena. Pegou Gabrielle pela gola de sua camisa e a levantou com tanta facilidade do chão que parecia que Gabrielle levitava. Aproximou o rosto de Gabrielle do seu. Iria rosnar uma dúzia de palavrões e depois jogá-la longe para que se partisse em dois. Foi nesse momento que Gabrielle por um lapso de segundo levantou o olhar deixando rolar uma lágrima, mas seu rosto dessa vez não tinha medo, estava duro e o olhar não tinha o brilho da pureza e da vida que Xena estava se acostumando a ver. Era um olhar vago e distante. Xena a soltou como se tivesse levado um choque. Gabrielle caiu no chão como um saco de nabos. A vontade de Xena era se abaixar e pegar a pequena garota em seus braços e aconchegá-la, mas esse ato seria o cúmulo da insanidade. Virou-se novamente e bateu a porta que separava seu quarto do escritório.
Calina resolveu agir logo para que a situação não ficasse mais complicada para a pequena escrava. Chamou os guardas do corredor para que levassem o chefe do conselho para seus aposentos. Depois amparou Gabrielle para que se apoiasse nela e a levou rapidamente para seu quarto.
– Gabrielle, você está bem? Está com dificuldade de andar.
– Parece que torci o tornozelo, nada demais, Calina.
– Nada demais! Você não tem ideia da ira que provocou na conquistadora?
– Realmente não tinha ideia de que ajudar alguém ferido poderia despertar esse monstro que acabei de ver. Se isso for valer a minha vida, então que assim seja, pois nunca suportarei ver alguém precisando de cuidados e ter que virar as costas para que eu própria não morra. – Agora Gabrielle falava como um leão ferido. Como se uma parte da confiança que começava a depositar na conquistadora houvesse se quebrado. Exibia no rosto as marcas da decepção.
Xena por sua vez andava de um lado para o outro do escritório tentando entender porque não quebrou ao meio aquela figurinha insignificante que era Gabrielle.
“Veja só Xena, que patética você está. Chamando uma escrava pelo nome! Escravo é escravo.”
Quanto mais Xena se recriminava, mais forte aparecia em sua mente a imagem de Gabrielle caída no chão, jogada por ela mesma. A vontade que Xena tinha de chamar Calina para saber da menina estava rondando tão próximo, que parecia que lhe arrancaria as orelhas.
“Ao Hades, Xena. Vá! Esgueire-se e veja por si só. Assim ninguém precisará saber que está enlouquecendo de vez.”
Trocou de roupa, colocou um vestido comum de lã preto que chegava ao joelho. Um par de botas macias para andar dentro do castelo e saiu para o corredor. Passou pelos guardas como se nem existissem. Nesse momento era assim que tinha que se portar. Todos conheciam seu mau temperamento. Passou pelo longo corredor que unia a ala sul com a ala norte do castelo. Era lá que estavam os alojamentos dos empregados. Desceu as escadas que levavam para os alojamentos chegando a um corredor. De um lado tinha várias portas e do outro um beiral que dava para um dos pátios internos do castelo. Pensou em quanto tempo não fazia uma vistoria naquela parte se maldizendo pela atitude negligente. Chegou a uma porta que reconheceu ser o quarto de Calina e Tarsílio. Se Calina tivesse feito como pediu, a garota estaria por perto. Passado duas portas do quarto de Calina, havia uma porta entreaberta. Agora reconhecia a voz de Calina.
– Menina, você não pode pensar assim. Como sobreviveu todos esses anos sem sofrer uma represália de seus amos?
– Normalmente eles não me queriam por perto e como tinha conhecimentos de cura, sempre que tinha alguém precisando, não se importavam se eu auxiliasse ou não, mas como eu disse Calina, se minha vida depender de ajudar alguém então realmente terei uma vida curta aqui nesse castelo. Não consigo ver alguém em sofrimento e não fazer nada. Assim fui ensinada e assim eu sou. Faz parte de mim, mas pelo visto a senhora conquistadora tem mais apreço por impingir o sofrimento do que pelos próprios motivos que o cercam. Então terei vida curta sim, Calina. Não por querer desacatá-la, mas por que ela nunca compreenderá que para eu deixar alguém em agonia é um sofrimento maior do qual não conseguiria me omitir.
Xena escutava a conversa atentamente. Conseguia compreender a dimensão das palavras da menina. Em outra época, conhecera uma mulher de terras distantes, em que para ela a vida era mais importante do que qualquer coisa. Tentara aprender coisas com ela, mas a sua imaturidade e seu egoísmo não permitiram que absorvesse seus ensinamentos. Nunca mais conhecera alguém como Lao Ma, mas essa escrava tinha uma espécie de vida no olhar que agora estava reconhecendo de onde já havia visto. Tinha que concertar as coisas, mas de uma forma que não se parece uma idiota senil. Continuou escutando a conversa das duas, escondida nas sombras.
– Gabrielle, tenha apenas paciência e mais cuidado. A conquistadora pode ser uma pessoa benevolente às vezes, principalmente quando percebe lealdade por parte de seus subordinados.
“Benevolente? De onde Calina tirou o benevolente? Só me faltava essa agora, uma empregada achar que sou benevolente”.
Apesar da aparente irritação com as palavras de Calina, no fundo elas acariciaram o ego de Xena e ela sorria por dentro.
– Não me falta lealdade, Calina. Sei que fui eu quem pediu para ficar ao seu serviço, mas não consigo suportar ver alguém sendo morto ou ferido sem mais. Quando estava em Tropea, não circulava pelas dependências abertas do castelo. Quando via alguém ferido ou morto, tudo já havia acontecido e confesso que nunca me acostumei. Normalmente, os escravos que eram castigados eu acabava cuidando quando eram levados para o quarto dos escravos. Possivelmente morrerei por alguma reação aparentemente estúpida que venha a ter neste sentido. Confesso também que me horrorizei ao ver os olhos de ódio da senhora conquistadora quando me segurou. Nunca pensei que alguém pudesse ter um lado tão escuro… – A voz de Gabrielle agora minguava, não era mais que um sussurro. – Durante esses dias que estive aqui, achei que poderia ser diferente de Tropea, parecia diferente. Ela parecia diferente “deles”.
Ao ouvir tal afirmação se fez um aperto na boca do estômago de Xena e um vazio se apoderou de seu coração. Não sabia por que, mas para Xena pareceu extremamente importante desfazer essa impressão que dera à pequena Gabrielle. Queria a todo custo que essa garota voltasse a confiar nela e que voltasse a olhá-la com aquele olhar cheio de luz e vida. Esgueirou-se de volta ao seu quarto. Mandou um dos guardas chamar Calina e Gabrielle.
O guarda bateu na porta do quarto de Gabrielle apesar desta estar entreaberta.
– A Senhora Conquistadora mandou chamá-las. Está esperando em seu quarto.
Calina e Gabrielle se entreolharam.
– Já estamos a caminho. – Respondeu Calina.
– Parece que meu julgamento para entrada no Elísios ou no Tártaro veio mais cedo do que esperava. – Comentou Gabrielle.
– Não diga isso. A Senhora Conquistadora não costuma mandar chamar alguém que quer matar. Manda arrastá-lo e pronto.
– Ah sim! Muito observador! – Agora Gabrielle ria da própria desgraça.
