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Notas de advertência
A história contém temas de suicídio e sofrimento emocional que podem ser sensíveis para alguns leitores.
01 – Nem a morte separará
por Bidi Naschpitz“Será o mal um imenso e perigoso poço, onde se cai ao primeiro pecado, mergulhando até o fundo? Mas é esta escuridão, este vazio, e não traz nenhum consolo. Igualmente e infinitamente diferentes do mal, nenhum pecado atinge o mal” – Anne Rice.
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Prólogo
Fogo. Para quaisquer cantos que se olhassem, era esse elemento ardente que os preenchia. O chamado “céu” era adornado com chamas, lugar onde haveria de ter nuvens. O cheiro de enxofre, antes tão letal, passava despercebido pelos que já se acostumaram com aquilo. Aqueles pobres diabos, para qual cada minuto era um pesadelo eterno e a existência era uma jaula na qual muitos almejavam as chaves, agonizavam todo o tempo; e tempo, lá não havia. Agonia eterna. Ou Inferno.
‘Para cada pecador, o castigo pelo seu pecado’.
Ela vagava silenciosa pelas areias daquele deserto vermelho. Seus pulsos jorravam um líquido viscoso e vermelho através de um fino corte. Naquele deserto, havia milhares de outras pessoas, mas ninguém via ninguém. Aquela era a punição para os egoístas: aqueles que em vida pensaram apenas em si mesmos e esqueceram-se dos outros, passariam toda a eternidade tendo apenas a si mesmos. Era por isso que ela estava lá. Sozinha.
Naquele mesmo céu, onde bailavam flamas, ela assistia a vida que deixara para trás. Assistia seu passado com a namorada, quando passara no vestibular e fora recebida nos braços da mesma, seu aniversário surpresa de dezoito anos, quando fora morar numa república com as amigas… Mas, se seu passado fosse composto apenas por lembranças boas, ela não estaria onde estava por ter feito o que fez.
Em sua mente, ecoava o choro das amigas. A imagem de quando uma desmaiou. Quando uma parou de comer devido à tristeza. Quando as crianças da creche onde trabalhava choraram baixinho, pela saudade e pela ingenuidade de não entenderem as razões para uma pessoa matar a si mesma. Mas por mais dolorosas que fossem essas lembranças, não eram elas que a consumiam. Acima de tudo, ela a via, sua namorada.
‘Xena…’
Ela via claramente diante de seus olhos quando fora encontrada morta no banheiro da casa da namorada. Esta entrava no pequeno cômodo de azulejos brancos, onde, encostada em um dos cantos, ela sangrava pelos pulsos, pálida, e com os olhos entreabertos. Ela via a cada instante seu corpo ser abraçado pela companheira, que, em soluços desesperados, dizia o quanto a amava, e perguntava à carcaça vazia o por quê.
Era a namorada a razão de ela estar lá, e também era a razão da culpa que ela carregaria até o último de seus dias. Ela, ao se matar, não pensara na outra, por mais que dissesse o contrário. Durante o período em que ela viu a sua vida desmoronar diante dos seus olhos, sua companheira era o seu refúgio, seu porto seguro, o bálsamo de sua vida. Ela se tornara sua única razão de viver.
Esse era o problema. Talvez ela não tivesse conseguido viver apenas com aquele bálsamo, que agora, tanto lhe fazia falta. Ela fraquejou perante os infortúnios da vida e perdeu o maior e único bem que tivera algum dia.
Suas lágrimas já haviam secado. A fome e a sede já a haviam consumido. E mesmo assim, ela permanecia “viva”. A vontade de voltar no tempo, já demais usada, já havia desistido. Não se poderia dizer que ela vivia na tristeza. ‘Cada segundo no inferno é uma eternidade’, lhe disseram uma vez. E agora, ela concordava plenamente. O tempo que passara na Terra desde sua morte fora o suficiente para Xena e os outros aprenderem a conviver com a dor da mesma. E para ela, fora o suficiente para aprender a viver com a dor causada pela sua partida definitiva do plano dos vivos.
– Tedioso – disse uma voz masculina, atrás dela. – Não concorda?
Ela estacou, e virou-se para quem a chamava. Não que a sensação de ver alguém depois de tanto tempo lhe despertasse alguma emoção, isso ela não era mais capaz de sentir. Ela viu, há alguns metros de distância dela, um homem de olhos e cabelos negros, trajando um sobretudo escuro.
– E você não perde tempo sequer se cansando de “viver” assim – o homem sorriu-lhe, com veneno. – Não é mesmo, Gabrielle?
