Fanfics sobre Xena a Princesa Guerreira

    Passava um pouco das quinze horas quando Ana estacionou numa travessa pouco movimentada no centro de Canoas. O verão estava no auge e o mormaço deixava o ar carregado. Nem sequer uma brisa corria naquela tarde escaldante, fazendo com que as árvores permanecessem inertes, como que guardando energias para sobreviver à previsão de longa estiagem para o estado do Rio Grande do Sul.

    Ana trancou a porta do veículo, pegou uma leva-tudo com seus documentos e dirigiu-se para uma das ruas principais, parando em frente ao prédio envidraçado em cujo gramado frontal jazia imponente letreiro de metal dourado, cuidadosamente lustrado, onde se lia: FORUM. Enxugando o suor da testa com a parte externa da mão, num movimento que descolou algumas madeixas dos cabelos negros que teimavam em grudar na fronte, Ana adentrou na suntuosa construção. Suntuosa não tanto pela arquitetura, mas pelo que representava.

    Caminhou até a porta onde havia uma placa pendurada com os seguintes dizeres: “bata e aguarde”. E logo abaixo: “Assistente Social”. Ana deu duas batidinhas discretas na porta e postou-se ao lado da entrada aguardando ser atendida. Não demorou muito e a porta entreabriu-se, sendo que uma fisionomia conhecida convidou Ana a entrar. A morena levou alguns segundos até recuperar-se da surpresa. Boquiaberta fitou a figura que lhe sorria amigavelmente. Num gesto afetuoso a mulher à sua frente estendeu os braços e a envolveu num abraço apertado. Ana mal conseguiu retribuir, como que custando a acreditar no que se passava. Entrou na sala e a Assistente Social indicou-lhe uma cadeira, sentando-se à sua frente.

    – Ana… quanto tempo. – disse a Assistente Social.

    – Pois é. – respondeu Ana ainda surpresa pela coincidência – Nunca imaginei que te reencontraria… nessa situação.

    – Tu não mudaste nada.

    – Impressão. Mudei muito. – respondeu Ana.

    – Acho que nem tanto… sempre metida em confusões…

    Ana remexeu-se na cadeira, baixando os olhos, mantendo a mesma seriedade com a qual entrara naquele recinto.

    – Bom, Ana, eu confesso que estou feliz em te rever. – continuou a Assistente Social – faz tantos anos…

    – Dezoito.

    – Dezoito anos… e tu estás com a mesma carinha de antes.

    Ana esboçou um discretíssimo sorriso amenizando a expressão séria daquele lindo par de olhos azuis e fitou a amiga.

    – Olha Denise, vamos acabar logo com isso? Eu tenho mais o que fazer.

    – Imagino. Mas afinal o que andas fazendo da vida?

    – Além de me meter em confusões?

    – É.

    – Consertos.

    – Como assim?

    – Consertos. Conserto quase tudo que estraga. Desde elétrica até hidráulica e encanamentos. Também construo qualquer coisa. E entendo um pouco de mecânica, de carros e de máquinas pesadas.

    – Fantástico… sempre me surpreendendo. – disse Denise.

    – Não sei porque a surpresa. Você já deve ter lido nesse catatau aí. – respondeu Ana apontando para o processo que se encontrava sobre o centro da mesa.

    – Bom, tu hás de convir que não é uma atividade comum a uma mulher.

    – É…

    – Ana, tu sabes o teor da tua sentença, não sabes?

    – Sei.

    – E já pensaste em algum lugar para prestar o serviço comunitário?

    – Não, qualquer lugar está bom. – respondeu Ana com a secura que lhe era peculiar.

    Denise ficou quieta olhando a amiga diretamente nos olhos, com uma expressão carinhosa:

    – Ana, Ana… sempre arredia. Eu senti a tua falta quando foste embora com o teu pai para o Rio de Janeiro. Eu sempre gostei de ti.

    Ana respirou fundo e respondeu:

    – Eu sei. Eu também. Afinal você era minha única amiga. A única colega que andava com o “patinho feio”, com a esquisita da escola. E eu nunca imaginei que fôssemos nos reencontrar nessa situação.

    – Há males que vem pra bem… – disse Denise.

    – Tá… vou tentar acreditar nisso.

    – Acredite. Você sempre teve muitas virtudes, mas teimava em esconde-las sob um manto de rebeldia.

    – Denise… sem lengalengas, por favor.

    – Tá certo. Bom, vamos ver o que temos aqui. – respondeu Denise abrindo um enorme livro de capa dura com uma infinidade de anotações manuscritas.

    Após alguns momentos de silêncio, enquanto Denise lia atentamente sua listagem de recursos, Ana pediu:

    – Denise…

    – O quê?

    – Eu… bom… eu preciso sair de circulação por um tempo. Se tiver alguma coisa longe daqui… interior… eu prefiro.

    Denise fechou o livro, tirou os óculos e fitou Ana com seriedade:

    – O que é que está havendo?

    – Olha, não é nada em relação a esse processo. É outro assunto.

    – O que é então?

    – Bom… é… é que eu me envolvi com uma dona aí… e agora preciso cair fora.

    – Porque?

    – A mulher é casada. E o marido descobriu. E ele é barra pesada.

    – Ana! Pelo amor de Deus, o que tu estás me dizendo?

    – Que eu sou lésbica, esqueceu?

    – Não… Isso eu já sabia. Me refiro a esse “caso”. Me defina barra pesada.

    – Envolvimento com drogas.

    – Usuário?

    – Traficante. – respondeu Ana.

    Denise levou as duas mãos ao rosto. Respirou fundo e continuou:

    – E tu? É usuária? Ou o que é pior…

    – Claro que não, Denise! Afinal, você me conhece ou não?

    – Acho que sim.

    – Então?… Olha, nem fumar eu fumo mais… parei com o cigarro antes que ele acabasse comigo há mais de dez anos, ou seja, nem droga lícita! Tudo bem, às vezes eu exagero na bebida, mas depois do acidente nem isso. Eu admito que sou pavio-curto, desaforada, me perco por um rabo de saia, vivo arrumando confusão, mas não sou mau caráter! Eu trabalho honestamente como qualquer pessoa, e o fato que me trouxe aqui hoje foi uma fatalidade, você sabe, está aí nos depoimentos. E o fato de eu ter que sair de circulação não tem nada a ver com esse processo! Eu só transei com a mulher do cara! Só isso. E agora a dona anda atrás de mim. E o cara também. É isso. E eu quero cair fora. – Ana deu uma pausa, respirou fundo e continuou – Eu tô cansada, Denise… quero sossego.

    A Assistente Social baixou os olhos, respirou fundo, recolocou os óculos e respondeu fitando Ana diretamente nos olhos:

    – Eu vou ver o que posso fazer.

    – Obrigada. Eu fico te devendo essa.

    – Me dê uma semana.

    – É muito.

    – Dois dias.

    – Tudo isso?

    – Ana, eu não faço milagres!

    – Por favor…

    – Volta aqui amanhã.

    Ana sorriu pela primeira vez naquele encontro.

    – Amanhã cedo estou aqui.

    – As onze. – retrucou Denise.

    – Tudo bem, as onze. – respondeu Ana levantando-se.

    Denise levantou-se também e abraçou a amiga afetuosamente:

    – Apesar de tudo… foi bom te rever. – disse a Assistente Social – Ana… cuide-se.

    Ana assentiu com a cabeça retirando-se da sala. Denise sentou-se e começou a recordar sua infância e adolescência. Ana sempre fora uma criança diferente, arredia, rebelde. Estudaram juntas desde a primeira série, na mesma escola pública. Tornaram-se amigas e cresceram juntas. Denise conseguia ver a Ana que o restante dos colegas e professores não conseguiam. Ana sempre fora uma criança decidida e teimosa, porém convivia harmonicamente com ela, sendo que conseguiram estabelecer uma relação de verdadeira amizade e respeito mútuo. Na adolescência, quando Ana se apaixonava perdidamente por meninas, era para Denise que confidenciava seus sentimentos. Quando os pais de Ana resolveram se mudar para o Rio de Janeiro elas perderam o contato. Ambas sentiram falta uma da outra, mas o tempo e a distância acabam relegando grandes amizades, e por vezes amores, ao esquecimento…

    E agora novamente os caminhos delas haviam se cruzado. Denise sentiu que precisava fazer algo por sua amiga. Novamente folheou atentamente seu livro de recursos e contatos sem encontrar nada que lhe parecesse adequado. Fechou os olhos tentando resgatar do fundo da memória alguma alternativa. Num repente abriu os olhos e sorriu para si mesma. Pegou sua agenda telefônica e fez uma ligação para Vale Verde, cidadezinha pequena localizada na região das missões, próxima a São Nicolau e Santo Ângelo.

