1 – Mais perto do que parece
por DietrichA barda entrou silenciosamente no grande templo de pedra, carregando um buquê de flores diversas junto ao seu peito. Aproximou-se do altar e ajoelhou-se diante do espaço das oferendas, depositando o arranjo com cuidado ao lado das demais. Fechou os olhos e começou a recitar em sua mente o poema religioso que tinha composto em homenagem à deusa.
És dos homens e mulheres a maior força
A mais bela e mais cruel das imortais
De teu suspiro nascem as grandes guerras
E também as dádivas mais celestiais
Quão belo é o rio da vida que margeias
E abraças com tuas mãos!
De ti é minha alma e meu canto
Em mim, tua visão e benção
Vieste do mar ao qual todos voltaremos
Pois todos somos unos contigo
De ti não quero nada, exceto que permita
Que o amor seja o que guiará minha vida
Que teu poder seja o ânimo dos meus passos
Que tua essência se manifeste nas minhas palavras
E que eu possa ser uma gota do teu mar no mundo
– E você ainda pergunta porque é minha favorita.
A poetisa abriu os olhos e sorriu ao ver a deusa materializada na sua frente. Era raro que a imortal a agraciasse com sua presença física, mas Gabrielle tinha a sorte de ter conseguido o favor de Afrodite em sua vida. A primeira vez que ela lhe aparecera quase morrera de susto, mas, em sua jornada pela Grécia contando histórias, Gabrielle sempre tirava algum tempo para visitar seus templos, e em algumas dessas vezes a divindade aparecia para visitá-la.
– Levanta, pequena – disse Afrodite.
A barda se levantou e imediatamente a deusa a envolveu em um abraço. Era sempre uma sensação inexplicável, pois, apesar de poder sentir o corpo material que a deusa projetava, era engolfada também pela sensação contraditória de um poder que era, ao mesmo tempo, calmo e turbulento, caloroso e assustador, uma espécie de imensidão difusa que a fazia por alguns minutos experimentar a transcendência.
– Então, festival de artes em Atenas, hein? – comentou a deusa ao soltá-la – como está se sentindo?
– Bastante nervosa – disse Gabrielle – nunca participei de um festival numa cidade grande.
– Tenho certeza que vai arrebatar corações mortais com sua performance. Cairão de amores por você.
– Afrodite… – a barda baixou os olhos, receosa de perguntar.
– Shh, já sei o que está pensando. Está se questionando porque, sendo minha garota especial, ainda não foi agraciada com minha maior benção.
– Às vezes é difícil escrever sobre algo que ainda não experimentei. Eu canto ao amor, eu vejo o amor, é a mais bela força da terra. Mas…
A deusa segurou o rosto da barda e puxou-o, encostando seus lábios nos dela. Gabrielle foi novamente tomada por aquela sensação, que ia muito além da suavidade dos lábios de Afrodite beijando os seus. A deusa se afastou e acariciou seu rosto.
– Não tenha pressa, pequena. Além do mais, gosto demais de você para interferir nisso. Teu amor vai vir por conta própria. Quem sabe? Talvez esteja mais perto do que você pensa. Até lá – a deusa encostou a mão no peito de Gabrielle – seu coração é meu, está protegido e estou cuidando dele. Não o devolverei até seu amor chegar – a deusa deu uma piscadela graciosa, se afastou e desapareceu.
Gabrielle suspirou, ao mesmo tempo consolada e resignada pelas palavras de Afrodite, e saiu do templo.
***
A guerreira empurrou, com ferocidade, o homem algemado para dentro do composto prisional de Atenas.
– Bem-vindo à sua nova casa, escória.
Darius, o diretor do composto, se aproximou, sorridente:
– Muito obrigado, Xena. Tudo que não precisávamos era Telamon perturbando o festival. Você vai querer a recompensa?
– Sabe que não faço isso por dinheiro, Darius. Mas, se quer me recompensar, garanta que esse rato vai apodrecer na masmorra por todas as pessoas que matou.