Seguiram caladas para o quarto de Xena. Chegaram de frente para porta, se entreolharam.
– Gabrielle, aconteça o que acontecer, mantenha-se calma e responda às suas perguntas com sinceridade, mas veja as palavras que utilizará. Eu sei que sabe usar as palavras. Se Xena a chamou aqui, ela quer uma explicação pelo que fez. Agora depende de você.
Calina bateu na porta. Ouviram uma voz mandando que entrassem. Entraram na antessala, como estava vazia, passaram para o quarto.
Xena estava de costas para a porta, de pé na sacada, olhando para fora do castelo.
– Minha senhora. – Falaram Calina e Gabrielle juntas.
Xena permaneceu calada e imóvel. Ficou assim durante algum tempo. Depois se pronunciou.
– O esforço de trazer aquele inútil de volta valeu a pena?
– Ainda não sei se o senhor Anaxágoras está bem, senhora. Ainda não fui vê-lo. – Respondeu Calina.
– Não foi isso que perguntei Calina e tão pouco foi para você. Preciso conversar a sós com Gabrielle. Vá ver aquele bastardo e me dê a feliz notícia que ficou demente, mas venha só amanhã de manhã. Deixe que me encarregue de Gabrielle por hoje.
Gabrielle baixou a cabeça e Calina a olhou compassivamente.
– Sim Senhora. – Respondeu Calina com um suspiro e dirigiu-se a porta para sair.
– Pode deixar Calina, não causarei nenhum mal a Gabrielle. Não precisa se compadecer de sua amiga ainda.
Calina deixou o quarto calada.
– Venha até aqui, Gabrielle. – Xena agora falava num tom calmo e seguro.
Gabrielle se aproximou e se prostrou de joelhos ao lado da Conquistadora. Xena a olhava de cima e sua vontade era de levantá-la e abraçá-la. Tinha uma vontade irresistível de ter essa garota em seus braços. Não compreendia seus sentimentos, mas quando a via um calor tomava todo seu ser; sentia um estremecimento em seu corpo e uma agonia em seu ventre.
“Pelos deuses! O que estará acontecendo agora? Enlouqueci de vez?”
Todavia era uma sensação maravilhosa que Xena nunca sentira antes por ninguém e estava disposta a descobrir do que se tratava.
– Então? Tente-me explicar porque fez aquilo Gabrielle, mesmo sabendo que eu iria te repreender ou talvez que tivesse uma reação pior ainda. Eu poderia tê-la machucado seriamente.
– A verdade Senhora é que eu não achava que pudesse estar fazendo algo errado por estar acudindo alguém. Não achava que fosse me repreender Senhora. Em minha cabeça não havia nada de mau, porém sei que são pensamentos de uma escrava.
Essas palavras açoitaram a mente de Xena. Não, não eram pensamentos de uma escrava. Eram pensamentos de uma pessoa sem maldade.
– Sabe que não poderei permitir que me afronte assim outras vezes em situações semelhantes, não sabe?
Gabrielle nada respondeu.
“Por que não estou surpresa com sua reação?” – Xena riu por dentro.
– Gabrielle, sente-se nesta cadeira. Preciso conversar muito seriamente com você.
Xena apontou uma cadeira na varanda ao lado de uma poltrona na qual agora se sentava. Gabrielle estava incrédula da situação singular que estava se apresentando naquele momento. Imaginaria tudo na vida, menos uma conversa com um amo, muito menos com a Conquistadora a respeito de uma situação que ela, uma escrava, provocara. Seria mais fácil acreditar que Afrodite se transformara na deusa da guerra que uma coisa como essas acontecer.
Xena pegou um cálice de vinho em uma mesa que estava ao seu lado. Rodou o cálice na mão, aspirou seu aroma. Era uma situação realmente constrangedora e Gabrielle se mantinha com a cabeça baixa. No entanto, Xena nunca fora uma mulher convencional e muito menos se importava com o que os outros pudessem falar ou pensar. Então não tinha o que se desculpar.
– Gabrielle. Sei que não faz parte de sua natureza a violência e a dor alheia. Acredito que já tenha sentido a dor em sua própria carne. – Xena fez uma pausa e passou a observar a reação que suas palavras estavam provocando na jovem mulher. – Vou te contar uma breve história. Há muito tempo conheci alguém como você. Olhos vibrantes e amor pela vida. Não dei muito valor, porque não era o caminho que queria seguir naquela época, como não é o meu caminho hoje também, porém aprendi que posso conciliar coisas que desejo para mim. Não quero que mude, Gabrielle, mas terá que se adaptar a determinadas coisas se não sofrerá e eu terei problemas. Compreende o que quero dizer?
Gabrielle levantou a cabeça e agora olhava a Conquistadora com incredulidade e muita confusão em sua expressão. Xena se sentiu satisfeita com a reação que causara na pequena escrava. Queria angariar a confiança da menina. Por algum motivo isso lhe era muito importante.
– Não sou uma pessoa boa ou afeita a demonstrações de benevolência, mas por algum motivo confio em você. Costumo ter também um bom julgamento sobre a natureza humana, o que não me isenta de cometer determinados erros de vez em quando. Calina te contou a história do antigo curador?
Gabrielle só acenou positivamente com a cabeça ainda a mantendo baixa.
– Pois bem. Esse foi um caso em que me equivoquei seriamente e quase paguei com a vida por esse ato. Não gostaria de me equivocar novamente. Esse é o caso Gabrielle?
– Não!!! – Agora Gabrielle reagia mais energicamente. – Quero dizer, não Senhora. Preferiria que me transpassasse com sua espada a ter que causar alguma dor a alguém, senhora.
– Pois bem, Gabrielle. Esse é o caso. Você prefere que lhe transpassem com uma espada do que provocar algo ruim a alguém. Ou seja, não é só em relação a mim ou a quem esteja ao meu lado e isso é muito perigoso. Vamos supor que em algum momento meus inimigos percebam isso em você. Vamos supor que em um dado momento em que eu esteja fazendo algo que em seu coração você julgue cruel e desumano, mas que é necessário para eu me manter viva e para que mantenha o reino estável e unido. Você acha que meus inimigos não se utilizariam dessa informação para chegarem até mim? Ahh! Gabrielle. Sei que suas intensões são boas, mas isso não muda o que há dentro de muita gente. E eu preciso saber se posso confiar que você não irá fazer nenhuma bobagem que custe a sua vida ou a minha…
– Posso ser sincera, minha Senhora? – Agora Gabrielle ousava olhar diretamente para Xena dado a confiança que a Conquistadora depositara nela.
– É o que espero de você nesse momento, Gabrielle. – Xena agora se perdia nesse olhar que tanto a agradava.