    No convento das irmãs do Sagrado Coração de Cristo Rei o dia havia transcorrido calmo, como todos os demais, porém sob um tórrido e escaldante calor de quase quarenta graus à sombra. Antes do nascer do sol a irmã Lúcia, assim como as demais freiras e noviças acordaram e se dirigiram à capela para as orações matutinas. Após fizeram o desjejum no refeitório coletivo e cada qual passou a realizar sua tarefa diária.

    Irmã Lúcia era responsável pelo trato das galinhas e dos coelhos durante o período de férias. No início do período letivo retomaria o sétimo semestre do curso de história e lecionaria na escola anexa. Lúcia também acabava auxiliando na cozinha e na limpeza geral do convento, junto com a irmã Clara e as noviças, nos turnos em que estas últimas não se encontravam na escola. Irmã Lídia era a Madre Superiora e incumbia-se das questões administrativas do convento e da escola de ensino médio e fundamental anexa, mantida pela Ordem. Era auxiliada diretamente pela irmã Teodora. Irmã Sebastiana era a mais velha, contava noventa e três anos, no entanto ainda se ocupava com a rouparia, lutando diariamente contra os limites que a idade lhe impunha, principalmente na hora de enfiar a linha na agulha. Para tal colocava os óculos na ponta do nariz e tentava controlar as mãos trêmulas. E cada vez que a Madre lhe sugeria descansar um pouco, irmã Sebastiana respondia bem humorada: “terei a eternidade para descansar depois de morrer!”. Irmã Celestina era a responsável pela cozinha, Irmã Diva pelo almoxarifado e Irmã Janete pela lavanderia. As demais lecionavam na Escola Cristo Rei.

    No entardecer Madre Lídia se encontrava instalada confortavelmente no escritório do convento colocando sua documentação em dia quando o telefone tocou. Ao atender reconheceu a voz de sua sobrinha:

    – Boa tarde, tia Lídia, como vai a senhora?

    – Boa tarde querida! Que grata surpresa! E os teus pais como estão? E o meu cunhado sempre com mania de doença?

    – Sim… E a sua irmã sempre tratando o marmanjo como um menininho… – riu-se a voz do outro lado da linha. – Mas tia, o motivo dessa ligação não é nenhuma questão familiar…

    – Mas o que é então? – questionou a Madre, no exato momento em que ouviu uma suave batida na porta do escritório, e uma fresta entreabriu-se vagarosamente.

    Irmã Lúcia espiou para dentro e viu que a Madre estava ao telefone. Antes que pudesse recuar a mulher mais velha acenou com um gesto indicando que entrasse no recinto. Irmã Lúcia estava munida com um balde, um rodo e um pano de chão. Viera para limpar o piso de madeira. Frente ao gesto da Madre passou a fazer a limpeza em silêncio, para não atrapalhar a superiora. Percebeu que a expressão da Madre assumiu um ar austero e pensativo no decorrer da conversa. A mesma apoiou o queixo em uma das mãos enquanto ouvia em silêncio o discurso do outro lado da linha. Eventualmente respondia com monossílabos e parecia ouvir atentamente cada detalhe da mensagem de seu interlocutor.

    Como de costume Lúcia logo se distraiu com a limpeza do chão e com uma lagartixa no canto da parede, a qual tentava conduzir em segurança até o parapeito da janela, antes que a Madre a avistasse e incorresse num de seus costumeiros chiliques ante qualquer bichinho rastejante. Após certificar-se que a lagartixa encontrava-se em lugar seguro fora daquela sala, Lúcia ouviu fragmentos da conversa da Madre, sem que se ativesse a maiores detalhes ou que tivesse sua curiosidade despertada pelo teor da conversa.

    – Não sei, minha filha… – dizia a Madre -…isso é meio complicado de administrar… seria a primeira vez… (…)… sim… não… não é isso. (…) Claro que sim. Me dê um tempo para pensar. (…) Como não pode? É uma decisão que afeta nossa rotina, nossas normas… (…) Eu sei, minha filha. (…) Bom, se tu estas dizendo, mais que isso, garantindo, vamos tentar então. (…) Ta bom, ta bom… mas quero deixar bem claro que é uma tentativa. Ao primeiro sinal de que a coisa não vai bem está desfeito o acordo. (…) Eu espero, minha filha… eu espero sinceramente não me arrepender… (…) Tudo bem. Então um abraço, e abraços pros teus pais. Tchau.

    A Madre desligou o telefone e permaneceu calada, o olhar perdido na parede verde-água à sua frente. Estava tão absorta em seus pensamentos que nem sequer percebeu que Lúcia havia acabado seu serviço e dado um discreto até logo antes de sair da sala e fechar a porta com delicadeza. Madre Lídia suspirou profundamente e dirigiu-se para a capela. Precisava rezar um pouco, pedindo a Deus que iluminasse seus pensamentos e suas decisões. Pediu ainda que Ele orientasse os passos de quem estava prestes a receber naquele convento por um longo período.

    Ao entrar em sua casa Ana deixou-se cair no sofá estirando-se em todo o comprimento e colocando as pernas sobre um dos descansos de braço. Sua estatura não lhe permitia caber naquele estofado de três lugares sem que parte de seu corpo ficasse para fora. Com os olhos fixos no teto suspirou profundamente. Estava realmente preocupada. Tinha consciência da confusão em que estava metida e do quanto sua vida estava em risco. Anoiteceu e ela permanecia deitada pensativa, não havia sequer aberto as janelas ou acendido as luzes do aposento. De repente ouviu um som que identificou como sendo de um carro estacionando. Num pulo esgueirou-se até a janela espiando pela fresta da veneziana que estava fechada. O cachorro do pátio vizinho começou a ladrar ameaçadoramente, parando logo em seguida preferindo recolher-se à sua casinha de madeira envernizada. Ana conseguiu avistar um luxuoso carro preto do qual desembarcaram três homens que observavam a sua casa de braços cruzados. Ana sentiu medo, dando graças a Deus por ter colocado sua Kombi para dentro da oficina e fechado a porta principal. Como estava no escuro e em silêncio os homens julgaram não haver ninguém em casa. Ainda fizeram a volta na casa, silenciosos, enquanto Ana encostada na parede prendia a respiração, temerosa pelo que podia acontecer. Sentia seu coração bater descompassadamente, porém tentava manter a calma. Com a agilidade de um felino esgueirou-se silenciosamente armando-se com um pé-de-cabra que estava no chão, num canto da sala. Novamente deu graças pela sua desorganização momentânea, afinal aquele instrumento deveria estar na oficina.

    Manteve-se em absoluto silencio, em estado de alerta, até que ouviu os passos se afastando na direção do veículo. Os homens ainda pararam e deram uma nova olhada na direção da casa antes de trocarem algumas palavras, que Ana não conseguiu entender mas imaginou quais fossem, para logo em seguida embarcarem afastando-se dali. Ana ainda ficou estática por um bom tempo até ter certeza de que realmente haviam ido embora. Estrategicamente não pregou o olho durante aquela noite, permanecendo na segura escuridão do lar. Evitou sequer acionar a descarga do banheiro para não fazer barulho.

    Quando a claridade da manhã invadiu as frestas da janela Ana respirou aliviada. Conhecia aquele tipo de gente e sabia que eles não “trabalhavam” à luz do dia. Tratou de arrumar seus pertences e coloca-los na Kombi, assim como todo seu equipamento de serviço. Tudo que tinha de seu cabia naquele veículo que além de ser seu meio de transporte e instrumento de trabalho algumas vezes lhe serviu de teto. E parecia que a situação se repetiria. Tomou um banho, vestiu-se, e antes de sair de casa ainda espiou pelas frestas das janelas, tentando ver se havia alguma movimentação estranha na rua. Não notou nada de diferente e abriu a porta da oficina. Novamente espiou para ambos os lados da rua e não havia qualquer sinal do carro escuro. Aliviada manobrou a Kombi para depois fechar a porta da frente da oficina.

