Primeira parte

Olhos verdes quase entorpecidos fitavam o solo escaldante a sua frente… Seu corpo cansado recostava-se uma árvore, as mãos repousavam sobre a pouca vegetação e os pés calçados com surradas botas estavam esticados para a frente. Sentada naquele pequeno Oásis procurava encontrar forças… Pra se levantar dali? Pra seguir em frente? Nem sabia. Não sabia se ao menos faria diferença sair dali ou morrer debaixo do sol escaldante daquele deserto. Parecia uma alternativa tentadora a de acabar com a dor e a angústia que sentia. Mas isso não era ela.

Eles precisavam de uma garota com um chakram. Havia sido mais uma batalha sangrenta em prol do que um dia chamou de bem supremo. Uma batalha, que para ser vencida, precisou que seu instinto guerreiro mais frio fosse libertado mais uma vez. Lembrou-se dos horrores do Helicon e de como odiava a sensação de sangue seco por todas as suas mãos. Mas dessa vez, ela não estava lá para lhe abraçar a noite e sussurrar em seu ouvido até que os pesadelos da batalha fossem embora e pudesse repousar. Ela não estava lá para limpar o sangue de suas mãos e lhe abraçar forte quando o mundo todo parecia em pedaços.

O bem supremo valia algo agora?

“Eu sei que esse não é o tipo de pensamento que você esperava que eu tivesse… Mas eu não sou mais aquela garotinha que acreditava no mundo” sussurrou consigo. “Eu não quero ser a heroína que todos esperam que eu seja. Eu não quero ter de pensar somente no próximo quando eu preciso de ajuda! Eu não quero viver por uma causa na qual eu não vejo mais razões pra acreditar!” sem perceber, seu tom de voz havia subido consideravelmente, de um sussurro havia passado a brados furiosos que ecoavam pelo vazio daquela terra. Levantou-se com as pernas ainda meio trêmulas e olhou para o céu alaranjado pelo sol.

“Me leve com você. Eu não pertenço mais a esse lugar! Meu lar é você. Me leve com você! Me leve com você….me leve…” – caiu novamente, de joelhos na areia fofa e escaldante.Suas vestes  pesadas próprias do deserto estavam surradas e seu corpo cheio de machucados.

Fechou os olhos deixando um suspiro cansado escapar. Estava exausta, havia dias que não tinha uma refeição decente, olheiras muito perceptíveis emolduravam seus olhos e o rosto que antes ostentava alegria, vida e esperança aparentava agora estar mais velho, castigado pelo sol. Fazia três meses que encarava essa rotina degradante, chutar, bater, matar…mais cicatrizes em seu corpo, menos luz em sua alma, menos esperança, menos força…Tudo porque a maldita Terra dos Faraós precisava de uma garota com o Chakram…

Depois de várias estratégias traçadas finalmente derrotara o exército dos sacerdotes de Set que investiam contra os Templos do Deus de Eli, construídos recentemente naquela terra. Era a primeira guerra que enfrentava sozinha e  percebia o quanto seria difícil viver dali pra frente. Não se tratava de precisar de Xena no sentido puramente prático, para que derrotasse os vilões .Se tratava da necessidade que tinha de olhar naqueles olhos azuis e ver ali a força que precisava porque sabia que ambas tinham um propósito juntas e somente por isso, ter forças para dar o melhor de si. Agora nem mesmo sentia a certeza que tinha antes de lutar pelo Deus de Eli. O que Ele tinha feito de bom? Xena havia aberto o caminho para Ele e agora estava morta.

Separadas, era como se esse propósito não fizesse mais sentido.Mas ainda havia tanto a ser feito…

“Talvez realmente seja a hora de desistir de tudo” sussurrou. Sua visão ficava turva e sua cabeça pendia. O calor estava começando a causar real dano ao seu corpo. A última coisa que  percebeu foi o sol tremulante no horizonte e um relinchar preocupado de Argo II então seus olhos se fecharam e seu corpo caiu cansado na areia.

Passaram-se poucos segundos quando uma figura atlética de reluzentes cabelos negros se materializou no local. Olhou para Gabrielle com um semblante que por um momento lembrava piedade e balançou a cabeça em frustração.Tomou o corpo frágil debilitado nos braços e evaporou.