O olhar de Gabrielle se fazia mais intenso. Nunca tinha recebido tamanha atenção de um amo com exceção de seu velho amo curador. Porém, ele nunca a interpelou para saber sua opinião, apenas ensinava o que devia saber para os cuidados com os pacientes e como ela gostava do que fazia, nunca quis aborrecê-lo. Xena também não estava acostumada a receber tão caloroso olhar. Ao contrário de irritar-se como seria de costume com tal demonstração de afeto, agitou um sentimento poderoso em suas entranhas. Definitivamente ela estava gostando dessa sensação. Agora teria que ter cuidado com sua forma rude de sempre tomar o que queria para si. Queria sim, essa menina enfiada em sua cama, mas queria com ela esse olhar que a embriagava. Do jeito que essa menina era, se a tomasse sem mais, essa chama se apagaria em apenas um segundo. E com toda a certeza não era isso que Xena queria. Se quisesse só sexo, isso ela poderia resolver facilmente, mas não era o que queria dessa vez. Queria esse ardor, essa febre, esse fogo vibrante do olhar dessa garota. Teria que ser sutil e ainda não sabia como. Queria que Gabrielle a quisesse também.
“Em que tártaro está pensando agora, Xena. Querer que a garota a queira de boa vontade? Ela é sua escrava e você pode tê-la a hora que quiser! Por acaso não é assim?!”
Não. Dessa vez não era. Não queria assim e era ela, Xena, que não queria assim.
– Bom, Senhora. Entendi sua colocação e acho que é razoável. Certamente com minha forma de ver as coisas não tardaria a lhe trazer problemas. Porém, não sei como me portar de outra forma, ainda. Sou aplicada e aprendo rápido. E de todo o coração, acredito na senhora e em seu governo. Não consigo entender a violência, mas vejo um reino próspero, onde o povo tem o que comer, onde não há a necessidade de escravos para a subsistência mesmo que alguns senhores ainda queiram tê-los, onde há expressão da arte em teatros, biblioteca pública e comércio próspero também. Não compreendo porque tentam lhe tirar do poder com uma administração tão equilibrada. Por isso, acredito que poderia me adaptar a determinadas situações das quais não são fáceis para eu presenciar, porque acredito na Senhora. Sei que se por ventura tenha que utilizar métodos mais… uhhh, mais drásticos por assim dizer… ehh, me esforçarei ao máximo para compreender… Não prometerei que não farei nenhuma bobagem… ehh, pois não passei ainda por situação semelhante, mas prometo que me esforçarei ao máximo. Se fizer alguma bobagem, compreenderei e aceitarei as punições que ocorrerem de meus atos.
Agora Xena se encontrava completamente aturdida com a colocação tão sintética e assertiva da estrutura de seu governo. E estava paralisada com a sinceridade tão categórica e crua das palavras da escrava. Essa garota tinha mais discernimento e mais racionalidade do que ela própria.
Xena se levantou e caminhou até o meio do quarto, tentando ganhar tempo para pensar o que faria agora.
– Muito bem, Gabrielle, o que farei com você agora? – “Bom acho que é hora de surpreendê-la e a todos também”. – Sabe o que eu acho?! Que começamos a nossa relação de uma forma muito ruim e creio que isso eu posso resolver, mas só com sua ajuda.
– Agora eu não estou entendendo, minha senhora! – Os olhos de Gabrielle passaram agora para uma expressão interrogativa.
Xena se aproximou de Gabrielle e segurou suas mãos que se mantinham pousadas em seu colo, a levantou da cadeira e passou as pontas dos dedos levemente sobre o rosto da escrava. Gabrielle se ruborizou e logo acendeu o temor em seu rosto. Não era esse sentimento que Xena queria despertar na escrava, mas não havia conseguido resistir à vontade de saber como era tocar-lhe a pele. Suas narinas se dilataram ao sentir o aroma delicado que emanava da garota. Conteve-se a muito custo e tentou tranquilizá-la e tranquilizar seu próprio afã de tomá-la.
– Calma pequena. Não lhe farei nada de mau. Apenas quero vê-la bem e perceber se posso confiar em você.
Gabrielle soltou um bocado de ar preso em seus pulmões e Xena sorriu suavemente. Com o rosto mais relaxado deu uma permissão silenciosa para que Xena conduzisse uma exploração tátil por seu rosto. Não sabia bem onde Xena queria chegar com este ato, mas não a sentia como uma ameaça. Aliás, essa estranha figura que era sua ama, com suas ações delicadas, as quais nunca poderia imaginar que sucederiam, começava a aguçar a curiosidade de Gabrielle. Começava a sentir também uma estranha sensação de bem estar sob seu toque.
Xena tocava suavemente cada parte de seu rosto e isso estava produzindo um estranho sentimento de plenitude.
”Deuses! As parcas estão me pregando uma peça?”
Xena rompeu o contato e se afastou a contragosto.
– Calina me contou que você auxiliava um de seus amos no hospital que ele mantinha. Pode me afirmar que conseguiria reativar o herbário e tomar conta da sala de medicamentos? Você tem conhecimento suficiente para herdar o ofício de curador desse castelo?
Gabrielle foi pega de surpresa, se encontrava sem palavras.
– Ficou sem palavras, Gabrielle?! – Xena a pegara desta vez. Riu alto e despertou Gabrielle de seu devaneio.
– Senhora, realmente não sei o que dizer… Sim creio que posso recuperar o herbário sim e meu amo me ensinou tudo o que sabia. Outras, as aprendi por mim mesma lendo em muitos pergaminhos de medicina.
– Então é um sim. Você aceita essa função. Pois bem, agora conversaremos sobre lealdade. Quem trabalha para mim não deserta nunca. Não permito; não aceito.
– Minha Senhora, eu não posso desertar, sou escrava.
Essa afirmação não era exatamente o que Xena gostaria de ouvir. Incomodava-a. Era forte demais proferida pelos lábios desta menina.
– Não me importa o que você é Gabrielle e sim quem você é. Eu quero saber se é leal a mim e o quanto.
– Senhora, em minha vida, nunca me foi dado a opção de escolha. Isto é inusitado. Certamente precisaria mais que meia dúzia de palavras para que eu não levasse em conta tudo de maravilhoso que está acontecendo comigo agora.
Xena se regozijou. Estava indo bem até agora.
– Está bem. Há mais um problema. Como eu me livrarei da inoportuna mancha que foi provocada hoje por não ter matado aquele bastardo?
– Bem senhora. Se me permite, poderá dizer que já havia me colocado a cargo das funções do antigo curador. Assim não terá em absoluto de se desculpar e que me repreendeu por me portar daquela forma. E que só poderei fazer daqui por diante o que me permitir e assim não precisará se preocupar também com o que eu possa fazer. Dessa forma, eu só farei o que me consentir pessoalmente.
“Menina bem esperta. Talvez por isso esteja me agradando tanto”.
– OK! Acredito que você já esteja entendendo como as coisas vão funcionar, Gabrielle. Agora vá menina. Amanhã terei muito a fazer. Passe no quarto de Calina para tranquilizá-la e peça para que esteja amanhã aqui antes do nascer do sol. Não quero que você fale com ninguém a respeito do que se passou aqui nem de nossa conversa. Eu me encarregarei disso.
– Sim, minha senhora.
Gabrielle se prostrou a frente de Xena de joelhos, pegou sua mão e a beijou reverentemente. Xena estremeceu com o toque dos lábios da escrava em sua mão. Sua vontade era levantá-la e beijá-la ardentemente, sentir aqueles lábios colados aos seus. Conseguiu apenas fazer um gesto com a mão para que ela saísse.
Assim que Gabrielle saiu Xena pode relaxar com seus próprios pensamentos.
“Deuses, só consigo ter reações estúpidas com essa menina! O que há comigo afinal? Ter um novo curador… Ter essa garota como minha curadora!”