– Com isso você não precisa se preocupar – o diretor estendeu a mão e Xena a apertou – mais uma vez, muito obrigado. Você vai ficar para o festival?
– Sabe que essa coisa de música, dança e teatro não é meu estilo, Darius.
– Bem, eu tinha que perguntar.
Xena sorriu e balançou a cabeça, se despedindo de Darius e saindo do local. Começou a caminhar pelas ruas de Atenas, que já estavam começando a ficar lotadas. A guerreira começou a ficar incomodada com aquele excesso de pessoas e tentou visualizar a rota mais curta de saída, quando uma voz chamou sua atenção. Vinha de um pequeno anfiteatro em uma das praças.
– Ela era Xena, uma poderosa princesa forjada no calor da batalha…
A guerreira entrou no anfiteatro e sentou-se em uma das últimas fileiras. Uma jovem loira contava uma história sobre ela. A narrativa era bastante exagerada, cheia de carruagens de fogo, duelos com seres místicos e a retratava como espécie de semideusa com poderes sobre-humanos. Bastante diferente de sua pouco heroica e muito sangrenta história real.
Xena começou a achar graça e deixou-se levar, entretida. Apesar do relato distante da realidade, a jovem o contava muito bem e todos estavam fixados em sua prosa.
– E quando Xena devolveu o bebê, o rei percebeu que a profecia estava realizada. Que fios misteriosos os destinos tinham tecido! Quem somos nós para ler e tentar mudar os caminhos que os deuses estendem diante de nós? Pois, foi tentando evitá-los, que o rei os percorreu. E foi Xena, a guerreira em redenção, com a força de sua espada, que deu a essa criança um novo lar. O pai encontrou seu filho, o filho encontrou seu pai, e a guerreira encontrou seu caminho de justiça.
A jovem terminou sua narração em tom dramático e todos aplaudiram de pé. Xena acompanhou a saudação, tinha realmente gostado da apresentação. Seu sorriso sumiu quando um senso de perigo se apoderou de seus sentidos.
A guerreira demorou um pouco para se localizar. Olhou ao redor. As pessoas ainda aplaudiam, ninguém fazia nada suspeito. Tomada por um sentido de urgência, Xena olhou para o centro do anfiteatro, onde a barda continuava se curvando diante da plateia que lhe jogava flores. Deixou seu corpo falar por si e saltou em direção ao centro do palco, dando seu grito de guerra.
Todos se viraram imediatamente para olhá-la, absolutamente espantados, e ofegaram quando a guerreira agarrou uma flecha bem diante do rosto da narradora.
***
– Deuses! – a barda exclamou, estupefata ao olhar a flecha que a mulher segurava.
– Se abaixe! – gritou a guerreira, ao segurar uma segunda flecha logo antes que ela pudesse atingir a jovem loira.
Xena finalmente tinha localizado a origem do ataque. Correu a toda velocidade em direção a uma grande árvore na praça e saltou em seus galhos. Agarrou um homem que lá estava e o derrubou. Era um jovem de cabelos pretos, que caiu no chão, apavorado, e se levantou para tentar fugir. A guerreira pulou da árvore e aterrizou bem em cima dele. O homem gritou e tentou se desvencilhar, mas Xena o imobilizou, prendendo seus braços e sentando em cima dele.
As pessoas correram para ver a confusão. Xena ouviu uma exclamação atrás de si:
– Pérdicas?! – era a barda que falava.
– Você conhece esse cara? – perguntou a guerreira.
– Ele.. ele… – a jovem engoliu em seco – é meu ex-noivo.
– Bem – a guerreira continuava prendendo o homem, que tentava se soltar – parece que você se livrou por pouco.
– Pérdicas! – a loira se aproximou – o que pensa que estava fazendo?
– Vou matá-la! – o homem agora chorava – se não é minha, não será de ninguém!
Gabrielle cobriu a boca com as mãos. Xena chamou os guardas, que trouxeram correntes para prender o homem.
– Esperem, não! – Gabrielle se aproximou – o que vão fazer com ele?
– Foi pego em tentativa flagrante de assassinato. Será preso – disse um dos guardas.