Gabrielle estreitou os olhos. Não era do tipo que perdia tempo com o que não a interessava.
– Quem é você? – ela perguntou.
– Na posição em que estou você deveria me chamar de Deus, mas soaria falso – ele riu. – Apesar de eu ser o ‘seu’ Deus, tendo em vista a ‘sua’ posição de alma pagante no Inferno – ele sorriu com veneno novamente. – Chame-me de Lúcifer.
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Xena desconcentrou-se de seu livro, atraída pelo som da maçaneta aberta com força. Gabrielle havia entrado, batido a porta atrás de si e se escorado contra essa mesma firmemente, como se quisesse se proteger do resto do mundo, fugir de algo ou alguém. Sua respiração estava trêmula, contendo uma menção de choro. Em suas mãos havia um envelope, meio amassado e sujo. Xena notou seus olhos avermelhados, denunciando que havia chorado pelo caminho, e seus cabelos levemente desgrenhados. Estava em frangalhos.
– O que aconteceu? – a morena perguntou, assustada, indo em direção a ela.
Gabrielle fechou os olhos enquanto lágrimas escorriam de seus olhos e soluços de sua garganta. Xena a abraçou, buscando confortá-la. Gabrielle a envolveu com os braços, e disse, com a voz embargada:
– Desculpa meu amor… Desculpa…
Xena alisou os cabelos da jovem, e a olhou sem entender.
– Desculpar… Pelo quê? – ela perguntou, com a voz mansa.
Outro soluço saiu da garganta de Gabrielle, antes que ela pudesse dizer.
– Eu… eu não posso ter filhos… Nunca poderei gerar… – ela desatou a chorar novamente.
Xena a olhou, penalizada. Permaneceu alisando os cabelos de Gabrielle, até que ela se acalmasse.
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Xena estava sentada no sofá da sala, com um pequeno porta-retratos nas mãos. Nele, Gabrielle estava com o rosto pintado de hidrocor pelas crianças da creche que haviam decido preparar-lhe uma festa de aniversário surpresa. Ela ria, enquanto as crianças a prendiam no chão, fazendo cócegas. Xena havia se acostumado a ver Gabrielle feliz daquele modo, fora assim que conhecera a jovem: alegre e bem disposta. Porém, ela nunca poderia afirmar se fora com a descoberta da infertilidade que ela começara a ficar triste, isolada. Ela sabia de apenas alguns problemas da vida dela, como a morte dos pais, as notas que começaram a cair, e, pelo o que ela se lembrava, pela briga de Gabrielle com as amigas.
‘Era só brincadeira!’, ela se lembrava de ter ouvido Amarice aos prantos, no dia da morte de Gabrielle.
Pelo o que ela sabia, Amarice, Ephiny e Tara haviam chamado Gabrielle para uma festa com os alunos da faculdade, e disseram que jamais falariam com ela se ela não fosse. Gabrielle não pôde ir devido a tudo: trabalho extra da creche, deveres extras pela dependência em algumas matérias… e por falta de vontade também, festas não eram mais o que ela precisava.
E, vingando a promessa, elas não falaram com Gabrielle. Elas riam sozinhas, fingindo caras e bocas quando Gabrielle passava, mas riam da situação até na frente dela. Qualquer um em sã consciência veria que era uma brincadeira, mas Gabrielle não. Ela sentiu-se cada vez mais triste pela indiferença das amigas que, no meio de tantos problemas, seriam as únicas que poderiam ajudá-la. Mas depois havia sido tudo diferente. As amigas haviam ido até ela, com um jeito tipicamente infantil de demonstrar carinho e pedir desculpas, mas, pelo o que Tara havia dito, Gabrielle se levantou do lugar de onde estava e disse, com desprezo:
“Ah, então é bom se sentir ignorada, né?”.
E foi embora. Foi a última coisa que elas ouviram de Gabrielle.
Xena alisou com os dedos o vidro do porta-retratos, sorrindo com as lembranças que vinham em sua mente. Foi tirada delas por uma pessoa que havia parado à sua frente.
– …E então? Vamos? – o jovem pôs as mãos nos bolsos. Era mais novo que Xena, e suas feições eram parecidas. Tinha os cabelos castanhos curtos, e os olhos azuis.
Xena ergueu os olhos e sorriu melancolicamente para o caçula.
– Vamos – disse, por fim, pegando a última mala que restava.