Nesse momento sentiu um cheiro no ar e não gostava nada do que sentia…
– Ares!!!! Depois de tanto tempo, o que quer de mim agora?!!
– Como consegue Xena?
– Você fede.
– Muito encantador. Vim porque você precisa de uma ajudinha.
– Não quero nada de você, Ares. Já nos resolvemos há muito tempo.
– Vejo que está se perdendo, minha cara. Essa garota vai ser sua derrota.
– Vindo de você, agora tenho certeza que o que estou fazendo é o correto.
Ares fechou o semblante e sumiu no ar, mas não sem antes sentenciar.
– Não diga que não a avisei.
“E essa agora, porque Ares apareceu depois de tantos anos? Que tártaro!”
XGXGXG
Gabrielle seguia pelos corredores, ainda torpe com tudo que ocorreu na presença da Conquistadora. Chegou à ala dos empregados e bateu a porta de Calina. Esta atendeu e arregalou olhos ao ver Gabrielle ilesa. Se bem que a Conquistadora garantiu que não faria nada com a menina e Calina sabia que era uma mulher de palavra.
Gabrielle estava radiante de alegria, segurava as mãos de Calina e a rodava no corredor e ria.
– O que aconteceu? Conte-me. Você vai me matar de curiosidade!!!
– Aconteceu a coisa mais maravilhosa do mundo! Uma coisa que eu jamais imaginaria em meus sonhos!
– Gabrielle pare e me conte.
– A conquistadora me nomeou a curadora do palácio! Sabe o que isso significa para mim, Calina? É melhor que minha própria liberdade! Poderei ajudar pessoas, poderei ler e aprender em muitos pergaminhos! Poderei até mesmo escrever meus próprios pergaminhos!
– Como isso aconteceu?!! – Calina estava realmente confusa e completamente abismada.
– Não posso lhe contar exatamente como aconteceu, mas a Conquistadora disse que quer vê-la amanhã antes do nascer do sol. Ela disse que ela mesma quer notificar e acredito que lhe contará amanhã.
Xena mal conseguiu dormir. As lembranças do rosto de Gabrielle a assombraram a noite inteira. Não conseguia parar de pensar naquele rosto sereno, suave e dócil, com uma tez deliciosa ao toque. Estava agora surtando de tamanha excitação. Era fácil se tocar pensando em Gabrielle. Chegava ao orgasmo com tamanha facilidade que chegava a se assustar, mas não se sentia saciada. Queria-a ali, com ela. O problema é que não queria só a menina. Queria que ela a quisesse também. Quando pensava em tomá-la, pensava na dor que causaria e que apagaria aquela luz que tanto a atraía. Pensava naqueles olhos verdes resplandecentes se apagando ao encontrar a decepção dos atos que Xena pudesse gerar. Isso esfriava qualquer atitude mais agressiva que Xena pudesse pensar a respeito dela.
Calina bateu na porta de Xena logo cedo já com seu desjejum nas mãos.
– Entre – Xena se sentava em sua poltrona na varanda, a mesma em que conversara com Gabrielle. Estava de costas para o quarto.
– Senhora, disse que queria me ver cedo. – Calina entrou depositando a bandeja na mesa do quarto de Xena.
– Está surpreendida, Calina? Achava que faria mil pedaços de Gabrielle?
– Bem senhora, a reação que teve certamente não foi exatamente o que eu esperava. Mas a senhora tem tido reações um pouco inusitadas ultimamente, devo confessar.
– Calina, você tem sido mais que uma empregada para mim. Você sabe, não sabe? Assim como seu esposo tem sido um companheiro valoroso e leal. Você tem sido uma confidente e muitas vezes uma conselheira. Sei que tenho um péssimo gênio… – Xena fez uma pausa.
Calina sabia que era a forma de Xena se desculpar por seus arroubos. Compreendia.
– E agora mais do que nunca, preciso contar com as poucas pessoas que ainda confio. Vamos passar por momentos novamente muito difíceis. Mais uma batalha, mais conspirações, deuses, quando irá acabar? E essa garota… Me pegou de jeito.
Calina compreendeu onde a conversa ia parar. Sorriu e agradeceu a Afrodite por ter dado a Xena a oportunidade de uma vez na vida saber o que era querer bem a alguém.
– Pela primeira vez não sei exatamente o que fazer. O conselho vai se reunir. Sei o que lhes direi. Sei o que farei para vencer novamente esses cretinos que cercam o governo. Mas não sei o que fazer com ela. Ela me assusta… Quero-a. Mas não a quero a qualquer custo. A quero verdadeiramente. Quando sair por essa porta hoje Calina, haverá sangue. E não sei se suportarei vê-la me rejeitar por isso.
– Xena. Ontem você deu a essa menina tudo o que ela mais queria, mais até que a própria liberdade. Ouvi de sua própria boca. Não sei o que conversaram, deixei-a lá na sala de medicamentos, ela estava exultante dizendo que se encarregaria de limpar a sala hoje e começaria a se ocupar de reestabelecer o herbário. Parecia que tinha ganhado o mundo. Sei que é uma menina pura e boa. Tudo que fizer será para um bem maior. Talvez leve algum tempo para se acostumar com algumas atitudes, mas é inteligente e percebe o que está por trás das coisas, se por ventura falhar será por pura ingenuidade, não por falta de lealdade.
– Esse é o problema, Calina. Tenho inimigos e não posso vacilar…
– Quer uma opinião sincera, Xena?
– Só se não for nenhuma bobagem do tipo, se declare para ela.
Calina riu com gosto.
– Não, Xena. Não imaginaria você fazendo algo desse tipo. Mas vá ao herbário, veja a felicidade que você proporcionou com seus próprios olhos e você saberá como agir. Saberá o que falar para que ela aceite suas decisões e conseguirá espantar esse fantasma que te aflige. Conseguirá lutar sem se preocupar.
Nesse momento Xena se virou e se deteve um breve momento para olhar para sua amiga.
– Ontem Ares me visitou. Disse que ela me traria problemas.
– Desde quando você lhe dá ouvidos? Não sabe o que ele sempre quis de você? Se ele se preocupa com essa menina, que para ele seria a criatura mais insignificante da face da terra, é porque seu intento ficará mais distante agora.
Xena sorriu para Calina apenas com o olhar. Sabia que o que ela dizia fazia sentido.
– Está bem, Calina. Tomarei meu desjejum e irei ao herbário. Diga para Tarsílio para colocar nosso plano em ação. Ele saberá o que digo… e Calina… Obrigada.
Calina sabia que essas simples palavras eram realmente difíceis de serem proferidas por Xena. Era algo realmente significativo. Cumprimentou-a com o olhar para não constrangê-la e se retirou.
Xena agradeceu pela paciência e discrição de Calina. Tomou o desjejum, pois teria um dia cheio. Saiu em direção ao herbário.
Chegou ao pequeno jardim que antecedia ao anexo onde se localizava a sala de medicamentos e ficou verdadeiramente espantada com a mudança. Estava limpo, sem ervas daninhas e resplandecia sob o sol. A porta do anexo estava lavada e lubrificada sem a ferrugem que corroía há anos. Entrou sem fazer barulho. Mais uma vez ficou assombrada com o que viu. A sala estava organizada, sem teias de aranhas e completamente limpa. Olhou ao redor e não avistou a pequena curadora. Encaminhou-se para a porta que dava para o herbário, estava entreaberta. Abriu-a um pouco mais e observou a pequena figura de joelhos cantarolando algo e separando cuidadosamente com as mãos as ervas inúteis das que tinham algum valor curativo. Ficou ali parada, apenas apreciando a visão de tão singela criatura.