    Dirigiu-se para o centro de Canoas, dessa vez conseguindo estacionar bem perto do Fórum uma vez que a maioria dos prédios comerciais ainda estavam fechados. Naquele local sentiu-se segura. Olhou no relógio e constatou faltarem oito minutos para as sete da manhã. Se deu conta de que estava com fome. Não havia comido nada desde a tarde do dia anterior. Fechou o veículo e caminhou até uma padaria que já estava com suas portas abertas desde muito cedo. Tomou um café e comeu um misto-quente cujo queijo colonial se derretia na boca. Ficou sentada ali até depois das nove horas da manhã, aproveitando para ler o jornal que alguém havia esquecido sobre o balcão. Por volta das nove e meia foi até o Fórum e quando Denise chegou Ana já a aguardava há bastante tempo. De longe Denise avistou Ana sentada nos bancos do corredor em frente a sua sala, cabisbaixa e com a expressão sisuda de sempre. Aproximou-se e tocou-a no braço, fazendo com que se levantasse. Abraçou a amiga em silêncio e a conduziu para o interior de sua sala. Antes que Denise começasse a falar Ana disse:

    – Eu recebi visitas essa noite…

    – A mulher do traficante???…

    – Não. Os capangas do dito cujo.

    – Meu Deus, Ana! E tu estás bem? Eles te fizeram alguma coisa?

    – Não. Pensaram que eu não estivesse em casa e foram embora. Mas eles vão voltar…

    – Ana, senta aqui. Olha, eu acho que posso te ajudar sim.

    Ana respirou aliviada, amenizando sua expressão preocupada. Denise continuou:

    – É o seguinte: é um trabalho em Vale Verde.

    – Nunca ouvi falar, onde é?

    – Região das Missões, perto de São Nicolau e Santo Ângelo.

    – Ótimo, quanto mais afastado melhor.

    – Bom… tu farás a manutenção do lugar, serviços gerais, “pau pra toda obra” mesmo… e poderás ficar morando por lá. Já está tudo acertado, inclusive com um quartinho disponível te esperando. Pode ser?

    – É óbvio que pode, Denise! E eu fico te devendo essa.

    Denise sorriu afetuosamente:

    – Não me deve nada, é o meu trabalho.

    – Livrar a cara de quem se mete em confusão?

    – Também. Principalmente quando se trata de uma pessoa muito estimada.

    Dessa vez foi Ana quem sorriu para Denise, que a abraçou com carinho.

    – Bom, eu já vou indo… aliás para onde eu vou? Preciso do endereço. Onde é que eu vou me instalar? – questionou Ana.

    – É… bom… é uma escola.

    – Tudo bem – respondeu Ana franzindo uma sobrancelha, desconfiada do gaguejar da amiga, mas sem intenções de criar polêmicas.

    Denise escreveu o endereço num papel e o entregou a Ana.

    – Ta aqui o endereço. Quando é que tu vais?

    – Agora.

    – Agora?

    – É. Já estou com tudo que é meu na Kombi aí em frente. Não vou abusar da sorte voltando para casa, pelo menos por uns tempos, até que o corno esqueça do tamanho dos chifres…

    Denise teve de rir.

    – Ana, Ana… sempre espirituosa, mesmo frente às adversidades.

    – Pois é… fazer o quê?

    – Te cuida minha querida. Ah… e por favor, nada de confusões. Sou eu que estou te pedindo. Não foi fácil arrumar esse lugar, portanto comporte-se.

    – Que é isso Denise? Parece minha mãe? Eu sei o que faço, sei me cuidar.

    – Sabe mesmo?… – respondeu Denise com voz branda e amorosa.

    Ana baixou os olhos.

    – Tudo bem. Eu prometo “me comportar”. Palavra.

    – E eu acredito. Boa sorte.

    – Obrigada. E… Denise, esse lugar… tem como alguém ficar sabendo onde é? – perguntou Ana preocupada.

    – Não. Fica tranqüila. Esse lugar não é só um local para prestares serviço, é um “esconderijo”.

    – Que bom.

    – Vai com Deus. – disse Denise dando um beijo na face da amiga. – Pode deixar que eu aviso que vais chegar tarde da noite. Haverá alguém à tua espera.

    – Então, até um dia.

    – Manteremos contato por telefone. Preciso fazer o teu acompanhamento sistemático. – disse Denise.

    – Tudo bem. Você tem o meu celular?

    – Tenho. Consta no processo. Ainda é o mesmo?

    – É. Se mudar eu te aviso.

    – Por favor.

    – Tchau então.

    – Tchau…

    Ana pegou sua Kombi, tirou um mapa rodoviário do porta-luvas e traçou um trajeto mental até seu destino. Chegaria bem tarde. Pegou a estrada antes do meio dia, realizando somente poucas paradas para comer e ir ao banheiro.

    Passavam das dez horas da noite quando finalmente chegou a Vale Verde. Era uma cidadezinha pequena, pelo pouco que pôde ver devido à escuridão da noite. Toda a cidade parecia dormir. O posto de gasolina estava fechado, assim como o comércio. O único estabelecimento que parecia estar funcionando era uma bodega onde alguns homens bebiam e jogavam bilhar. Algumas moças com vestidos curtos lhes faziam companhia e pareciam estar se divertindo, mesmo naquele fim de mundo…

    Ana desembarcou e quando entrou no bar todos os olhos se viraram para ela. Com suas passadas firmes, quase masculinas, e a habitual seriedade dirigiu-se para o rapaz no balcão e estendeu-lhe o papel com o endereço.

    – Amigo, sabe informar onde fica essa rua?

    O rapaz olhou-a de cima a baixo e pegou o papel. Ao ler o que estava escrito dirigiu-lhe um olhar, no mínimo, intrigante.

    – Seguindo por essa rua é a quarta esquina à direita. Segue pela rua de paralelepípedo. Quando terminar pega a estradinha de chão à esquerda que já é essa rua. Dá mais uns três quilômetros.

    – Obrigada.

    – A senhora vai ficar aqui?… – quis saber curioso o bodegueiro.

    – Vou morar por uns tempos.

    – Aaahhh…

    – Boa noite. – disse Ana saindo do bar, ainda sob os olhares curiosos dos freqüentadores.

    – Boa noite, dona.

    Ana achou a estradinha com facilidade e rumou por ela até se deparar com um muro alto que ostentava o número 3580, o mesmo que procurava. Um grande portão de ferro encontrava-se fechado defronte a uma estradinha curta e ladrilhada que levava até o pórtico de um prédio grande, de dois andares, onde uma placa de bronze incrustada sobre a porta ostentava os seguintes dizeres: Convento das Irmãs da Ordem do Sagrado Coração de Cristo Rei. Ana estacionou a Kombi e desembarcou, ainda incrédula com o que via. De pé em frente ao portão colocou as mãos na cintura e balançou a cabeça de um lado para outro, falando para si mesma:

    – Ah não… isso não, Denise. Sacanagem! Me mandar para um convento?! Puta que pariu!

    Nisto a lâmpada externa do hall de entrada se acendeu e a porta entreabriu-se. Uma senhora de meia idade vestindo um hábito marrom e óculos de aros dourados caminhou até ela portando uma argola de metal de onde pendiam incontáveis chaves. Ana reparou que a freira tinha um caminhar decidido, porte pequeno, porém demonstrando altivez. Não podia ver a cor de seus cabelos por causa do véu que lhe encobria a cabeça. Antes de abrir o pesado portão olhou para Ana e perguntou:

    – Tu és a Ana?

    – Sou.

    – Bem vinda, minha filha. – respondeu com voz que aparentava sinceridade.

    Descerrou o pesado cadeado e antes que pudesse empurrar o portão Ana disse:

    – Deixa pra mim que eu abro – disse enquanto deslocava o portão de ferro dando lugar para a passagem do carro.

    Embarcou na Kombi e ao atravessar o portão parou novamente para fecha-lo. A Madre já havia empurrado um dos lados.

    – Pode deixar que eu fecho, é pesado. – disse Ana.

    A Madre sorriu:

    – Minha filha, tu não imaginas a quantidade de vezes que eu abro e fecho este portão por mês… Mas, muito prazer, eu sou a Madre Lídia, responsável por este convento e pela escola anexa. Mas vamos entrar, eu gostaria de conversar contigo antes de nos recolhermos.

    A freira conduziu Ana por um corredor comprido até uma sala ampla, com uma grande escrivaninha em madeira escura e torneada e cadeiras no mesmo estilo. Um sofá de dois lugares com um estofado de veludo azul turquesa conferia um ar solene ao aposento. À esquerda uma estante em mogno ocupava toda a extensão da parede, totalmente preenchida por livros dos mais variados estilos. Na parede atrás da escrivaninha um imenso quadro de Jesus pendia ao lado de um de Nossa Senhora da Conceição. Uma cortina, também azul, escondia um aparelho de ar condicionado. Um computador e um discreto freegobar colocados no canto direito da peça pareciam destoar do resto do ambiente, era a modernidade contrastando com os móveis antigos. Madre Lídia indicou o sofá para Ana e sentou-se numa cadeira em frente.