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Os olhos da barda se abriram devagar, acostumando-se com a luminosidade do ambiente onde se encontravam. Fitou primeiramente um teto de mármore branco e percebeu a agradável temperatura ambiente, tão diferente do deserto. Levantou-se rapidamente da espécie de leito no qual repousava e olhou para os lados procurando suas armas, para encontrá-las numa mesa, sais, espada e chakram alinhados cuidadosamente.

-Quem está aí? – perguntou, ouvindo sua voz ecoar. Percebeu uma pequena fonte ao meio do salão e foi até ela, olhando-se na água e percebendo seu rosto cansado.Juntou nas mãos um pouco de água e jogou em sua face e nuca, tentando  se revigorar.

-Então finalmente acordou, preciosa Gabrielle – zombou uma voz sarcástica.

-Você? O que você quer? Você me trouxe aqui?

-Sim, quem mais iria até o meio do deserto escaldante pra te resgatar da morte certa com tamanha facilidade? Mas não se preocupe. Não cobrarei nada dessa vez. Considere como um presente.

-Certamente você não é uma das primeiras pessoas da lista – disse rispidamente – O que você quer dessa vez? Já não basta a minha vida ser complicada o bastante sem sua presença? Eu não tenho mais nada que você queira, por que me resgatou? Eu nunca pedi sua ajuda! – gritou.

-Você me subestima. Não sou o monstro que pensa que sou.

-Sim, você é, Ares. É isso que você faz, não é?

-Ás vezes , mas assuma que temos algo em comum, agora.

-Eu não sou um monstro. Eu tive que matar pessoas, mas eu não sou…

-Não estou falando disso. Estou falando de nós dois sermos abandonados pela mulher que amamos. Pela mulher que dedicamos nossas vidas.

-Você nunca…

-Não diga! Não diga que eu nunca me dediquei por Xena, porque você não entende nada Gabrielle! Existem diferentes meios de viver por uma pessoa. Para ela os meus métodos não eram os mais louváveis, mas a Xena que vivia anos antes de te conhecer os teria aprovado! Mas tanto aquela Xena, guerreira sanguinária, quanto aquela cheia de vontade de lutar por causas que não entendo, ambas, nos deixaram.

-Sim, nos deixaram. Isso contudo não explica você ter me tirado de lá. Por que? Por que não me deixou morrer? Não faz sentido viver assim.Você não entende o que eu sinto Ares, nunca entenderá.Você nunca foi mortal ou humano o bastante para entender.

Ares caminhou até a mesa, pegando o chakram em suas mãos e o examinando, como se aquele objeto pudesse lhe deixar mais perto da mulher que amava.

-Você também não entende. – disse com um tom enigmático. –A morte não será seu caminho pequena Gabrielle.O que diria Xena se sua aprendiz de repente abandonasse tudo num ato impulsionado unicamente por sentimentos feridos.Você pode ser grande, Gabrielle, tem potencial, tem equilíbrio, coisa que por muitas vezes faltou em Xena. O mundo já perdeu uma guerreira de porte quando Xena naquele ato de tola compaixão resolveu se matar. Seria uma pena que outra tivesse o mesmo caminho. Afinal, o mundo precisa de heróis pra combater monstros como eu.

-Qual seu ponto Ares? O que você ganha com toda essa conversa tão comovedora? – perguntou com raiva. – e depois de tudo… Eu não estou mais vivendo.

-Eu já te salvei a vida no passado. Por que me recrimina tanto por fazê-lo outra vez? Sei como se sente Gabrielle, posso ver em seu coração. Você perdeu todo alicerce que te sustentava e sua alma está reduzida a tantos pedaços que você acha que jamais se juntarão novamente. Pois bem, tenho uma proposta para você.

-Não quero ouvi-la. Já conheço suas propostas Ares e já as recusei anteriormente.

-Anteriormente… Deixe-me pensar, anteriormente quando sabia que Xena recriminaria sua decisão? Anteriormente quando fazia o que Xena achava que era o certo? Anteriormente  quando tinha Xena para servir de alicerce para sua vida? Bem, deixe-me te lembrar, ela foi embora. Abandonou você por escolha própria, depois de tudo que passaram e ela pensou nos seus sentimentos? Não… Se preocupou apenas com o próprio bem estar, com a própria redenção, ignorando seus  apelos desesperados, e ainda teve a AUDÁCIA de dizer que o fez por causa de tudo que aprendeu viajando ao seu lado, como se você fosse um dos motivos. Eu sei de tudo que aconteceu, eu sei de toda a história e a guerreira que eu forjei nunca teria…