O caminho de volta foi particularmente silencioso. Lyceus olhava vez ou outra para a irmã, que parecia com certeza melhor do que seis meses atrás, mas nunca igual à época que antecedeu os acontecimentos. Ele lembrava entristecido como havia sido duro para a mais velha a morte da namorada… As imagens daquele dia sempre o deprimiam. Como havia sido duro ver a alta morena – que sempre havia sido um exemplo de força, determinação e equilíbrio – da forma como estava, entregue ao desespero, à tristeza, condenando-se a viver para sempre presa à memória de Gabrielle.
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Ephiny havia entrado correndo na república com as roupas encharcadas pela chuva forte, os olhos assustados, nervosos, desesperados. Lyceus e Joxer, que estavam sentados nos sofás, levantaram-se de sobressalto com o estrondo.
– Meu Deus, olha pra você! – Lyceus exclamou, indo em direção à ela. – O que aconteceu com você?
Ephiny abriu a boca para dizer algo, mas sua voz não saía. Tentou falar várias vezes, enquanto seus olhos despejavam mais lágrimas, e ruídos indefinidos saíam de sua garganta.
– Espere, eu já volto – Joxer disse, indo correndo até a cozinha.
– Calma, calma, calma – Lyceus esfregou os braços da jovem, buscando confortá-la.
Joxer voltou apressado, trazendo um copo de água, com Amarice e Tara assustadas atrás dele.
Ephiny bebeu três ou quatro goles, trêmula, tossindo vez ou outra. Todos os olhares estavam centrados nela, apreensivos.
– Agora respira e diz: o que aconteceu? – Tara perguntou, calmamente.
– Me ligaram agora do hospital… – Ephiny disse soluçante. – …A Gabrielle se matou…
Amarice levou as mãos até a boca, prendendo um soluço, enquanto seus olhos marejavam-se e molhavam sua face. Joxer e Lyceus olharam um para o outro, pálidos, sem saber o que fazer.
– Ai… – Tara levou uma das mãos até o cenho, sentindo uma forte agulhada. Fechou os olhos, e desses, jorraram lágrimas. Cambaleou levemente, tentando apoiar-se no sofá, até cair no chão desacordada. Joxer correu para socorrê-la, enquanto Lyceus perguntava desesperado para Ephiny:
– E a Xena? Cadê ela?
– Disseram que ela levou a Gabrielle até o hospital, passou um tempo lá e saiu, que parecia meio estranha… – Ephiny fechou os olhos com força, e um choro baixo saiu de sua garganta. – Eu a quero de volta, Lyceus…
Lyceus a abraçou, buscando consolá-la.
– Calma Ephiny… Agora já foi, só nos resta aceitar… – ele olhou para ela, e ergueu o queixo da jovem para que ela olhasse diretamente para ele. – Você precisa ser forte agora, está bem?
Ephiny fez que sim, como uma criança.
– Joxer! – Lyceus gritou para o rapaz, que havia posto Tara deitada no sofá e agora tentava, junto com Amarice, recuperar os sentidos da jovem. – Cuide das garotas, eu vou procurar a Xena.
Joxer fez que sim. Lyceus pegou as chaves do carro do amigo e foi novamente em direção a Ephiny.
– Eu volto logo, sim? – ele a beijou na testa, enquanto ela balançava a cabeça afirmativamente.
E saiu. Ironicamente, estava andando exatamente como Joxer pedia sempre para não andar: como um louco. Olhou por cada canto de cada rua que via pelo caminho, em busca da irmã. Sabia o quanto ela gostava de Gabrielle, e temia do fundo do peito, que ela fizesse alguma besteira.
Passou no apartamento. A porta estava aberta, chamou o nome da irmã seguidas vezes até contestar que ela não estava lá. Na cozinha… na sala… no quarto… Até chegar ao banheiro. Sentiu um aperto no coração, como se estivessem pisoteando-o. O corpo de Gabrielle não estava mais lá, mas ainda havia marcas do seu sangue do chão. E um ramalhete de flores, meio amassado e murcho na porta do banheiro. Ele baixou os olhos, pesarosamente; tudo haveria de mudar.
Saiu novamente, com a chuva ainda mais forte. Olhou por todos os lados, aflito, mas não havia nenhum sinal da irmã nas ruas escuras. Sobressaltou-se quando, em um banco branco de uma praça, encontrou uma figura de cabelos negros como a noite que ele rapidamente reconheceu. A franja negra lhe cobria os olhos, encharcada pela chuva que caía impiedosamente contra si. Lyceus estacionou o carro de qualquer jeito e correu até lá. Xena estava sentada no banco, parecendo procurar um ponto perdido no céu, e não notou Lyceus se aproximando.