    – Muito cansada da viagem?

    – Só um pouco, estou acostumada a dirigir.

    – Aceita uma água ou um suco?

    – Uma água, por favor.

    A madre dirigiu-se ao pequeno refrigerador e serviu dois copos. Estendeu um para Ana e sentou-se novamente.

    – Bom, minha filha, como eu já disse sou a Madre Lídia e respondo por este convento e pela escola. E quero colocar claramente a minha posição em relação a tua vinda para cá.

    Ana fitava a madre com seriedade. A mulher mais velha continuou:

    – É a primeira vez que temos um caso como o teu aqui nesta casa, quero dizer, alguém prestando serviços por questões judiciárias. Mas como foi minha sobrinha Denise quem pediu resolvi abrir uma exceção.

    “Cachorra”, pensou Ana, “…me mandar para um convento!” A madre continuou:

    – Ela me contou sobre a amizade de vocês e sobre como foi o reencontro depois de tantos anos. Me colocou também que o ocorrido foi uma fatalidade, um acidente. E que tu precisavas de um lugar para cumprir a sentença e não tinhas onde morar, por tua família estar toda no Rio de Janeiro, por isso ela pensou em nós, afinal alojamentos não nos faltam neste prédio.

    “Sem lugar para morar… pois sim. A Denise não contou nem a metade da missa…”, pensou Ana, “bom, mas meias-verdades não são mentiras, e é claro que ela pouparia a titia dos detalhes sórdidos…”

    – Aqui tu vais trabalhar na escola e nas dependências do convento. Mas… eu devo te dizer que estranhei muito a tua profissão. Não é coisa de mulher, minha filha.

    – Mas é o que eu sei fazer. Sempre trabalhei com o meu pai. Começamos numa borracharia, depois uma mecânica, depois serviços gerais. Enfim, sei fazer de tudo um pouco.

    – Que bom então, teus préstimos serão muito úteis aqui. Mas… Ana… estamos numa cidade pequena, onde todos se conhecem, onde todos sabem de tudo… Nossa escola é uma escola privada, que atende os filhos dos latifundiários e criadores de gado, pessoas muito rígidas nos conceitos, e não sei como reagiriam se soubessem que existe uma cumpridora de sentença judicial convivendo perto de seus filhos…

    Ana respirou fundo, sentindo-se invadir por um sentimento de mágoa, fruto da evidente discriminação que sofreria. Isto que nem foi cogitada sua homossexualidade.

    – Por isto, minha filha, considero, digamos… prudente, que esta informação fique restrita somente a nós duas. Caso perguntem vou dizer que contratamos os teus serviços, indicados por minha sobrinha da cidade grande. Entendido?

    – Entendido. – anuiu Ana cabisbaixa.

    – Ana, compreenda… é para o bem de todos.

    – Vou tentar compreender – respondeu Ana deixando transparecer um tom de amargura.

    – Outra coisa. Quero deixar claro que faremos uma ten-ta-ti-va. Caso haja qualquer inadequação em sua conduta eu vou comunicar a Denise e pedir que te retires. Eu devo zelar pelo bom funcionamento e pela disciplina desse convento e da escola.

    – Pode deixar Madre, eu entendi. E vim disposta a colaborar.

    – Ótimo. Então acho que estamos conversadas. Qualquer contato telefônico que precisares ter com Denise poderá ser feito deste gabinete, com total privacidade.

    – Obrigada.

    – Outra coisa. Tu és uma moça nova, bonita, vais chamar a atenção. Quero te avisar que não é permitido trazer visitantes para dentro das dependências do convento. Eu me refiro a… rapazes, pretendentes… fui clara?

    – Claríssima. Nada de envolvimentos. – respondeu Ana rindo por dentro, como se os problemas pudessem ser “rapazes”…

    “Realmente Denise deixou a titia pouco informada a meu respeito”, pensou Ana.

    – Bom, agora vou conduzi-la para seu quarto. Fica nos fundos, separado do prédio principal, ao lado da sala de manutenção. É um bom alojamento, cama macia e banheiro com água quente para um banho reconfortante. Tem uma pequena peça ao lado que pode servir de quarto auxiliar. As refeições tu poderás fazer conosco no refeitório principal. O horário do teu expediente será enquanto houver trabalho: alguns dias quase nada a fazer, outros se trabalha noite adentro. Amanhã terás o dia de folga, onde te mostrarei o espaço físico e o que tem para ser feito. Depois de amanhã começas a trabalhar. Alguma pergunta?

    – Nenhuma.

    – Ótimo. Então vamos.

    A Madre embarcou com Ana na Kombi indicando-lhe o caminho pelo lado do prédio principal. Rodou alguns metros e estacionou bem defronte ao lugar que ocuparia. O quarto estava arrumado e impecavelmente limpo. Havia roupas de cama e uma toalha na cabeceira da cama. Uma armação de madeira servia de suporte para um mosquiteiro de tule branco que pendia pelas laterais do leito. Uma jarra com água fresca repousava no criado mudo ao lado de um pacote de bolachas salgadas, um pãozinho doce e duas maças.

    – Pedi que a Irmã Clara arrumasse o quarto e deixasse algo para comer. Imaginei que chegarias com fome.

    – Obrigada.

    – O café é servido das seis e meia até as sete e meia. O refeitório é no prédio principal – disse a madre apontando na direção do casarão – é só seguir reto, no térreo. Qualquer dúvida pergunte a alguma das Irmãs. É um horário que todas estão reunidas. Nos encontramos no refeitório amanhã pela manhã para posterior visita aos arredores.

    – Tudo bem.

    – Boa noite então. – disse a Madre virando-se e caminhando em direção ao convento.

    – Boa noite.

    Ana descarregou sua mala e pertences pessoais, mas não teve ânimo de arrumar nada. Percebeu que estava de fato cansada. Arrumou sua cama, comeu o pão e as maçãs e foi tomar um banho.

    O banheiro era espaçoso, peculiaridade das construções antigas, pé direito com mais de três metros de altura e um delicioso chuveiro a gás. O jato de água era potente e parecia lavar a alma devido à pressão. Ana deixou-se permanecer por algum tempo sentindo a água morna, quase fria, em suas costas. A noite estava quente, porém mais agradável que a noite anterior que havia sido abafada, quase sufocante. Vestiu somente uma camiseta regata velha e surrada que lhe chegava até a metade das coxas e deitou-se. Ainda se recuperando da surpresa de ter sido enviada a um convento acabou se conscientizando de que havia sido uma boa alternativa. Ali estaria bem escondida. Ajeitou o mosquiteiro, tratando de prender as extremidades no vão entre o colchão e o lastro da cama, desta forma evitando que algum inseto viesse a perturba-la durante a noite. Bastante cansada pegou no sono quase que instantaneamente, com uma sensação de segurança e bem estar.

    Ana dormiu um sono só e foi despertada pelo canto insistente de um galo, que devia estar bem próximo de sua janela. Abriu os olhos sobressaltada e se deu conta que eram somente seis horas da manhã. Espreguiçou-se na cama e esfregou os olhos. Sentiu o corpo recuperado da viagem exaustiva do dia anterior. O galo continuava cacarejando, mas parecia estar se deslocando pelo pátio, correndo desvairado de um lado para o outro. A morena apurou o ouvido e percebeu passos silenciosos no lado de fora de sua janela. Curiosa esgueirou-se e espiou através da janela envidraçada que esquecera de fechar, visto que a Madre havia lhe falado sobre a segurança de se estar num lugar onde ainda era possível dormir de portas destrancadas. Um dos lados do tampo de madeira da janela estava totalmente aberto. Camuflada pela escuridão do quarto Ana pôde observar a rua que já estava começando a ficar iluminada pela claridade da manhã, porém ainda havia resquícios das sombras da noite. O horário de verão atrasava em uma hora a alvorada. Apurando a vista distinguiu um vulto que perseguia o galo, tentando chamar-lhe a atenção com punhados de milho e ração. Tentativa sem sucesso, pois o animal emplumado corria mais a cada vez que um novo punhado de milho era jogado em sua direção.

    – Vem aqui Abelardo… não seja teimoso… vamos voltar para o galinheiro… raio de galo fujão! Olha que a Irmã Celestina te bota na panela! – reclamava Lúcia em voz baixa para não chamar a atenção de quem, porventura, já estivesse acordada.

    Ana teve de rir da cena hilária daquela freirinha de hábito cinzento e chinelos havaiana perseguindo um galo pelo quintal do convento. Por fim viu quando o desafortunado foi encurralado num canto do muro e, sem ter por onde escapar, rendeu-se e deixou-se suspender no colo, sendo conduzido de volta ao galinheiro sem manifestar maiores reclamações.