“Como ela, uma mulher que carregava tantas culpas poderia querer que essa menina simples, sem malícia fosse entender as suas ações?”
Nesse momento, atraída pelo forte olhar de Xena, Gabrielle elevou o olhar e rapidamente seguiu até a Conquistadora e se ajoelhou diante dela. Não era isso que Xena esperava, ou melhor, que ela queria. Estava fragilizada. Queria tanto abraçar essa garota… Pegou Gabrielle pelos braços e a levantou do chão. Olhou-a intensamente. Gabrielle não estava compreendendo a Conquistadora, mas as suas mãos em seus braços transmitiam um alento jamais sentido e seu olhar era tão caloroso e aconchegante que não conseguiu desviar. Mesmo sabendo que poderia ser repreendida com tal atitude, manteve seu olhar para colher mais daquele acalentador azul…
Gabrielle sabia que não estava certo o que fazia. Ainda nos braços de Xena, interrompeu o momento abaixando seus olhos e questionando a Xena se havia feito algo errado.
– Sim, você fez… – Essas palavras estremeceram Gabrielle fazendo-a elevar novamente o olhar. – Tirou os seus olhos de mim.
Os olhos de Gabrielle eram nesse momento pura confusão. Porém, acendia um brilho diferente que Xena pode divisar como interesse em suas palavras incentivando-a a continuar.
– Por acaso não percebeu ainda o que sinto por você, pequena? Que quando estou com você, me perco?!
Xena depositou um beijo terno no topo da cabeça de Gabrielle.
– Oh! Xena…
Pela primeira vez Gabrielle a chamava pelo nome. Que doce era em seus lábios… Xena a abraçou fortemente. Uma felicidade sem fim a invadia. Não queria mais se questionar sobre seus sentimentos por essa garota. Não queria mais se recriminar. Não sabia ao certo o que estava acontecendo, mas gostava do que estava sentindo…
– Gabrielle, não tenho tempo e não posso lhe explicar o que acontecerá hoje. Não será muito bom ficar por aqui. Mas quero que confie em mim. Talvez faça coisas que você não irá gostar. Sei que seria muito pedir para compreender o que faço, mas gostaria que entendesse, por que faço. Estou em perigo e qualquer um que esteja comigo também está, o reino está sob um golpe e não permitirei que tirem a minha paz e a paz desse reino. Quero que vá com Calina e peço que não me julgue pelo que farei, pelo menos até eu estar novamente com você.
– Xena, o que está pensando em fazer, não fará sozinha, fará?
– Por que pergunta?
Gabrielle baixou a cabeça esmorecida.
– O que houve pequena? Algo te aflige?
– Às vezes… sonho.
– Como assim? Tem visões?
– Às vezes sim… Mas só às vezes acontece…
– Sonhou com o que, Gabrielle?
– Com o conselho… Nem todos estavam na sala… Mas os que estavam a surpreendiam. Estavam todos armados…
Um sentimento de ira começou a se apoderar de Xena.
“Então quer dizer que eles já estavam bem adiantados em seus planos!”
– Sonhou mais alguma coisa, Gabrielle?
Gabrielle se encolheu e ruborizou. Não poderia dizer o que havia sonhado. Era muito íntimo e ela se envergonhava.
Xena segurou seu queixo e a olhou, começava a achar que Gabrielle sabia mais sobre seus sentimentos do que ela estava demonstrando. Não conseguiu resistir, aproximou os seus lábios e tocou os lábios da pequena curadora. Gabrielle não se afastou, permaneceu em seus braços e enlaçou delicadamente a cintura de Xena incentivando-a a intensificar o toque. Xena entreabriu os lábios deixando um suspiro sair inadvertidamente. Estreitou mais o toque. Mordiscou levemente os lábios de Gabrielle extraindo da jovem um pequeno gemido. Ousou invadir sua boca com a língua que foi acolhida afavelmente. Seu corpo todo vibrava e a cálida pele de Gabrielle aumentava a coloração e afogueava sob suas mãos.
Xena a muito custo se desvencilhou do contato, já estava sem ar, mas sua vontade era seguir com esse maravilhoso beijo pela eternidade. Não conseguia entender como uma simples jovem estaria lhe proporcionando os mais incríveis sentimentos que jamais pensara existir. Mas precisava nesse exato momento se adiantar, não podia se demorar, pois os conselheiros já deviam estar se preparando para abordála.
Xena olhou Gabrielle. Ainda estava de olhos fechados e parecia que estava flutuando. Era um sonho saber que podia causar algo tão sublime à outra pessoa. Principalmente a alguém que descobrira ha tão pouco tempo que queria tão bem. Era magnífico. Definitivamente era uma sensação melhor do que causar a dor, mas não podia pensar nisso nesse momento. Tinha que agir se pretendia preservar o que conquistara e que as coisas fossem diferentes daqui para frente.
– Gabrielle, precisamos ir. Não a deixarei aqui, pois as coisas irão ficar muito feias.
– Por favor, Xena, tome cuidado! Eles tentarão te matar… – A voz de Gabrielle sumia.
– Não se preocupe pequena, talvez as coisas não saiam como planejei, mas dará tudo certo.
Ouviram barulhos na sala de medicamentos, Xena afastou Gabrielle para trás de si e desembainhou a espada. Pediu para que Gabrielle fosse para o fundo do herbário próximo ao muro.
“Então estão me caçando? Está pior do que pensei! Quando segui Sileno ele falou em Tropea, mas essa aqui debaixo de meu nariz!!!!”
Xena se colocou atrás da porta. Começou uma batalha sangrenta, os soldados saíam e ela manipulava a espada com uma destreza matando sem vacilar. Xena não queria matar seus soldados.
“Mas que estúpidos! Eles acham que conseguem me superar? Por acaso não os derroto com facilidade nos treinamentos? Não acredito que Tarsílio tenha me entregue!”
Quando girava a espada em sua mão se posicionando para atacar mais um grupo, viu um vulto de homem corpulento atacando-os por trás. Era Tarsílio que vinha auxiliá-la. Seu coração se aquietou. Não gostava de pensar que seu mais antigo capitão, a quem deixara tantas vezes a sua vida nas mãos pudesse ter se vendido.
Xena voltou a atacar até que o grupo de soldados estava completamente derrotado.
– Tarcílio, o que houve?
– Um levante, Senhora. Alguns nobres e aliados não estão mais no palácio. Ou saíram ontem na madrugada ou estão presos por não compactuarem com os traidores. Não consegui descobrir, pois o exército está dividido. Uma parte está com os nobres do levante, a outra está conosco. O pátio central está um mar de sangue, Senhora. Temo que se não agirmos, possamos nos enfraquecer.
– Muito bem Tarsílio, quero que leve Gabrielle para junto de Calina, depois leve-as para o meu estábulo particular. Teremos que tirá-las daqui com segurança.