-BASTA! Cale-se Ares, você não sabe nada! – gritou sentindo o sangue correr rápido em suas veias devido as palavras que escutara, as quais ela sabia que continham uma parte de verdade. Xena havia pensado somente em si mesma. Somente no Bem Maior, quando antes havia dito que Gabrielle era em sua vida o que estava acima do bem maior. Quando havia desrespeitado anteriormente sua decisão semelhante porque não tolerava a idéia de viver sem Gabrielle.Mas havia pensado na situação inversa? Não, como Ares havia dito, “se preocupou apenas com o próprio bem estar, com a própria redenção, ignorando seus apelos desesperados”. Não era uma troca justa. Era uma troca bem amarga.

-Eu posso parar essa dor. Posso dar outro alicerce pra sua vida. – disse Ares.

-Oh, estou comovida. O que quer de mim? O mesmo que queria de Xena?

-Não quero lhe pedir nada. Pelo contrário. Quero lhe dar um presente, o esquecimento. Não seria agradável, seguir seu caminho sem sentir sua alma em milhares de pedaços? Não posso reunir esses pedaços, mas posso consumir com a lembrança do que os fez. O mundo teria de volta sua heroína, lutando com vigor e sagacidade.

-A troco de esquecer Xena? Esquece Ares.

-Você não esqueceria Xena ou o que ela representou em sua vida. Esqueceria a dor que ela lhe causou. A dor que a ausência dela lhe causou. Seria como uma daquelas lembranças de infância, que embora estejam vivas, não afetam mais nossa vida presente.

-E como você faria isso? Você não tem o poder de manipular as lembranças, isso está a cargo de  Mnemosyne.

-Não, Gabrielle, a resposta é muito mais pratica e instantânea. – Ares estendeu a mão na qual apareceu uma larga taça preenchida com a substância gelatinosa que Gabrielle conhecia bem.

-Ambrosia? – indagou com imensa surpresa lhe cruzando os olhos.

-Não é uma idéia magnífica? Deusa Gabrielle, pense em quanto bem poderia fazer? Ajudar esses reles mortais pelos quais você tem que se arrebentar em cada batalha com um mero acenar, acabar com tudo que você despreza, com déspotas, opressores, tornar o mundo o lugar com o qual você sempre sonhou… Trazer a Terra uma nova idade dourada onde impera a sua vontade? A vontade de uma… poetisa, e não de uma tirana. – Ares aproximou-se de Gabrielle tocando seus ombros e lhe envolvendo numa aura de energia – Sinta, sinta o esquecimento, sinta o poder…Pense em tudo que estaria ao seu alcance…quem sabe até…reviver sua preciosa Xena?

-É disso que se trata então? – sussurrou Gabrielle com os olhos fechados sentindo seu corpo se encher de um calor confortante, que sabia emanar de Ares. Ele haviam feito isso antes, há muitos anos. – Eu me tornar como você?

-Se trata das suas escolhas… Do que você escolher fazer. Você não escolheria ser como eu, sei disso. Temos pensamentos diferentes, mas estou te dando a chance de termos o mesmo ponto de partida pra alcançarmos nossos objetivos…nós temos um em comum não temos? Eu não posso fazer isso sozinho, mas o laço que você tem com Xena tornaria tudo possível.

-Eu não posso fazer isso. – disse Gabrielle com dificuldade, não estava mais tão certa do que era o certo ou o errado ali  – Foi a escolha de Xena…

-E ela respeitou as suas escolhas? Você está ferida e com dores e olha só, ela nem está aqui pra te confortar. Gabrielle seja sábia… Mesmo que você mais tarde considere um erro, poderá se livrar desse poder. Ou você prefere o fracasso? Prefere definhar e deixar essa imagem da derrota ao mundo? Deixar ao mundo a imagem da desesperança e da falta de vontade de lutar… É disso que as pessoas precisam Gabrielle? É disso que você precisa?

Ares tirou bruscamente as mãos dos ombros da guerreira e o impacto com o mundo real havia sido tão grande que ela caíra de joelhos exausta. Suas entranhas se retorciam com o vazio que sentia e todo seu corpo tremia, ensopado em suor frio.

-E então? E como perder o chão, não é? É assim que você quer viver? É assim que você quer terminar Gabrielle?