    Ana foi até o banheiro, lavou o rosto e olhou sua imagem refletida no espelho durante um bom tempo. Suspirou e vestiu-se, preparando-se para o desjejum e o encontro com a Madre Lídia. Colocou uma calça jeans desbotada e uma camiseta azul marinho, colada ao corpo, de mangas curtas. Calçou um tênis e prendeu os cabelos num rabo-de-cavalo frouxo.

    Antes de sair do quarto estendeu sua cama e ajeitou um pouco sua mala, empurrando-a para baixo da cama. Abriu a porta do quarto e dirigiu-se para o refeitório. Àquela hora a claridade já tornava bem nítido o cenário à sua volta. Percebeu que a construção que a abrigava era no mesmo estilo das demais: um prédio antigo, paredes grossas, porte imponente. As telhas francesas, um tanto quanto tomadas pelo limo, formavam um mosaico interessante, intercalando tons de ocre, marrom escuro e ébano.

    Ana caminhou em direção à construção maior, o convento, que somente perdia em tamanho para a escola anexa. Percebeu que no lado esquerdo do pórtico de entrada existia uma pequena capela, com as paredes pintadas de bege, da mesma cor do restante da propriedade, mas com uma única torre que apontava para a abóbada celeste com a mesma suntuosidade das torres das catedrais. Bem no alto, logo abaixo da cruz, pendia um sino de bronze, cujo som das badaladas Ana ouvira logo após ter sido despertada pelo galo.

    Caminhou vagarosamente pelo estreito caminho ladrilhado que levava ao refeitório, observando atentamente a paisagem ao redor. Ao aproximar-se da construção maior ouviu um burburinho vindo de dentro e um agradável aroma de café recém passado e pão fresco. Parou em frente à porta, silenciosamente, observando o interior daquele amplo recinto, e sua presença nem foi notada pelas pessoas que circulavam no local, cada qual ocupada com seus próprios afazeres. Percebeu a intensa movimentação das freiras. Algumas organizavam a mesa do café enquanto outras, mais velhas, aguardavam sentadas o início do desjejum. Ana olhou seu relógio e viu que eram seis e vinte e cinco. Neste momento Madre Lídia entrou no refeitório por uma porta interna lateral e imediatamente percebeu a presença de Ana, caminhando em sua direção.

    – Bom dia. Não acredito que nenhuma das Irmãs a tenha convidado a entrar! – disse a Madre em tom de crítica.

    – Eu recém cheguei, nesse exato momento, para ser mais precisa. Elas realmente não me viram. – respondeu Ana educadamente.

    – Mas então vamos entrando. – disse a Madre conduzindo Ana pelo braço e fazendo-a sentar-se a seu lado na mesa.

    Ao passar pelo meio do refeitório sentiu todos os olhares voltados em sua direção e um silêncio se fez repentinamente. Chegou a ficar meio desconcertada. Porem a Madre logo tratou de apresenta-la:

    – Irmãs, um minuto de atenção, por favor. Esta moça é a nossa nova contratada para cuidar da manutenção de nosso convento e da escola.

    Um breve murmurinho e algumas risadinhas baixas se fizeram ouvir, como que estranhando o fato de uma mulher exercer aquele tipo de atividade. A Madre continuou com voz alta e firme:

    – O nome de nossa funcionária é Ana e espero que ela possa contar com a colaboração de cada uma de nós no que for preciso para orienta-la neste início de suas atividades.

    Novo burburinho e vários sorrisos e balançares de cabeça assentindo à determinação da Madre. Uma das freiras levantou a mão pedindo a palavra. A um gesto da Madre a freira proferiu:

    – Em nome das Irmãs eu gostaria de dar as boas vindas à amiga, e me colocar à disposição no que for preciso para ajudar. – disse a Irmã ostentando um sorriso sincero.

    – Obrigada. – respondeu Ana, percebendo tratar-se da mesma freirinha que perseguia Abelardo. Precisou esforçar-se para controlar o riso ao relembrar a cena da perseguição ao galo.

    – Então vamos proceder nossa oração, tomar café e pôr mãos à obra em nossas atividades de hoje. – disse a Madre. – Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo…

    – Amém! – responderam as freiras em uníssono, colocando-se todas de pé.

    Ana também se levantou para acompanhar a oração. Não que fosse dada a rezar, mas em respeito ao local onde se encontrava e às pessoas que a haviam acolhido de forma tão simpática. Após a oração fizeram o desjejum. Enquanto se alimentava Ana observava todos os movimentos a sua volta. Percebeu que ali havia dezenove freiras. Mais tarde soube tratar-se de quatorze freiras e cinco noviças. Algumas usavam um hábito mais pesado, de cor marrom, apesar do calor intenso daquela época do ano. O que ajudava era a temperatura fresca mantida pela construção antiga. Outras usavam um hábito cinza claro, este parecendo ser mais adequado ao clima. Outras, ainda, uma saia cinza com blusa branca ou bege. A maioria usava véu, que tapava completamente os cabelos e caía até o meio das costas. Ana percebeu umas mulheres bem idosas e outras muito jovens, talvez ainda menores de idade. Tinha bastante dificuldade em entender o que fazia uma pessoa deixar a própria casa, abdicar de uma vida livre e passar a viver num convento. “E sem sexo”, pensava Ana consigo mesma. Realmente não conseguia entender. O que a intrigava naquele momento era o fato de que aquelas mulheres pareciam felizes, pelo menos a maioria delas. Conversavam e sorriam alegremente. Naquele ambiente parecia reinar uma energia diferente, e um sentimento de paz tomou conta do coração de Ana. A sisudez que imaginava ser a vida religiosa destoava daquele alegre burburinho no café da manhã. Por vezes sentia-se observada por olhares curiosos, como que tentando adivinhar o que viera fazer num lugar tão remoto.

    Após o café a Madre Lídia convidou Ana para conhecer a propriedade. O conjunto todo era realmente bem maior do que Ana havia imaginado. Além da escola, do convento, da capela e da área destinada à manutenção havia ainda um extenso pedaço de terras que abrigavam a padaria, a lavanderia, a rouparia, o pomar, o roseiral, o galinheiro, o parreiral, a pastagem das ovelhas, o viveiro dos coelhos e uma grande parte de mata nativa. Ana não saberia precisar o tamanho real daquela propriedade. A Madre se deteve mais nos prédios e nos detalhes que precisavam dos serviços de Ana. Deu atenção especial à capela e à secretaria do convento. A rouparia também precisava de reparos quase que imediatos na parte elétrica. Na lavanderia ficava a caldeira que mantinha a água aquecida em toda a propriedade. A Irmã Janete era a responsável pela lavanderia e pela caldeira.

    A morena percebeu que havia muita coisa por fazer. Tanto melhor, pois assim o tempo passaria mais rápido naquele lugar remoto.

    – E então, minha filha? Assustada com a demanda de trabalho? – questionou a Madre.

    – Trabalho nunca me assustou. – respondeu Ana com seriedade.

    – Ótimo. Percebo que vamos nos dar bem.

    A Madre conduziu Ana até a escola para que conhecesse o local. As salas de aula estavam desertas devido ao período de férias escolares e os passos ecoavam pelos corredores. Em época letiva os mesmos corredores mantinham-se silenciosos, no entanto se os ouvidos se aguçassem podia-se perceber a conversa e a movimentação dentro das salas de aula. Os ruídos eram abafados pela generosa espessura das paredes centenárias. Caminharam por um extenso corredor e pararam em frente a uma porta onde se lia “Direção”. Madre Lídia abriu a porta e penetrou no recinto, seguida de Ana. Uma freira de hábito cinzento estava registrando alguns dados num caderno de capa escura, sendo que levantou os olhos ao ouvir o barulho da porta. Ao avistar a Madre os olhos da freira brilharam e esta exclamou quase eufórica:

    – Bom dia, Madre! Pensei que a senhora nem viesse para cá nesta manhã!

    – Bom dia Irmã. Eu estou mostrando o convento e os arredores para nossa nova funcionária. – respondeu a Madre apontando para Ana.

    O semblante da freira fechou-se instantaneamente ao avistar Ana. Ela ajeitou os óculos de armação escura na ponta do nariz e Ana sentiu-se observada dos pés à cabeça.

    – Ana, esta é a Irmã Teodora, minha assistente. – apresentou a Madre.

    – Muito prazer. – disse Ana secamente.

    – Igualmente – respondeu a freira em tom mais reservado ainda.