– E o que irá fazer, Senhora? Não quero deixá-la só.
– Não se preocupe, Tarsílio. Irei para o pátio central organizar uma retirada. Devemos nos poupar se quisermos nos reestabelecer.
– Deixaremos o castelo para esses bastardos?
– Primeiro o primeiro, Tarsílio. Sim, vamos deixar o castelo. Iremos um pouco mais ao sul. Tenho uma pequena fortaleza da qual poderemos nos utilizar para nos reorganizar. Quero que pensem que nos venceram, quero que nos subestimem. Depois quero que vá ao estábulo principal, não deverá ter trabalho por lá, pois todos devem estar se empenhando na batalha do pátio. Arrume vários cavalos para que quando eu chegar com os homens estejam prontos para montar e sair. Você irá com os homens e me encontrará nas cavernas de Epidaurus.
– Sim, senhora. – Tarsílio foi ao encontro de Gabrielle enquanto Xena se dirigia ao pátio.
Quando Xena chegou ao pátio era uma confusão. Muitos soldados estavam lutando, mas quem enfrentava quem? Todos sob o mesmo uniforme, a mesma armadura. Se não fossem por se conhecerem tão bem, se não tivessem tanta certeza de quem estaria com Xena e quem não, poderiam todos se matar facilmente.
Xena deu um grito sonoro e característico para chamar atenção de todos e saltou em uma cambalhota no meio da batalha. Olhou para o beiral do castelo onde muitas vezes ficou observando os acontecimentos de Corinto. Lá estavam alguns nobres que ao olharem Xena, encolheram-se sob o seu olhar, mas mantiveram um sorriso dissimulado nos lábios.
Xena se posicionou ao lado daqueles que estavam a defendendo e ordenou que fossem recuando aos poucos até a entrada do castelo. Pediu que se posicionassem em duas fileiras em arco e as pontas das fileiras fossem se retirando pelo portão até os estábulos. Quando chegaram à frente dos estábulos, Tarsílio já estava a postos com os cavalos. Mandou que os soldados montassem e seguissem Tarsílio. Muitos soldados resistiram à ordem, não queriam deixá-la, mas Xena ordenou com mais veemência. Foram montando e se retirando ainda sob o ataque dos outros soldados, mas tinham a vantagem dos cavalos. Xena conteve muitos soldados que estavam atacando seus soldados enquanto montavam, Xena manipulava a espada inclemente, por vezes chegava a matar dois soldados de uma só vez. Xena montou por último e seguia atrás do pelotão. Foram disparadas flechas contra os cavalos. Xena estava dando cobertura a seus soldados para que conseguissem atingir a parte externa do castelo e assim pudessem fugir. Conseguiu segurar uma sequência de flechas disparadas contra eles. No entanto, o ataque de flechas era maciço e Xena foi atingida por uma flecha na coxa esquerda pouco antes de cruzar os portões. Quando chegou do lado de fora do castelo, deu a volta pelo outro lado, entrou em um caminho estreito, desceu por um pequeno túnel e saiu novamente dentro do castelo, mas em seu estábulo particular. Encontrou ali Calina e Gabrielle à sua espera. Desmontou sangrando muito. Gabrielle foi ao seu encontro, levava algumas coisas na mão. Calina estava assustada e ficou atrás de Gabrielle.
– Senhora conquistadora, está muito ferida! Como sairemos agora, senhora?
– Calma Calina! Assim que eu retirar isso da minha perna, sairemos daqui. Ainda posso montar muito bem.
– Venha cá, temos que tirar essa flecha e estancar o sangue. – Gabrielle falava com propriedade e segurança. Diferente daquela garota que Xena sempre via.
– É! Parece que sabe o que está fazendo… – Xena olhou Gabrielle com imenso carinho, até a hora em que Gabrielle empurrou a flecha para atravessá-la.
– Urrh! – Urrou e soltou algumas imprecações.
– Pelos Deuses, não dava para avisar?
– Não! Se eu avisasse talvez doesse mais. Agora terei que quebrar a ponta antes de retirá-la. Essa vai doer também.
– Mais do que a outra?!! Urrrh!
– Dessa vez eu avisei.
– Gabrielle… Urrrhhh, deuses mulher, não avisou que retiraria…
– Não posso ter pena nessa hora. Você já deveria saber. Vejo que tem outras cicatrizes em seu corpo.
– Tá certo. Vamos acabar logo com isso, não é seguro ficarmos aqui…
– Tenho que cauterizar se não, sangrará pelo resto do dia.
– Vá em frente, pegue aquele ferro de forja, a lenha ainda arde no fosso da caldeira?
– Ainda tem um resto de lenha ardendo. Isso resolverá.
Gabrielle colocou o ferro nas brasas do fosso. Deixou que ficasse em brasa viva. Pegou o ferro e aplicou sobre o ferimento. Mais uma vez Xena soltou imprecações, mas segurou sua dor. Gabrielle aplicou também na parte de trás da perna, por onde a flecha tinha aberto um rasgo. Xena dessa vez quase perdeu os sentidos. Gabrielle apôs uma compressa e passou panos como uma atadura para manter o local limpo.
Xena começava a se recuperar.
– Xena, desculpe ter causado tanta dor, mas sem isso você poderia perder muito sangue e talvez o ferimento não cicatrizasse. – se desculpou Gabrielle.
– Sei, sei. Agora vamos, não poderemos ficar muito tempo aqui. Apesar de poucos saberem desse local, o castelo já está tomado. Não podemos vacilar.
Xena pegou Argo III, disse para Calina montar o outro cavalo e virou-se para Gabrielle.
– Sabe montar? – Xena sabia que muitos escravos não sabiam, normalmente seguiam a pé ou em carroças com seus amos.
– Sei sim. Quando visitava doentes tinha que ir a cavalo…
– Então virá em Argo comigo.
Xena montou em Argo e estendeu a mão para que Gabrielle se apoiasse e subisse na sela a sua frente.
– Calina, vá na frente e com muito silêncio. Além de sairmos temos que nos afastar de Corinto antes que possamos esticar o passo, não podemos chamar atenção. Siga em direção à floresta. Não quero seguir a estrada, temos que despistá-los.
– Sim, Senhora. Como está Tarsílio, senhora?
– Não se preocupe. Ele está bem, segue a frente com o exército. Nos encontraremos em breve.
Calina fez como Xena pediu. Estavam ao longo da caminhada sem emitir o menor som. Os cavalos praticamente caminhavam, parecia a todas que levavam uma eternidade para chegar a entrada da floresta. Quando entraram na floresta Xena tomou a frente e disse que ia começar a galopar, virou-se para Calina.
– É capaz de seguir em uma marcha forte, Calina?
– Sim Xena. Não se preocupe comigo, eu a acompanho. Esqueceu que sou mulher de seu Capitão?
Xena sorriu de lado e começou a galopar. Calina acompanhava com dificuldade, mas conseguia manter o ritmo. Ao anoitecer, exaustas e com fome chegaram às cavernas de Epidaurus. Alguns guardas estavam na boca da caverna de prontidão. Xena apeou e segurou Gabrielle para que descesse do cavalo. Entregou as rédeas para um dos guardas e disse para cuidar muito bem da égua. Calina também desceu e entregou seu cavalo para o outro guarda.
