Despertar
por Bidi NaschpitzO vento frio de Inverno batia na janela, levantando os trapos que mal serviam de cortina-barreira para impedir que o mesmo a alcançasse. Uma vela iluminava tão parcamente o quarto quanto à jovem loira que escrevia no pergaminho. Inconscientemente um singelo sorriso iluminava seus olhos. A essência do espírito que jamais morreria.
“… e Xena saltou à frente da jovem barda, soltando um som gutural que lembrava o raivoso cão do inferno. E a menina, naquele instante – com paralisados olhos que encaravam as costas musculosas da guerreira -, pôs-se a entender o mistério que envolvia aquela amizade tão imortal quanto os Deuses, da vida que lhe fora destinada, antes tão imparciais. Naquele mesmo instante, a Princesa Guerreira se virou e seus olhos se encontraram por frações de segundos eternos. Para seu coração, a eternidade estendeu-se diante de si. Os cálidos olhos a iluminaram, tão repletos de um amor infinito e uma amizade que os Deuses não puderam desafiar; o choque elétrico que percorreu sua espinha lhe deu certeza da única coisa mais verídica que a morte em pessoa e até mesmo mais forte…”
– “… a convicção de que aquela alma lhe falou sem palavras – a infinidade tão forte de um amor que transcenderia a própria morte e seria um fim em si mesmo”. Ei, eu que te disse isso anos atrás, ahn?
– Xena! – Gabrielle se virou, encontrando com o rosto da guerreira tão próximo ao seu, devido à mesma estar debruçada sobre ela e apoiada na mesa pelos braços. – Eu não te ouvi chegar.
A alta morena limitou-se a rir.
– Não que você pudesse ouvir um fantasma chegando, Gabrielle – um traço da profunda tristeza que ainda ardia nas cicatrizes abertas daqueles olhos verdes, cutucou o coração de Xena.
Ela forçou um sorriso. Sempre seria assim, tola e indefesa Princesa Guerreira diante da Barda de Potédia. Depositou um beijo na cabeça loira.
– Você sempre se desligou do mundo para poder escrever – Gabrielle suspirou enquanto se levantava, empurrando Xena suavemente.
– Nesses tempos eu tinha essa liberdade porque você me dava – continuou andando até a janela enquanto falava. – Eu sabia que você estaria lá para me proteger. Mas agora… – se virou para a guerreira, agora com as visíveis lágrimas brilhando em seus olhos; um sorriso triste brotou do seu amargurado ser. – Você não vai estar mais lá… Você não está mais aqui.
Xena tenta manter a calma e a doçura.
– Gabrielle, eu sempre vou estar aqui.
– Xena…! – exasperou a barda, abrindo os braços e revirando os olhos, girando pelo quarto num gesto tão costumeiro para a morena. – Eu encontrei minha felicidade, minha vida e meu amor anos atrás, para ter isso tirado de mim logo após finalmente descobrir toda a verdade de nossas vidas – olhou diretamente para a Princesa Guerreira, apontando para ela quando a viu abrir a boca. – Não, Xena, não tente, não novamente. Você sabe o quanto é estúpido para mim tudo isso de almas precisarem ser vingadas para encontrar paz. Elas encontraram isso ao serem libertadas de Yodoshi! Por anos nós lutamos defendendo a mensagem de Eli, fomos incumbidas de proteger a Mensageira – ela se aproxima de Xena, uma teimosa lágrima insiste em escorrer. – E agora você me diz que almas livres precisam ser vingadas? Por favor… – a barda solta o ar entre uma gargalhada contida e um suspiro indignado.
Xena desvia o olhar brevemente para o chão antes de responder. Como competir com a língua ferina? Então olhou honestamente nos olhos da loira.
– O Japão sempre foi algo totalmente diferente e desconhecido para nós em comparação com a Grécia, assim como Chin e Índia, Gabrielle. Talvez as coisas sejam diferentes por lá.
Gabrielle abaixou a cabeça, mantendo-a assim quando se sentou na cama, olhando fixamente para um ponto perdido no chão.
– Talvez… Mas a mensagem de Eli dizia que seu Deus do Amor deveria ser espalhado pela boca das pessoas… E isso quer dizer todo o mundo, não…? – indagou para si mesma.
Xena deu um pequeno sorriso e sentou ao lado da barda na cama, passando um braço por cima dos ombros dela.
– A vida é regida pelos mistérios, Gabrielle, você me ensinou isso, você me ensinou a apreciar a beleza em cada um deles – capturou a atenção da loira ao pronunciar essas palavras, e envolveu a mão dela com a sua. – E mais que isso, você impôs respeito no meu coração, me obrigou a procurar respostas mais fundo e a ser paciente quando outrora, em tempos remotos, eu tentaria arrancá-las à força, mesmo que isso custasse minha vida – olhou para os dedos de ambas, entrelaçados, enquanto rodeava as mãos da barda com suas duas dessa vez. – Então, Gabrielle, agora eu te peço a mesma coisa… Não entenda, só respeite e aceite. Você é minha alma gêmea, minha vida, minha razão para viver. Você disse isso uma vez, e olhe para mim agora. Eu nunca vou te deixar, e sinto essa certeza irradiando da sua alma – sorriu a imponente guerreira enquanto a barda fechava os olhos.
– Xena, você não tem idéia do quanto sua ausência física me rasga a alma, o frio que sinto à noite depois de anos acostumada com seu calor junto ao meu. Seu caminho é meu caminho, Xena, é sempre estar ao seu lado… Mas como poderei cumprir meu karma nessa vida, condenada a essa condição de meia presença? Você não tem idéia de como a imagem do seu corpo no Jap-
Xena colocou rapidamente dois dedos sobre os lábios da poetisa, silenciando-a. As imagens dos pesadelos, da terrível dor que infligira em sua alma gêmea, na qual era obrigada a testemunhar impotente – seu castigo por ter sido obcecada com sua redenção, não ter percebido o ciúme e a inveja que destruiriam para sempre sua vida com a barda, e ter deixado Gabrielle e seu amor de lado, que agora sabia e não poderia contar-lhe -, inundaram todo o seu ser, amargurando ainda mais essa condição de espírito inútil em que se encontrava. E quando falou, teve a voz embargada pelas lágrimas que não era digna de derramar, assim tão impedidas pela guerreira.
– Não, Gabrielle, eu sei. Acredite, eu sei… Eu estou lá, eu vejo – puxou a barda mais para si para poder abraçá-la.
A loira apoiou a cabeça no peito da morena e fechou os olhos, murmurando:
– Há muito tempo eu não sei o que é ter a mente limpa, Xena… Poder dormir de verdade… – Xena beija sua cabeça.
– Essa noite, Gabrielle… Essa noite eu prometo que esses demônios te deixarão, mesmo que isso custe minha existência.
A barda sorriu.
– Sempre cuidando de mim, hum?
– Sempre – sorriu de volta.
Uma fagulha de luz da antiga felicidade baseada pela iluminada jovem que fora uma vez, timidamente começou a brilhar enquanto ela se deitava na cama, com sua alma gêmea lhe enlaçando a cintura. O pequeno despertar da obviedade diante de seus fechados olhos, a fez se abrir ligeiramente para a velha alegria que lhe pertencera e a consumia em outrora. Xena nunca se fora. Nem nunca iria.
“Todo sopro que apaga uma chama, reacende o que for pra ficar…”
E naquela noite, nenhuma imagem ruim a visitou. Tampouco pesadelos a assombraram e sensações amargas a consumiram. Estava nos braços de sua alma gêmea – sua amiga, sua protetora e seu amor. E então soube que seria assim – para todo o sempre.