    Ana constatou tratar-se de uma mulher de cerca de cinqüenta anos, alta, robusta e de pele clara. Os olhos castanhos eram um tanto quanto juntos e as lentes grossas pareciam deixa-los fora de foco. No entanto podia-se dizer que era uma mulher bonita. Parecia ter o cabelo claro, a julgar pela cor das sobrancelhas, uma vez que os mesmos estavam escondidos sob o véu. Ana sentiu que a Irmã Teodora a olhava com ressalvas, arriscaria até a dizer que com certa antipatia. No entanto esse semblante de poucos amigos se dissipou instantaneamente ao voltar novamente seu olhar para a Madre. Nesse momento voltou a estampar um sorriso nos lábios. Ana era uma mulher muito perspicaz e julgou ter notado algo de diferente naquele sorriso, talvez mais do que admiração pela figura de autoridade. “Bobagem”, pensou Ana, “coisas da minha cabeça”. De parte da Madre, Ana não percebeu sequer a menor reciprocidade naquela euforia. O fato é que Ana não gostou nem um pouco do olhar que a Irmã Teodora lhe dirigiu e seu sensor interno de perigo acendeu-se automaticamente. Ficaria o mais longe possível dela, para evitar qualquer tipo de confusão.

    – Irmã, – continuou a Madre – eu vou terminar de mostrar a escola para Ana e mais tarde venho ajuda-la a colocar essa papelada em dia.

    – Eu fico lhe aguardando, Madre. – respondeu a Irmã Teodora sorridente.

    Madre Lídia abriu a porta e Ana virou-se para sair. Proferiu um “com licença” seco e quase inaudível, que ficou sem resposta por parte da Irmã Teodora.

    Já passava das dez horas da manhã quando a Madre deu por encerrado o passeio de apresentação com Ana.

    – Bom, agora acho que já conheces o suficiente para iniciar o trabalho. Hoje podes organizar as tuas coisas e descansar. Amanhã cedo começamos no batente. Pode ser?

    – Por mim, tudo bem.

    – Então, se me der licença, vou para a secretaria da escola. O almoço é servido do meio dia até a uma hora, no refeitório. As três e meia é a hora do lanche da tarde e a janta é servida das dezenove as vinte horas. Agora que tu já sabes o caminho é só chegar.

    – Tudo bem.

    – E Ana, tu podes ocupar o galpão da manutenção. Fique a vontade para organiza-lo como quiseres. Afinal, ao que tudo indica, aqui será a tua morada por um bom tempo.

    – Pois é. – respondeu Ana sempre mantendo a mesma seriedade.

    – Com licença, então. – disse a Madre retirando-se e deixando-a a sós com seus pensamentos.

    Ainda era cedo e Ana dirigiu-se ao galpão, portando as chaves que a Madre havia lhe dado. Realmente precisava organizar suas coisas.

    Com a claridade do dia pode perceber que seu alojamento era ligado ao galpão por uma porta lateral. Poderia circular sem maiores problemas entre sua “casa” e seu “escritório”. Na noite anterior havia entrado em seu quarto pela porta da frente, e estava tão cansada que mal percebeu aquela porta interna de acesso. Abriu o enorme portão da sala de manutenção. Era um portão de ferro de quase dois metros de largura que corria lateralmente sobre um trilho arredondado, um pouco emperrado, evidenciando a necessidade de um pouco de lubrificante nas dobradiças e rolamentos. A referida sala era imensa, com prateleiras em todo o redor do cômodo que ostentavam as ferramentas mais diversas. Num canto uma mesa de madeira e duas cadeiras com assento e encosto de palha, além de uma banqueta de madeira cuja pintura azulada estava descascada e parecia ter um efeito de pátina. Ana constatou que sua Kombi caberia perfeitamente num canto, sobrando muito espaço ainda. Olhou ao redor, respirou fundo e iniciou sua árdua tarefa.

    Inicialmente estacionou a Kombi no interior do salão e descarregou o restante de suas coisas. Resolveu começar pelo quarto. Arrumou suas roupas no armário defronte a cama e seus pertences pessoais no banheiro, no criado-mudo e nas gavetas de uma cômoda em cujo espelho refletia-se a vegetação que podia ser avistada do lado de fora da janela entreaberta.

    Quando terminou de organizar o quarto percebeu que já faltavam vinte minutos para uma hora. Se deu conta de que estava com fome e correu para não perder o almoço. Ao entrar no refeitório não avistou a Madre, aliás, havia apenas duas freiras mais velhas que ainda terminavam de comer. Cumprimentou-as com um aceno de cabeça, serviu-se e foi sentar numa mesa num canto. Almoçou em silêncio e colocou seu prato, copo e talheres na mesinha auxiliar, onde todas já haviam colocado, para serem recolhidos pelas responsáveis pela cozinha. Foi a última a sair do refeitório. Retornou para sua arrumação. Não chegou a fazer o lanche da tarde, pois queria terminar de organizar o galpão. Um pouco antes das dezoito horas terminou sua tarefa. O dia havia sido quente e Ana precisava urgente de um banho. As dezenove horas já estava no refeitório. Jantou e se recolheu exausta. O dia seguinte prometia ser de muito trabalho.

    Mal havia deitado na cama e escutou uma batida discreta na veneziana de madeira. Levantou-se e entreabriu a porta avistando uma figura pequena e sorridente. Era uma freira mais velha, de hábito cinza claro, medindo cerca de um metro e meio e com muitos quilos acima do peso ideal. Tinha o rosto redondo e as faces coradas, o sorriso evidenciava uma dentadura já desgastada pelo tempo. Por sob o véu podia-se ver alguns fios de cabelo grisalho e encaracolado, que grudavam nas têmporas suadas.

    – Boa noite, minha filha, desculpe incomodar…

    – Tudo bem… o que houve? – quis saber Ana.

    – Nada, não houve nada… Meu nome é Celestina, Irmã Celestina. Eu passei aqui só para me apresentar. Sou a responsável pela cozinha e gostaria de dizer que és bem vinda aqui. Olha… – disse a freira estendendo para Ana um pratinho de louça tapado com um guardanapo de papel – eu trouxe pra ti. É um bolinho que eu fiz. Espero que goste. Caso sintas fome de noite.

    – Muito obrigada… – disse Ana esboçando um sorriso – mas não precisava.

    – Precisava sim. Saco vazio não pára em pé. E se eu bem conheço a Madre ela vai te colocar no batente amanhã. E tem muita coisa pra fazer, muita mesmo. E, minha filha, qualquer coisa que tu precisares pode me pedir, viu?

    – Obrigada novamente…

    – Minha filha… eu sei que nem sempre quem trabalha consegue comer na hora das refeições… sempre que perderes a hora é só procurar por mim que eu te arrumo uma coisinha pra comer, tá?

    – Tudo bem…

    – Tu já viste onde é a cozinha, não é mesmo? Eu estou quase sempre lá. Se não estiver é só me procurar. Mas… – disse a Irmã baixando o tom de voz e chegando perto de Ana, continuando em tom de sigilo -…isso é segredo nosso, certo?

    – Certo. – concordou Ana.

    – Então eu já vou indo, para que possas descansar. Boa noite. – disse virando-se sorridente e caminhando em direção ao convento.

    – Boa noite. – respondeu Ana – E… Irmã…

    – Sim?… – disse a freira virando-se para trás.

    – Obrigada de novo. E caso a senhora precise de qualquer coisa eu também estou à disposição.

    – Não vou esquecer! – respondeu sorridente – Um dos bicos do meu fogão vive entupindo, agora já sei a quem chamar! Tu entendes de fogão, não entendes?

    – Entendo sim.

    – Que bom! Dorme com Deus, minha filha.

    – Igualmente. – respondeu Ana.

    A morena ainda observou a figura diminuta se distanciando a passos rápidos e curtos e ficou feliz por haver sido alvo da demonstração de bondade daquela senhora. Destampou o pratinho e percebeu tratar-se de um bolo de chocolate com cobertura de côco ralado. Não resistiu e comeu todo o pedaço antes de dormir. Colocou seu relógio de pulso para despertar as seis horas da manhã seguinte.

    Antes do despertar do relógio Ana abriu os olhos, mas desta vez não foi Abelardo quem lhe tirou dos braços de Morfeu. Espreguiçou-se languidamente virando-se na cama de um lado para o outro. Foi até o banheiro e tomou um banho rápido, deixando os cabelos soltos até que secassem naturalmente. Colocou um de seus macacões de trabalho e calçou um par de tênis surrados. Antes das seis e meia estava no refeitório. A Irmã Celestina acenou afetuosamente para a morena, que retribuiu o cumprimento. Quando a Madre Lídia chegou para o café da manhã sentou-se ao lado de Ana, saudando-a amigavelmente:

    – Bom dia, mocinha. Dormiu bem?