Entraram na caverna e encontraram os homens já acomodados em volta de fogueiras. Tarsílio veio ao encontro delas, abraçou Calina.
– Eu já estava ficando preocupado. Vi quando a atingiram com uma flecha. Como está?
– Doendo muito, mas estou bem. Gabrielle tratou o ferimento, mas preciso de descanso.
– Montei um local para você no fundo da caverna para que fique mais reservada. Conseguirá descansar melhor. Caçamos também alguns coelhos e estamos preparando um guisado, assim que estiver pronto, levarei para você se alimentar.
– Obrigada, Tarsílio.
Gabrielle olhou ema volta e viu alguns homens feridos. Havia trazido consigo algumas ervas que havia colhido no herbário antes de sair. Virou-se para Xena e disse.
– Se me permite senhora, acho que posso auxiliar alguns soldados que estão feridos!
Não agradava a Xena vê-la pondo as suas delicadas mãos nos soldados, mas sabia que isso faria com que os homens a respeitassem e também precisaria do contingente inteiro.
– Pode ir pequena, mas não dê a eles mais do que o necessário! – Deu um tom de severidade maior à última frase.
– Não se preocupe senhora. Depois que me certificar que todos estão bem, passarei o resto da noite a seus serviços…
Apesar da assertiva de Gabrielle, Xena não se intimidou.
– Assim espero!
Após uma marca e meia, Gabrielle ia ver Xena que repousava no fundo da caverna com uma tocha acesa próxima. Levava na mão uma tigela de madeira cheia de guisado de coelho. Quando se aproximou, achou que Xena estava adormecida e já ia se retirando.
– Está indo onde, pequena curadora?
Gabrielle virou-se novamente.
– Pensei que dormia.
– Essa maldita dor não deixa nem um touro dormir…
Gabrielle se aproximou e depositou a tigela no chão ao lado de Xena, se ajoelhou tentando ver a atadura.
– Deixe-me ver o ferimento, não era para doer mais tanto assim…
Tirou a atadura que envolvia a perna de Xena e se deparou com uma grande inflamação. Assustou-se com o inchaço e a quentura da pele.
– O esforço da cavalgada deve ter forçado o ferimento… Está infeccionando…
– E o que pode fazer?
– Terei que abri-lo novamente para drenar. Isso doerá mais que antes.
– Faça o que tem que fazer, mas tente consertar isso. Não poderemos ficar enfurnados nessa joça por muito tempo, senão os homens começam a adoecer.
– Está certo. Prepararei um emplastro com algumas ervar. Colocarei também uma erva sedativa, depois abrirei para drenar e colocarei o emplastro em cima. Agora, enquanto preparo tudo, tente comer algo.
– Não sinto fome.
– Provavelmente é por conta do ferimento, deve estar com um pouco de febre, mas coma mesmo assim. A pior coisa é quando o corpo enfraquece.
As palavras de Gabrielle eram quase uma ordem. Xena estava realmente impressionada com a menina. Era segura no que fazia. Nem parecia uma escrava. Nem havia mais resquícios daquela garota suja e andrajosa de Tropea.
Xena elevou um pouco o tronco e apoiou-se em uma pedra, pegou a tigela e começou a comer.
Gabrielle se afastou, mas estava satisfeita. Se Xena pudesse ver na penumbra, veria um pequeno sorriso marcando a face de Gabrielle.
Quando Gabrielle retornou, Xena dormia um sono agitado e estava suando muito. Gabrielle não gostou de seu aspecto. Chamou Calina e Tarsílio.
– Ela está com febre do ferimento. Tenho que acordá-la, mas não sei se estará em suas faculdades. Terão que me auxiliar para tratá-la. Terei que abrir o ferimento para drenar para só então colocar o emplastro. Calina, terá que mantê-la com panos frios na testa e Tarsílio, possivelmente terá que segurá-la enquanto abro o ferimento para limpá-lo.
– Faremos isso, Gabrielle.
– Muito bem, então vamos começar.
Gabrielle tentou acordar Xena, mas as palavras que Xena proferia eram desconexas. Tarsílio então a segurou com força, pois sabia ser muito difícil alguém conseguir conter Xena, se essa não o quisesse.
Gabrielle deixou uma pequena faca na brasa durante algum tempo. Pegou a faca e fez uma pequena incisão em cima do corte anterior, Xena se debateu, esbravejou, mas para sorte de Tarsílio ela se encontrava fraca da febre.
Com os dedos polegares, Gabrielle apertou as extremidades do ferimento já aberto, um líquido escuro, mistura de sangue e com algo leitoso começou a brotar e escorrer do ferimento. Limpava e apertava até que saiu só sangue vivo. Limpou novamente com panos fervidos e depois colocou por cima uma massa feita de ervas maceradas, tapou novamente com uma bandagem. Xena agora se acalmava e resvalava para um sono mais tranquilo.
Xena dormiu durante uma noite e quase o dia todo. Quando acordou viu Gabrielle ao seu lado com um profundo par de olheiras velando seu sono. Espantou-se um pouco.
– O que houve com você? Em que parte do dia nós estamos?
Tarsílio se aproximou e intercedeu.
– Você teve muita febre, Xena. Sua pequena limpou seu ferimento e velou seu sono a noite inteira. Não permitiu que revezássemos. Está acordada até agora, o sol já passa da marca da metade do dia. Creio que ela deve dormir agora para se recompor, não acha?
Xena a olhou com estrema compaixão.
– Vá dormir agora, Gabrielle…
– Mas…
– Não há mas… Não discuta comigo. – Falou num tom mais áspero. – Vá! Estou bem. – Falou mais carinhosamente.
– Está bem, mas se voltar a se sentir mal de novo, me chame… – Seu pedido era quase uma súplica.
– Pode deixar Gabrielle. Não sentirei mais nada.
Gabrielle se acomodou um uns panos no chão ao lado de Xena. Xena a olhava nesse momento com certa admiração e satisfeita de tê-la por perto.
“Quem diria que a pequena fosse causar admiração até em meu capitão mais antigo?”
Xena se levantou e começou a caminhar entre seus homens. Alguns estavam feridos, mas muito bem cuidados. Outros a reverenciavam quando ela passava, mas sabia que era por pura convenção. Eles sabiam que quando estava com eles não exigia nada que eles não pudessem ter. Chegou até a entrada da caverna, estava acompanhada de Tarsílio.
– A fortaleza da qual falei não se encontra muito longe daqui. Quando a noite cair, quero seguir para estarmos acomodados antes do amanhecer. Assim não teremos que nos preocupar muito com batedores de Corinto, eles podem ser tão imbecis a ponto de acampar a noite para tentar descobrir nosso rastro só amanhã.
– Mas também não teremos muita oportunidade de apagar nossos rastros.
– Por isso, quero-o comigo na retaguarda para que façamos esse serviço. Sabe que esses meninos não têm essa capacidade. Têm muita coragem, mas têm que aprender muito o que é uma batalha.
– Xena, fico me perguntando se teríamos mesmo que sair de Corinto!
– Os nobres não estão sós, Tarsílio. Infelizmente temo que fomos traídos. Sileno não retornou a Corinto e ele negocia com os persas a rota de venda de escravos e armas. Ou Aahbran está com eles ou está cercado e isso temos que descobrir antes de montar um ataque.