-Me dê…me dê a Ambrosia – falou ofegante

Ares lhe estendeu a taça da qual ela colheu uma porção e levou a boca.Imediatamente sentiu seu corpo enchendo-se de força e vigor. Sentia uma energia passando por cada parte de seu corpo e uma sensação de que nada mais poderia lhe atingir. Sentiu-se acima de tudo, viva, tão viva como não se sentia havia meses.

Um clarão se deu e no recinto apareceu uma deusa loira de aura rosada.

-Nããoooo – gritou Afrodite com a voz choramingada – Por que Ares???!Por que!?!! Você destruiu minha amiga!!!

-Olá irmã.  Diga olá a nossa mais nova colega – disse encostando as mãos nos braços de Gabrielle, mas ao contrário da receptividade de antes, recebera um tapa na mão que lhe fez até mesmo perde o equilíbrio.

-Tire suas patas de cima de mim – disse com uma expressão fria de desprezo – Olá Afrodite. Eu não estou destruída, esse é apenas o meu começo.

Seus olhos estavam escurecidos, sua aparência fragilizada a abatida de antes havia sumido para dar lugar a uma mulher cheia de vigor como era antes. Seu rosto, no entanto não tinha mais os traços angelicais e inocentes que ostentou um dia, estavam duro como uma rocha e seu olhar era tão gelado que podia atravessar até mesmo uma  estátua.

-Se me dão licença, tenho assuntos divinos para tratar. Uma deusa precisa de fiéis e de um templo.  –disse desaparecendo com um sorriso de canto.

-O que você fez Ares?! Por que isso!?Tem noção da dimensão do erro que cometeu? – perguntou Afrodite com uma séria expressão de dor em seu rosto.

-Chega de lamentos Afrodite, eu apenas dei a ela uma chance de seguir com sua vida sem frustrar meus planos.Você sabe o que significa isso, não?

-Sim, que na qualidade de imortal o elo que unia a alma dela e de Xena se perdeu! Você destruiu o karma delas!

-Errado, eu estou apenas formando o meu karma. Se eu não pude ter Xena nessa vida por causa DELA, não posso permitir que nas próximas vidas ela me impeça novamente.

-Monstro egoísta, é isso que você é. Me sinto envergonhada de ser sua Irmã!

-Bom, talvez você tenha que arranjar outra Irmã então – disse apontando cinicamente para o lugar onde Gabrielle estivera segundos antes. – Se bem que… É do meu conhecimento que seus sentimentos pela barda nunca foram exatamente fraternos.

-Você não sabe o que diz Ares – Afrodite balançou a cabeça – você sequer sabe da dimensão do que fez!

-O que? O que de tão errado fiz? Ela queria poder para ajudar aquela ralé dos mortais. Deve estar feliz agora fazendo as centenas de boas ações do dia. Deixe-me em paz, não é como se eu não tivesse trazido nenhum bem.

-Você está enganado. Gabrielle estava com o coração preenchido de mágoa, ódio e ressentimento. Sua divindade representará o que ela transmite, os elementos que ela carrega em si. Você não criou uma deusa benevolente,  Ares, você criou um monstro.

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Há algumas léguas de distância dali uma nova Gabrielle estava rodeada de pessoas. Ela não vestia mais seus trajes coloridos e nem sorria.Seus olhos tinham um contorno negro de maquiagem impecável, sobre os ombros uma echarpe negra  e sob ela uma saia e um corpete da mesma cor.Não olhava para as pessoas com amor e piedade característicos de sua personalidade, mas com frieza e indiferença. Alguns trabalhadores trabalhavam duramente quebrando e arrastando pedras e se algum sequer parasse para descansar, era recompensado com um raio de fagulhas que voava em sua direção.

-Eu estou aqui para salvar todos vocês. Permaneçam do meu lado, sejam meus súditos, façam-me oferendas e vocês terão minha bênção e meus favores como nenhum outro deus lhes deu antes. Levantem-se contra mim e vocês implorarão pela suas vidas miseráveis.

-Eu conheço você! – gritou um homem – Você é a poetisa que lutou junto de Xena contra os deuses Olímpicos! Foi por isso que todos foram mortos, para você tomar o poder para si?!

-A poetisa que lutou com Xena, morreu com ela. – respondeu Gabrielle friamente. – Você está questionando meu poder, mortal?