    – Muito bem.

    – Ótimo. E conseguiste organizar tuas coisas ontem?

    – Consegui.

    – Então estás pronta para começar o trabalho?

    – Estou.

    – Que bom. Então vamos tomar nosso café.

    Novamente a Madre levantou-se para proferir a oração. Irmã Celestina pediu a palavra:

    – Madre, eu poderia fazer um agradecimento especial?

    – Com certeza, Irmã. – respondeu a Madre.

    – Eu gostaria de agradecer em nossa oração desta manhã a presença de nossa nova funcionária, e agradecer a Deus por tê-la mandado até nosso convento. Que seja bem vinda e que inicie o trabalho conosco com o pé direito! E com as bênçãos de Nossa Senhora do Rosário. Amém.

    – Amém! – responderam as demais.

    Ana ficou encabulada por ser o centro das atenções naquele momento. Não pôde deixar de perceber o olhar gélido e de viés que a Irmã Teodora lhe dirigiu, instalada numa mesa contígua. Não soube identificar bem o que percebeu naquele par de olhos que a observavam atrás das lentes espessas. Talvez um misto de despeito e… ciúmes? Ana não sabia ao certo. Novamente, porém, teve certeza de que precisaria tomar cuidado com ela.

    Ao término do desjejum a Madre conduziu Ana até as dependências da escola. Havia alguns vidros e lâmpadas para serem trocados. Também havia uma sala de aula desativada em virtude de um vazamento que danificou o piso há algum tempo atrás. O vazamento havia sido saneado, mas o piso ainda precisava de reparos.

    – Eu gostaria que começasses aqui pela escola. Alguns pais de alunos já andaram reclamando e eu gostaria de organizar tudo antes do reinício das aulas. O material que precisares, lâmpadas, vidros, lajotas, enfim, qualquer coisa, é só pegar no almoxarifado, com a Irmã Diva.

    – Tudo bem.

    – O que for preciso pegar na Ferragem também é só pedir para ela.

    – Entendido.

    – As ferramentas estão na sala de manutenção. Já deves ter visto.

    – Eu vi sim, inclusive dei uma organizada nas prateleiras.

    – Muito bom… – disse a Madre – pelo visto vamos nos dar bem. Gosto de pessoas com iniciativa.

    – Posso começar?

    – Claro.

    – Então, com licença.

    – Toda.

    Ana afastou-se com passos firmes, sabendo perfeitamente o que havia para ser feito. Nos dias que se seguiram ficou praticamente o tempo todo nas dependências da escola. Seu único contato com as demais Irmãs era na hora das refeições. Desde que chegou não travou nenhum tipo de conversa com ninguém, além da Madre e da Irmã Celestina, que a paparicava sempre que podia. Trabalhou inclusive no sábado.

    No domingo a Madre dispensou seus serviços, sugerindo que fosse até a cidade conhecer as redondezas. Como o dia havia amanhecido ensolarado e quente Ana vestiu uma bermuda jeans e uma camiseta regata verde musgo, disposta a dar uma boa caminhada. Havia acordado tarde, quase dez horas. A hora do café já havia passado, e quando se preparava para sair a Irmã Celestina lhe sorriu da soleira da porta do quarto.

    – Bom dia, dorminhoca! Dormiu mais que a cama?

    – É… de fato eu estava cansada, acabei perdendo a hora.

    – Mas eu não esqueci de ti… olha aqui. – disse a velha senhora estendendo-lhe um cestinho de palha com alguns pães de queijo e uma garrafa térmica com café com leite.

    – Irmã… não precisava se incomodar.

    – Claro que precisava! Eu vejo como você trabalha, minha filha! Não é justo que passe fome.

    – Irmã… se tem uma coisa que eu não tenho passado nos últimos dias é fome…

    – Bom, mas mesmo assim, trata de comer esses pães!

    – Sim senhora. – respondeu Ana frente ao tom amorosamente autoritário da freira.

    A mesma virou-se serelepe e retornou para a cozinha cantarolando uma música religiosa.

    Ana sentou-se na cama de frente para o criado-mudo e devorou seus pães. Sempre fora comilona, porém graças aos exercícios físicos decorrentes da vida pouco sedentária que levava estes não lhe permitiam engordar. Terminando de comer escovou os dentes e deu mais uma penteada nos cabelos, deixando-os soltos. Fechou a porta de seu quarto e dirigiu-se para o caminho ladrilhado que levava ao pórtico de entrada. Antes de chegar ao portão ouviu um alarido de vozes, em um animado discurso. Da estrada, entrando pelo portão principal, vinham duas freiras de bicicleta. Ao vê-la pararam para cumprimenta-la.

    – Bom dia! – disseram quase que em uníssono.

    – Bom dia. – respondeu Ana, sempre séria.

    – Vai passear? – perguntou a mais velha delas que não aparentava ter mais do que 20 anos.

    – Vou.

    – Vai até o centro? – continuou bisbilhotando.

    – Pretendo. – respondeu Ana já ficando irritada com o interrogatório.

    Ana nunca havia gostado de dar explicações de sua vida para ninguém. Fez menção de passar pelo lado, mas a freirinha a interpelou novamente:

    – Quer que a gente vá contigo? Podemos te mostrar a cidade.

    Ana virou-se com o semblante fechado e já ia responder de forma rude quando olhou pela primeira vez, com mais atenção, para sua interlocutora. Era uma jovem de pele muito clara e belíssimos olhos verde-esmeralda. Alguns fios de cabelo loiro caíam sobre sua testa, como que fugitivos da prisão do véu, e eram embalados pela brisa da manhã. As faces estavam coradas pelo esforço físico de pedalar e pela incidência do sol que àquela altura da manhã já estava quase que a pino. A dentição perfeita ostentava um sorriso encantador e afetuoso que acabou por desarmar a impaciência de Ana. Seria impossível ser rude com aquela criatura, mesmo tendo sido responsável por seu primeiro despertar naquele convento, ao perseguir o galo Abelardo naquela madrugada de quarta-feira. A outra freirinha parecia mais jovem ainda, não devia ter mais do que dezesseis anos, quase uma criança. A pele também alva contrastava com uma cabeleira negra que se escondia sob o véu claro. Os olhos negros como duas jabuticabas maduras eram expressivos e alegres.

    – Nós não nos apresentamos ainda, não é mesmo? Que distração a nossa! – continuou a loirinha – Eu sou a Irmã Lúcia. Essa é a Clarice, ela ainda é noviça.

    – Muito prazer! – disse Clarice.

    – Igualmente. – respondeu Ana com mais tolerância no tom de voz.

    – E então? – disse Lúcia – Quer que a gente te mostre a cidade?

    – Muito obrigada, mas eu prefiro ir sozinha. – respondeu Ana virando-se e passando por entre as duas bicicletas, seguindo em direção à rua.

    – Se mudar de idéia é só chamar! – ainda gritou Lúcia.

    Ana apurou o passo e dobrou à direita no portão principal, seguindo pela rua sem asfalto.

    – Porque será que ela não quis a nossa companhia? – perguntou Clarice.

    – Sei lá… – respondeu Lúcia – …coisas de gente da cidade grande. Vai entender… Mas vamos logo que eu quero ir até o pomar pegar algumas frutas.

    Após sair do campo de visão do convento Ana diminuiu o passo e caminhou vagarosamente até a cidade. Era um típico lugarejo de interior. O comércio todo fechado por ser domingo. Algumas pessoas passeando na praça, algumas crianças correndo pelas calçadas e uma meia dúzia de cachorros tomando banho de sol. Da rua principal saíam várias ruas secundárias, e pronto: terminou-se a cidade. Podia-se percorrer o centro de ponta a ponta em menos de meia hora. Havia pouco recurso naquele local e os moradores acabavam recorrendo a São Nicolau, que ficava a mais ou menos trinta quilômetros de distância. Vale Verde subsistia basicamente do gado de corte e da agricultura. Os rebanhos de ovelhas também eram em quantidades razoáveis. Observava-se grandes propriedades rurais contrastando com algumas pequenas propriedades, estas ultimas sem os recursos de maquinários e tecnologia das primeiras. A solução foi trabalhar em cooperativa. E parecia estar dando certo, pois em Vale Verde não se observava muita miséria, uma vez que o desemprego era quase nenhum, sempre havia a possibilidade de se conseguir trabalho nas fazendas. Obviamente existia o jugo dos donos de terras sobre os menos favorecidos, mas de modo geral Vale Verde parecia conviver bem com isso.