– Não acha que nos vendeu, acha?!!
– Espero que não, amigo… Espero que não…
Xena olhava ao longe e sentia o peso da desconfiança. Era uma amizade de muitos anos… era uma lealdade de muitos anos…
– Vamos, Tarsílio. Temos que animar a tropa. Vamos nos sentar junto aos homens.
Retornaram e se juntaram à conversa dos soldados. Ao cair da noite, Xena foi ver a pequena curadora. Dormia como um anjo… Aos olhos de Xena, parecia verdadeiramente um anjo, mas tinha de acordá-la, tinham que comer algo e marchar para a fortaleza.
– Gabrielle… Gabrielle, acorda. Temos muito a fazer ainda. – Xena balançava suavemente Gabrielle pelos ombros.
– Huuuumm! Já é manhã?
Xena sorriu ao ver a preguiça lânguida de Gabrielle. Ela era realmente muito bonita.
– Não, Gabrielle. Já é noite e temos que nos preparar para partir. Ficamos muito tempo aqui na caverna. – Gabrielle abriu os olhos e percebeu onde estavam.
– Oh! Desculpe-me, Xena, digo, Minha Senhora. Acho que estava muito cansada e peguei forte no sono…
– Não tem problema, Gabrielle. Sei o que fez por mim, Calina me contou. Se não fossem seus cuidados, talvez perdesse a perna. Devo lhe agradecer e se pudesse a deixaria dormir um pouco mais, mas nós temos de lutar contra o tempo agora. Não podemos deixar que os nobres se articulem e recebam auxílio dos persas. E quando estiver só comigo, pode me chamar de Xena. – Xena não sabia por que deu essa permissão para Gabrielle, ou melhor, sabia… Gostava de escutar Gabrielle pronunciar seu nome. Seu coração disparava e um calor subia por suas entranhas. O fato é que gostaria de ouvi-la bem pertinho de seu ouvido e que ela estivesse enfiada em sua cama quando falasse seu nome, mas isso teria que esperar um pouco e até lá se contentaria em apenas escutar a jovem.
– Obrigada, senhora!
– Fez um bom trabalho com os homens também. Eles estão agradecidos e creio que aceitarão você como curadora com mais facilidade.
– Xena, deixe-me olhar a sua perna. Tenho que saber se já pode montar.
– Mesmo que não possa, minha amiguinha preocupada, não terei outra escolha.
– Sempre há escolhas, senhora. Para uma pessoa livre, sempre há escolhas…
Gabrielle não falou com nenhum tipo de ressentimento, mas as palavras doeram muito dentro de Xena. Sabia que não tinha sido ela que havia colocado Gabrielle na condição de escrava, mas não gostava de pensar que ela pudesse se ressentir com Xena por não dar-lhe uma oportunidade de liberdade, mas e se desse, provavelmente iria embora procurar os seus. Isso fazia Xena sentir uma estranha agonia. Não gostava de pensar que Gabrielle pudesse deixá-la.
Gabrielle tirava a atadura da perna de Xena com cuidado. A vermelhidão havia diminuído a quase nada e os pontos que fizera estavam quase secos. Gabrielle avaliava atentamente e passava os dedos por cima do ferimento. Xena se arrepiou até o último fio de cabelo, sob o toque delicado das pontas dos dedos de Gabrielle.
“Pelos deuses! O que essa garota faz comigo?”
Xena parecia ter visto um pequeno sorriso no rosto da curadora.
“Essa não! Agora zomba de mim!”
Mas foi um breve momento e Gabrielle se voltou para Xena seriamente para sentenciar.
– Enquanto ainda estivermos aqui, deixará o ferimento respirar, mas quando nos pusermos em marcha, teremos que vendá-lo novamente para que as impurezas da estrada não afetem a cicatrização. – Gabrielle sorriu para Xena.
Xena se perdeu completamente. Só conseguiu assentir com a cabeça.
“O que há, Xena?!! Você está patética!!”
Xena se levantou sem nada dizer e virou as costas caminhando para os soldados.
Gabrielle percebeu que a havia constrangido, mas nada falou. Achava graça na forma com que a conquistadora reagia a ela.
“Será que não estou me iludindo? Ela me trata bem, sim. Mas não será apenas porque sou útil?!”
Gabrielle tinha os pensamentos em um turbilhão, estava começando a se afeiçoar muito a Xena. O beijo que ela havia lhe dado poderia ser só porque a queria desfrutar. Afinal ela era sua escrava, poderia fazer o que quisesse.
“Não era assim que as coisas eram de verdade?”
Gabrielle se levantou e foi ao encontro dos soldados feridos para verificar o progresso. Virou-se para um deles.
– Deixe-me ver seu braço. Como está? Ainda dói muito?
– Não, minha senhora. Já consigo movê-lo bem melhor e agora não dói quase nada.
Xena observava de longe e estranhou a forma com que os soldados estavam se referindo a Gabrielle. Seus soldados não se importavam com os escravos muito menos lhes prestariam reverências, mas parecia que o status que Xena havia concedido a Gabrielle junto com o fato dela ter se empenhado para tratá-los e também o fato de nenhum homem sequer ter perecido aos seus cuidados, fez com que ganhasse o respeito das tropas. Passaram a não discriminá-la e começaram a tratá-la com reverência. Xena não sabia se isso era bom ou ruim.
“E se ela fizer alguma bobagem que eu tenha que castigá-la? Não, ela não faria nada para que a castigasse…”
Xena continuou a observando e esperava na fila para pegar sua porção de comida. Quando chegou sua vez, pegou duas tigelas e estendeu para que o cozinheiro enchesse; o cozinheiro não falou nada, não se arriscaria a deixar Xena furiosa. Encheu as duas tigelas em silêncio. Xena apenas assentiu com a cabeça. Caminhou até onde Gabrielle estava. Dava atenção aos feridos e Xena se incomodava um pouco vendo seus soldados olhando-a passar. Quando Gabrielle passou entre alguns soldados que estavam comendo perto do fogo, um fez menção em pegá-la pela cintura. Xena parou em frente quase o transpassando só com o olhar. O soldado imediatamente retrocedeu baixando o olhar. Gabrielle virou agradecida.
– Trouxe algo para você comer. Teremos que levantar acampamento após o jantar.
– Obrigada! Vou sentar mais próxima a Calina.
– Não se entretenha com os soldados que não estão feridos. – Xena falou com tom de severidade na voz.
Gabrielle baixou a cabeça e seguiu para perto de Calina.
Xena sentou-se perto de seu capitão para armar a estratégia para a marcha até a fortaleza. Gabrielle falava animadamente com Calina sobre a função de curadora. Estava satisfeita que não perdera um só homem, nem que teve que apelar para manobras mais drásticas, como por exemplo, amputar nenhum membro sequer dos soldados feridos.
Após uma hora, todos estavam se arrumando para levantar acampamento. Começaram a marchar com as orientações de Tarsílio, enquanto Xena se mantinha na retaguarda. Chamou Gabrielle e disse para se manter próxima a Calina, para se manterem juntas. Estava evidente que Gabrielle chamava atenção de alguns soldados, era muito bonita e atenciosa. No entanto, Xena fazia questão de mostrar que ela era sua, de que estava sob sua proteção para que ninguém quisesse se engraçar para com ela.