-Eu não servirei a qualquer deusa!A única deusa que mereceu minha devoção não existe mais. Salve Athena! – gritou o homem para em seguida ser atingido por uma fagulha luminosa e cair ao chão inconsciente.

-Eis uma demonstração da minha piedade. – gritou Gabrielle levantando os olhos para as demais pessoas assustadas – Ele merecia morrer, lhe dei mais uma chance de provar sua fidelidade.Posso garantir que não pensará duas vezes. Contudo não serei mais tão piedosa. Quem não estiver comigo, estará contra mim e eu conheço métodos excelentes de tratar meus inimigos. TRABALHEM! – gritou virando para os homens que haviam parado a construção do templo para olharem pasmos aquela demonstração de crueldade.- Existe alguém que não esteja de acordo?

Ouviu-se um murmúrio de pessoas assustadas, mas  ninguém ousava levantar a voz para se manifestar.Um sorriso satisfeito surgiu nos lábios de Gabrielle.

-Nós não estamos de acordo! – gritaram duas vozes em uníssono. Dois homens robustos empunhavam espadas e corriam na direção de Gabrielle – Não vamos  concordar com mais opressão, chega de adorar falsos deuses!

A loira sacou a espada e com extrema facilidade se esquivou das investidas. Com alguns golpes os desarmou fazendo-os voar longe.

-É preciso mais do que dois reles camponeses para me parar… – virou-se se lado mandando uma bola de fogo na direção de uma carroça cheia de produtos agrícolas de uma colheita recém feita, a carroça explodiu ateando fogo em duas casas humildes que se encontravam perto – É isso o que acontece com quem me desafia.

Um dos homens levantou-se desesperado com pânico nos olhos.

-Desgraçada!!!!! – gritou a plenos pulmões correndo para seu lado novamente. Teve seu fim com a ponta da espada lhe atravessando.

Dois clarões se fizeram perto dali e Ares marchou furioso até o lado de Gabrielle, Afrodite lhe acompanhava com um olhar desolado.

-Você ficou maluca?!?! – berrou Ares com sua voz grave. – Não foi pra isso que eu te fiz a proposta!!!

-Ah, Ares, o deus da guerra preocupado com a escória mortal. Estou tocada. É tão viciante o poder e as dimensões que ele poder atingir.

-Nós tínhamos um plano, íamos trazer Xena de volta e você ia continuar sua vida tediosa arrumando as coisas, e agora isso!? Eu sou o deus da guerra aqui, EU semeio da discórdia,  eu sou o monstro sem piedade, ESSA NÃO É SUA FUNÇÃO!

-Tente me deter.

Ares puxou a espada e foi bloqueado por Gabrielle. As duas espadas se bateram faiscando e um olhou nos olhos dos outros com fúria. Afrodite apenas observava tudo com uma careta de desespero e desgosto, ao seu redor trabalhadores, aldeões e camponeses olhavam assustados o embate de dois deuses.

-Você não sabe controlar seus poderes ainda. Vai ficar fraca e então será derrotada. – sussurrou Ares entre os dentes.

-E quem vai me derrotar, você? Estou pagando pra ver. Eu sei lutar Ares, Xena te derrotou diversas vezes como mortal, se ela era capaz, eu também sou!

-Parem com isso, por favor! – choramingou Afrodite. – Gabrielle, você não é assim.Você não é isso…Você está ferida e cheia de mágoa, mas você ainda tem amor.

-Cale a boca, você não passa de uma deusa fútil que nunca serviu pra levantar uma espada. O amor nunca foi o caminho pra nada. Foi o amor por esses malditos mortais que fez Xena se matar, foi o amor de Eli por essa causa, que fez você matá-lo, Ares,  foi o caminho do amor que deu origem a tantos problemas na minha vida, agora chega!O amor não vale nada!Não existe!

Aproveitando o breve momento de distração, Ares a subjugou derrubando-a ao chão e pressionando a espada em seu pescoço.

-Muito bem loirinha irritante, já chega disso! Só existe lugar pra um deus cruel aqui e esse sou eu! Você derrubou o templo de Athena para mandar esses mortais construírem um seu e eu não vou permitir que você fique destruindo o patrimônio dos Olimpicos. Não foi pra isso que te dei poder, então  acalme seus ânimos e vá cuidar da sua vida!

-E o que vai me fazer, me matar? Eu sou igual a você Ares. Poucas coisas podem me deter, e você não é uma delas –disse com uma gargalhada irônica.