    Ana caminhou até a bodega na qual havia pedido informações no dia que chegou à cidade. O bar estava com as portas abertas e algumas mesas de bilhar estavam empilhadas num canto. Um funcionário fazia a limpeza do local. Não havia um único cliente no estabelecimento. Ana entrou e dirigiu-se ao balcão. O funcionário largou o rodo e o balde d’água e veio em sua direção.

    – Pois não, madame.

    – Uma cerveja.

    – Garrafa?

    – Lata.

    – Tem preferência?

    – Me vê uma Brahma.

    O rapaz estendeu a cerveja e Ana pagou com uma nota de dez. Colocou o troco no bolso da bermuda e limpou a parte de cima da lata com um guardanapo de papel. A latinha estava estupidamente gelada e Ana sorveu os primeiros goles com os olhos semicerrados, entregando-se ao prazer de sentir aquela bebida gélida descendo por sua garganta seca.

    Neste momento o dono do bar, que havia conversado com ela na noite em que chegou à cidade, entrou por uma porta lateral e veio na direção de Ana, reconhecendo-a.

    – Bom dia, moça.

    – Bom dia.

    – Achou o convento, então? – perguntou o homem olhando Ana de cima a baixo intrigado, pois sua vestimenta em nada se assemelhava aos trajes usados pelas freiras.

    – Achei.

    – E ta parando por lá?

    – Tô.

    O homem estava de fato curioso, porém o tom de voz de Ana o desencorajou a formular maiores questionamentos. Tratou de organizar o balcão. Quando Ana enfim pediu mais uma cerveja o homem não se conteve:

    – A moça vai ficar por aqui muito tempo?

    – É possível.

    – Mas… faz o quê no convento?

    – Além de rezar? – respondeu Ana ironicamente.

    – É…

    – Manutenção.

    – Mas isso é serviço de homem…

    – Mas é o que eu faço.

    O dono do bar coçou o queixo enquanto continuava a observar a forasteira.

    – A moça veio de onde?

    – De longe. – respondeu Ana demonstrando pelo tom de voz que a conversa acabava por ali.

    – Ah… Bom, seja bem vinda então. Quando precisar dos serviços do meu estabelecimento estamos à disposição.

    – Se joga bilhar por aqui ou as mesas são só enfeite?

    – Se joga sim senhora, quase todas as noites. A homarada vem em peso! – disse o bodegueiro empolgado – Mas se a moça quiser jogar também não tem problema… – continuou tentando retificar a gafe.

    – Quem sabe um dia desses… – respondeu Ana virando-se e saindo do bar.

    O homem ficou parado observando o caminhar de Ana enquanto se distanciava. “Que monumento…”, pensou, “tem um jeitinho meio esquisito, meio abrutalhado, mas é um mulherão… ô se é”.

    Ana retornou ao convento por volta das duas horas da tarde. No seu criado-mudo encontrou uma vianda térmica com seu almoço e uma jarra de suco natural de laranja. Sorriu e sentou-se para comer. Por certo havia sido a Irmã Celestina que estivera ali. Após comer deitou-se por cerca de uma hora para descansar da caminhada. Por volta das três e meia resolveu explorar o restante da propriedade do convento. Saiu para caminhar em direção aos fundos, onde lhe falaram que havia o pomar, o galinheiro e as pastagens.

    Seguiu por uma viela margeada de arbustos floridos. Depois de cerca de cinqüenta metros a vista se abria numa clareira onde uma construção rústica abrigava cerca de trinta galinhas. Ao lado o viveiro dos coelhos, todo cercado de uma tela miúda, tinha no seu centro uma casinha de madeira pintada de amarelo, com portas minúsculas que serviam de entra-e-sai para as bolinhas de pêlo que ocupavam aquele espaço. Ana contou cinco coelhos, quatro brancos e um negro como o ébano. Colheu um feixe de capim rasteiro e introduziu pequenas porções de vegetação pelos espaços da tela. Os pequenos animaizinhos, com seus narizes avermelhados, comeram avidamente a refeição oferecida. Ana divertiu-se com a cena. Ficou quase meia hora observando os pequenos roedores. Resolveu seguir seu passeio exploratório. Continuou caminhando na direção dos fundos da propriedade. Após um ligeiro declive o terreno se fechava numa mata nativa. Havia uma trilha estreita e Ana resolveu enveredar por ela. Caminhou vagarosamente observando o colorido das folhas e sentindo a umidade agradável da vegetação cerrada, contrastando com o calor do sol de verão. Andou mais de meia hora prestando atenção na trilha para não se perder na volta. De repente começou a ouvir um barulho de água corrente e um quase inaudível burburinho de vozes. Aguçou o ouvido e seguiu em frente silenciosamente. Não chegou a andar dez metros e avistou uma pequena queda d’água, de aproximadamente três metros de altura, que formava uma piscina natural e que dava vazão a um pequeno córrego que seguia encosta abaixo. Protegida pela vegetação abaixou-se e observou duas silhuetas que se banhavam na água gelada que escorria pelas rochas. Era Lúcia e Clarice que tagarelavam alegremente.

    – Ai, que coisa boa essa água, ein? – disse Clarice.

    – Ta uma delícia! Esse córrego é uma bênção dos céus num dia como hoje!

    – Nem fale… Mas, Lúcia…

    – O que é?

    – E se a Madre souber que viemos aqui?

    – O que é que tem?

    – Ela vai nos xingar. – disse Clarice em tom de preocupação.

    – Não vai nada. – respondeu Lúcia.

    – Vai sim! Ela sempre disse que não era pra gente vir pra esses lados!

    – Mas ela não precisa ficar sabendo…

    – Mas e se ela perguntar? – insistiu Clarice.

    – Mas ela não vai perguntar!!!

    – Como é que tu sabe?

    – E porque ela perguntaria? – quis saber Lúcia.

    – Sei lá! Às vezes a Madre parece adivinhar os nossos pensamentos…

    – Mas se tu não fizeres uma cara de quem fez pum na missa ela não vai saber! – disse Lúcia.

    – Tu acha?

    – Tenho certeza! É só a gente esperar o cabelo secar e pronto! – respondeu Lúcia jogando água no rosto de Clarice, numa brincadeira divertida.

    Naquele momento era Ana quem estava se divertindo com a traquinagem das jovens freiras. Pensou em dar um susto nas duas, mas desistiu de seu intento imaginando o embaraço por que passariam as transgressoras. Nesse instante Lúcia nadou até a borda e saiu de dentro d’água. De seu posto de observação Ana pode ver a silhueta do corpo da jovem que trajava apenas uma calcinha e uma camiseta regata branca e transparente em decorrência de estar molhada. Prendeu a respiração e não conseguiu desviar a atenção dos bicos endurecidos dos seios que se projetavam da blusa molhada. A jovem tinha o corpo pequeno, mas muito bem definido. Os cabelos molhados e soltos pendiam até a metade dos ombros, num corte reto. Lúcia sentou-se numa pedra onde os raios do sol conseguiam penetrar pela vegetação, na intenção de se secar. Ana pode perceber o reflexo da água nos pêlos dourados dos braços e das pernas. Quando Lúcia fez menção de tirar a blusa para colocar o hábito que repousava num galho de árvore Ana virou-se abruptamente, desviando os olhos do que considerou ser um pecado. “Que é isso, Ana”, pensou consigo mesma, “ela é uma freira! Quer arder no fogo do inferno?”, “além do quê é quase uma criança”. Recriminando-se pelos seus pensamentos afastou-se em silêncio e tratou de voltar para casa. De volta ao seu quarto olhou-se no espelho, estava transpirando muito. Foi até o galpão da manutenção e colocou sua luva de boxe, caminhando até o saco de areia que havia estrategicamente pendurado num canto. Praticava boxe desde muito jovem e naquele momento sentiu necessidade de canalizar sua energia para desanuviar sua mente. Treinou por mais de hora soqueando o adversário imaginário. Por fim, exausta, tomou um banho relaxante. Já estava na hora da janta. Foi até o refeitório e deparou-se com as duas arteiras sentadas lado a lado, com as caras mais deslavadas possíveis, como se nada tivessem feito de errado. Na verdade Ana não via nada de errado em nadar num dia quente como aquele. Talvez fosse arriscado por ser um lugar ermo, mas só por isso. Jantou cabisbaixa e recolheu-se aos seus aposentos para dormir. A segunda-feira prometia ser apenas o início de uma semana de bastante trabalho.

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