– Oh, deuses! – a jovem parecia em choque completo.
– Podem me prender – disse Pérdicas – assim que eu sair, irei matá-la.
– Levem logo esse cara daqui – Xena se adiantou – ela já teve o bastante, não precisa ficar ouvindo essas coisas.
Os guardas arrastaram o homem dali. A multidão era um burburinho. A jovem parecia sem reação, e Xena viu que precisava tirá-la dali.
– Vocês todos, não tem um monte de outros espetáculos para assistir? Esse aqui já acabou – disse à multidão, depois voltou-se para Gabrielle – venha, vamos sair daqui.
Gabrielle se deixou levar, ainda atordoada. Xena a levou até um local afastado e vazio entre duas casas. A barda começou a chorar copiosamente. Xena ficou sem jeito, não sabia muito o que dizer ou fazer naqueles momentos. Se aproximou e tentou colocar uma mão no ombro da loira, que, de súbito, a agarrou e continuou a chorar em seu colo. A guerreira arregalou os olhos, bastante desconfortável, mas não teve nervos para afastar a pequena loira. Em vez disso, colocou uma mão em suas costas e deu alguns tapinhas desajeitados.
Depois de um tempo, a barda se acalmou um pouco e a soltou.
– Me desculpe – disse Gabrielle, com voz embargada, finalmente erguendo os olhos para a outra mulher – nem te conheço. Você me salvou. Eu não tenho nada para você, não tenho dinheiro, eu…
– Não precisa me dar nada. Você está bem?
– Acho que sim – a jovem enxugou os olhos – não acredito que isso aconteceu. Ele era um rapaz doce, meu amigo de infância. Por que ele fez isso?
– Alguns caras, mesmo os simpáticos, acham que são donos das mulheres.
– Deve ser culpa minha. Eu o magoei quando desisti do casamento para viajar e me tornar barda.
– Ei, não é culpa sua! Se ele gostasse mesmo de você ia apoiar sua felicidade, mesmo que não fosse com ele. Ele é só mais um que confundiu amor com posse.
– Deuses… não acredito. De novo, nem tenho como te agradecer. Nem mesmo perguntei seu nome.
– Diante do que acabou de passar, como lembrar desses detalhes?
– É verdade – a jovem deu um meio-sorriso cansado – mas como se chama?
A guerreira fez um pequeno suspense antes de responder.
– Sou Xena.
Teve se controlar para não rir diante da expressão que a jovem loira fez.
– Xena? A princesa guerreira?
– Alguns me chamam assim. Eu ouvi sua história. Muito boa.
A jovem ficou vermelha de vergonha.
– Está brincando comigo! É mesmo Xena?
– Já lhe disse que sou. E você, quem é?
– Gabrielle. Sou Gabrielle. Não estou acreditando em você. Se bem que… você pegou duas flechas no ar. Deve ser mesmo Xena. Deuses – Gabrielle olhou para o lado, processando a informação – fui salva por Xena.
– Bem, não vamos nos apegar a isso. Fico feliz que você está bem. Tenha cuidado com aquele homem. Adeus – a guerreira começou a se virar para sair.
– Espere! – a barda segurou a guerreira pelo braço. Xena se voltou, confusa – tem certeza que não posso te agradecer de nenhuma forma? Acabou de salvar minha vida. Deixe eu, sei lá, pelo menos te pagar uma refeição.
– Realmente não precisa, Gabrielle.
– Por favor – disse Gabrielle – eu insisto. Estou na taverna de Héracles. Passa lá hoje a noite e me deixa te pagar um jantar? Não vou ficar em paz se não fizer algo por você.
A guerreira começou a ficar um pouco impaciente. Na verdade, estava ansiosa para sair daquela cidade lotada. Mas o rosto expectante da loira a desarmou e ela suspirou, resignada:
– Tá certo. Passarei lá.
– Promete?
– Prometo.
A loira deu um grande sorriso e saiu. Xena ainda ficou parada uns momentos, as mãos na cintura, perguntando-se em que estava se metendo.
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