-Então lutaremos até quando for necessário. – rosnou Ares,

-Ares, vamos embora. Isso não vai levar a nada, vocês apenas irão destruir toda essa aldeia – gritou Afrodite irritada.

Bufando Ares retirou a espada do pescoço de Gabrielle e levantou-se caminhando pra perto de Afrodite e desaparecendo em seguida.

Gabrielle levantou em seguida e olhou para os aldeões, cheia de raiva.

-Estão olhando o que??! Continuem trabalhando!!!!

Perto dali uma figura espectral se materializava olhando tristemente para a cena de caos. Duas casas eram consumidas pelo fogo, trabalhadores batiam pedras até exaustão, mulheres e crianças choravam e um homem jazia numa poça se sangue no chão.

-Gabrielle…o que você se tornou?

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No palácio Olímpico Ares caminhava de um lado para o outro com uma expressão de imensa frustração enquanto Afrodite permanecia sentada numa espécie de divã lhe olhando com irritação.

-Como eu poderia imaginar que a mosca morta da Gabrielle ia virar ISSO?

-Você sempre a subestimou, Ares.Você não tem idéia do que um coração partido pode fazer com uma pessoa. Se ela continuar com isso, vai causar um desequilíbrio cósmico de dimensões catastróficas. Você ainda vive porque a guerra de alguma forma é necessária, mas tudo que a humanidade menos precisa é outra deidade espalhando terror.

-Ótimo, então vamos detê-la! O que mesmo é preciso para isso? A Adaga de Hélios? A costela de Cronos? O que mais?! Lutar com ela até que enfraqueça? Eu posso providenciar isso.

-Não, não, não!!!Você não entende!Eu não posso permitir que você mate Gabrielle.

-Irmãzinha, nós temos apenas dois caminhos aqui.

-Então vamos ter que achar um terceiro. A deusa Gabrielle foi dominada pelo ódio, pela mágoa, pela dor, mas a Gabrielle que conhecemos ainda vive nela.Vive oprimida por sentimentos ruins, mas ainda está lá em algum lugar pedindo socorro! E ela é a minha única amiga.

-Com suas metáforas malucas a impressão que dá é de que ela foi possuída por algum demônio! – exaltou-se Ares que começava a gesticular demasiadamente.

-Não, isso é muito pior. É um demônio pessoal contra o qual nós de fora não podemos lutar. É assim que os humanos funcionam, eles tem o lado negro e o lado bom dentro de si, Gabrielle sempre deixou o lado bom imperar, mas num momento em que ela estava fragilizada emocionalmente e cheia de rancor você foi lá fazer faíscas e isso foi o estopim. Todo o lado negro dela explodiu, e adivinha, com intensidade dobrada pela divindade!

-Você está fundindo meus miolos! Por que vocês mulheres têm que complicar tanto as coisas? Não existe solução prática no seu vocabulário? Se não podemos matá-la, nem podemos lutar contra esse “demônio interior”- um certo deboche se fez presente em sua voz – o que resta afinal?

-Conseguir ajuda de alguém que possa chegar até Gabrielle.

Ares bateu com a mão na própria testa e esfregou o rosto com as mãos.

-Por que você não faz isso?

-Você viu o jeito que ela me tratou.

-Bom, eu é que ela não vai tratar melhor, e qualquer mortal que chegue perto dela, vai ter um fim um pouco…dramático, pra ser não ser drástico na descrição. Mas existe uma única mortal que poderia tentar fazer isso e ter uma chance de sucesso.

-Você não está se referindo a…?

-Xena, sim, ela.

-Ares, XENA É UMA MORTAL MORTA!Como você espera fazer isso?!

-Xena morta? Não seria a primeira vez, ela tem um histórico. Eu conheço o fogo que corre naquela alma. – disse Ares adquirindo um ar nostálgico.

-Não, não conhece. – respondeu a deusa fazendo uma careta de ceticismo.

-Acompanhe meu raciocínio, se Xena revivesse, ela seria a pessoa com mais chances de chegar a Gabrielle com algum sucesso.

-SE Xena revivesse, mas até onde entendi, foi escolha dela permanecer morta.

-Há poucas coisas que não são reversíveis nessa vida.Como eu disse, ela tem um histórico, como foi da primeira vez?

-Não tinha morrido de verdade

-Hum, e depois?

-Ambrosia.

-E o que mais?

-Eli.

-Morto. Droga…Nunca imaginei que fosse precisar dele – disse frustrado.

-Tem mais?

-Não, aparentemente as duas últimas vezes foram congelamento  e inconsciência – ambas por sua culpa – …então não contam.

-Certo, o que você acha da Ambrosia?

-Funcionaria se tivéssemos um corpo… Mas fazer um pote de cinzas comer ambrosias está além dos meus poderes – respondeu Afrodite cinicamente. – E tem outro detalhe que você está esquecendo Ares. Ela tem que querer reviver.

-Duvido que não queira quando perceber que sua preciosa Gabrielle está destruindo a humanidade e acabando com o próprio karma.

-Isso me lembra que SE ela reviver, ela vai te esfolar por tentar acabar com o karma de Gabrielle transformando-a em deusa.

Ares lhe dirigiu um olhar irônico. – Você não está ajudando… Você não está ajudando, irmãzinha. E continuou andando de um lado para o outro pensativo.

-Mas não atrapalhei também, tudo isso foi culpa sua e eu não tenho obrigação de consertar as burradas que você faz!

-Por mim eu consertaria do jeito fácil, mas você é quem não quer danos a “preciosa Gabrielle”, eu não sei afinal o que todos vêem nessa garota irritante!Ohhh pobre Gabby!Gabby minha melhor amiga, Gabby minha alma gêmea!Gabby minha cara metade – debochou Ares com uma voz fina.

-Ora Ares, cale-se, até você mesmo reconheceu o potencial dela…

-Eu não reconheci nada – lhe cortou – Você não entende as estratégias que eu traço…

-Você é que não entende nada..

Em segundos as vozes se alteraram criando um bate-boca no qual era impossível sequer identificar algum mero resquício de bom-senso ou raciocínio claro.Assim era a impetuosidade divina, por um momento ambos esqueceram que tinham um problema maior a resolver e seus egos passaram a guerrear. Uma figura espectral se materializa agora no ambiente presente, passando despercebida devido ao mini-tumulto causado pela voz trovejante de Ares e os choramingos irritantes de Afrodite.

-Já Chegaaaaa! – uma terceira voz se fez no ambiente.

Ambos pararam pasmos, ainda sem olhar para o lado e fitaram um ao outro.

-Eu conheço essa voz. – afirmou Ares.

-Eu também. – concordou Afrodite – Eu…eu…será que são as fúrias? Estarei ficando louca? – levou as mãos a cabeça em sinal de desespero.

-Elas morreram – respondeu Ares rispidamente e em seguida virou-se para o lado.

-O engraçadinho que criou  a frase “Descanse em Paz”  teve essa opinião porque não tinha morrido ainda! Será possível que nem morta eu tenho mais paz! – ralhava uma figura com seus bem conhecidos 1,80, olhos azuis e cabelos negros.

-Xena!? É você!? – ofegou Afrodite em surpresa.

-Não, é a sacerdotisa Leah, sua maior fã – que Héstia a tenha – zombou Ares.

-Vocês dois não tem jeito, não é? O caos acontecendo lá fora e os dois num embate de egos em pleno Olimpo.  Afrodite, eu vim porque preciso de sua ajuda.

-Bom, e nós precisamos da sua, você não sabe o que…

-Eu sei – lhe interrompeu com pesar. – Eu não entendo o que ocorreu. Ela parecia ter aceitado minha escolha e de repente isso acontece. E você Ares, se eu estivesse viva, chutaria seu traseiro. Que idéia imbecil foi essa?!

-Certamente bem menos imbecil do que se deixar ser morta por um exército de samurais por causa de uma japonesinha ordinária.

-Eu não espero que você entenda.Você nunca entendeu nada sobre o bem supremo.

-Olha, eu posso não entender nada também, mas eu sei que o bem supremo AGORA é você deter Gabrielle, Xena. – interrompeu Afrodite.

-Sim, eu compreendo isso e estou disposta.

-Ótimo, qual o próximo método de ressurreição da sua lista? – perguntou Ares impaciente.

-Um de vocês deve ir à Amphipolis e pegar a urna de cinzas que Gabrielle deixou no mausoléu de minha família. Assim feito, eu precisarei de um corpo emprestado.

-Posso providenciar isso – disse Ares.

-VIVO!

-Ah…

-Com a Urna de cinzas presente, eu entrarei no corpo de alguém e então comerei a Ambrosia.Isso devolverá minha energia vital restabelecendo o aspecto físico.

-Sim, ai teremos outro problema, porque a cobaia que vai te incorporar vai ingerir Ambrosia também e se duvidar, teremos outro deus revoltado.

-Aí está o ponto, eu preciso entrar no corpo de um de vocês dois.Como já são divindades, não acontecerá nada.

-No meu não!!!! –Olha o seu tamanho, sabe Zeus como isso vai funcionar, nanana, Ares, essa sobra pra você, agora os dois me dão licença que vou dar uma passada até Amphipolis pegar essa urna e volto mais tarde – disse desaparecendo numa explosão rosa.

-Não sei se essa idéia me agrada – resmungou Ares.

—-

Há algumas léguas dali Gabrielle estava sentada em um trono provisório enquanto grande numero de trabalhadores erguiam as paredes do novo templo. Perto deles, um escultor trabalhava deliberadamente dando a um imenso bloco de pedra, as formas da nova deusa. Mulheres e crianças traziam cestas de oferendas e ajoelhavam-se diante de seus pés implorando por piedade para que seus lares fossem poupados assim como as vidas de seus entes. Um dos homens que trabalhavam na construção fraquejou e acabou soltando a corda que sustentava uma das pedras do templo, deixando-a cair ao solo com grande estrondo.Gabrielle levantou-se furiosa e o ergueu pelas vestes imprensando-o contra o pedaço já construído da parede com grande força.

-Vocês mortais não servem pra nada?! Me dê um bom motivo pra eu não te castigar seu verme – rosnou com os olhos cheios de raiva.

-Misericórdia, minha deusa. Eu estou trabalhando há horas, sem pausa, sem água e sem comida.

-Ah, então você acha que pode descansar? Eu te darei o merecido descanso – disse formando uma bola de fogo na outra mão.

-Gabrielle!!!!! – uma voz ecoou a alguns metros dali.

O homem foi prontamente solto ao chão e somente por um momento o sentimento expresso por aqueles olhos deixou de ser apenas ódio, podendo-se ver algum brilho cruzar as suas órbitas.

-Xena? – sussurrou primeiramente incerta  – Xena, é você? – falou mais alto – ou são as Fúrias me atormentando.

-Sou eu, Gabrielle. As Fúrias estão mortas, há um longo tempo.

-Por que você está aqui? Você também está morta. – Seus olhos estavam fixos na mulher a sua frente, seu olhar ostentava uma mistura de dúvida e acuamento.

-Porque voltei pra você. Voltei por você. Vamos embora Gabrielle, deixe essas pessoas em paz, nós precisamos conversar – disse estendendo a mão.

-Xena, você está viva? Você realmente voltou? Depois de tanto tempo? – podia ser ouvida a comoção em sua voz e por um momento seus olhos pareciam marejados, mas seu olhar ainda era áspero.

-Sim Gabrielle, eu voltei para continuarmos nossa vida. Vamos fazer isso, vamos embora daqui e deixar essas pessoas continuarem a delas também, sim?

Gabrielle fechou os olhos e baixou a cabeça. Seu corpo estremeceu, o que Xena julgou ser causado pela emoção, ante-vendo o pranto certo que presenciaria. Mas ao contrário do que esperava, a loira levantou a cabeça com os olhos vítreos e frios para gritar com fúria.

-Eu não vou com você!!! Eu estou construindo meu império, eu conquistei o meu poder e você volta agora que eu não preciso mais de você? Você quer tirar tudo de mim, você quer se aproveitar da minha posição, está com inveja porque cheguei  num ponto que você jamais esteve!

-Gabrielle… – chamou com tristeza.

-EU não preciso mais de você!!!!!!VAI EMBORA!!!!!

-Não, eu ficarei do seu lado.

-Por que? Para se aproveitar do que posso oferecer? Para ter meus favores?

-Não. Porque nossas almas estão destinadas a permanecerem juntas e se as coisas têm que ser do seu modo, eu aceitarei.

Um olhar confuso cruzou o semblante da deusa, que não tinha certeza se deveria acreditar ou não.

-Serei sua súdita  e a ti juro minha lealdade sob pena de morte caso eu quebre essa promessa- disse Xena tirando sua espada, ajoelhando e cravando-a na terra diante de Gabrielle em sinal de submissão. – Minha espada sob seu comando, minha deusa.

-Isso está começando a ficar interessante.