– Xena… – Lyceus disse, penalizado. – Vamos pra casa, você vai se resfriar…
– Me deixa Lyceus – Xena disse, baixa e friamente, sem olhar para o rosto do rapaz que a chamava.
– Por fav…
– Eu disse: “me deixa Lyceus”! – Xena vociferou para o caçula. Lyceus ficou em silêncio enquanto, dos olhos raivosos da irmã, ele podia facilmente ver uma vermelhidão de lágrimas, e algumas que ainda brotavam dos olhos de Xena, mesmo com a chuva. A mulher desviou o olhar de Lyceus.
Lyceus suspirou. Poderia até dizer que entendia a frustração de Xena, mas soaria falso, já que ele mesmo admitia não fazer idéia da dimensão da dor que ela deveria estar sentindo. Ele viu o corpo da irmã tremer com alguns breves soluços contidos, apesar de não poder ouvir devido aos grossos pingos de chuva que abafavam o som. Pôs a mão no ombro da irmã, buscando dar-lhe apoio. Ficaram ali por muito tempo, sem nenhum dos dois falar nada, mas com Lyceus apoiando e Xena aceitando.
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– Ainda é aqui? – Xena perguntou para Lyceus, desconcentrando-o de seus pensamentos. A mulher indicava com a cabeça uma grande casa, sem tirar os olhos da direção.
– Se não criou pernas e saiu andando… – Lyceus brincou. Vangloriou-se interiormente quando conseguiu arrancar um riso dela.
Ambos tiraram as malas do porta-malas e entraram na casa. Estava tudo escuro e silencioso. Lyceus estranhou.
– Mas que diabos…?
As luzes se acenderam, estouros de serpentina foram ouvidos em meio a apitos e gritos animados. Xena piscou seguidas vezes sem entender, enquanto Lyceus era coberto por Joxer, Ephiny, Amarice, Tara e Hercules.
– Seja bem-vi…! – era dito em uníssono, até notarem que agarraram a pessoa errada.
– Ah, é só o Lyceus… – disse Hercules.
Os gritos, os estouros e os apitos se repetiram, enquanto eles trocavam de alvo. Xena riu enquanto eles a soterravam, cantando algo indescritível, que o máximo que ela entendia era algo como ‘seja bem-vinda, Xena, ‘daqui você não vai escapar’ e ‘beba até cair’.
Horas depois, os vestígios da festa ainda eram visíveis. A faixa de ‘seja bem-vinda, Xena!’ pendia na parede. Havia serpentinas de todas as cores sobre os móveis, a pequena caixa de fogos de artifício – que todos impediram que Joxer, depois de sete doses, soltasse pela casa -, a escova de cabelo que Lyceus usara como microfone quando – depois de nove doses – decidira que havia nascido para ser cantor. Fora as várias garrafas e copos vazios, espalhados pela casa.
Todos dormiram na sala. Ephiny, Tara e Amarice desabaram sobre o sofá maior, enquanto Joxer, Hercules e Lyceus acabaram por dormir no chão. Xena também ficou na sala, sentada no sofá pequeno. Estava particularmente feliz, e não era apenas pela bebida.
‘Vira! Vira! Vira!’ ainda ecoava em sua cabeça. Ela ria mesmo adormecida, lembrando-se do dia. Fazia muito tempo que não era feliz, como se tivesse passado um longo tempo num coma profundo e somente agora tivesse despertado. Morar na república foi a melhor coisa que já a haviam obrigado a fazer, e ela agradecia a si mesma por não ter recusado.
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Gabrielle olhou mais atentamente para o estranho homem que surgira. Belo, de fato, mas o que a interessava foi a frase sediciosa. Por fim, sorriu ironicamente.
– Lúcifer, sim? – ela disse. – O anjo decadente.
– Vejo que leu a Bíblia – ele disse, ignorando o apelido dado pela jovem. – É de se impressionar, levando em conta a razão de você estar aqui – ele provocou. – Não está escrito na Bíblia de Deus que aqueles que vendem suas almas para mim são esquecidos por Ele?
– Não vendi minha alma para você – ela disse, calmamente.
– Me deu a chance de comprá-la – ele riu, depois estreitou os olhos, maliciosamente. – E isso dá no mesmo.
– Então somos condenados ao fazer coisas querendo algo melhor?
– Ah, isso depende – ele sorriu ardilosamente. – Matar uma pessoa para se defender não é um crime para os humanos, certo? Mas é um crime. Um crime contra o outro, e isso nós consideramos. Mas uma pessoa que enlouquece, perde o controle sobre si e se mata não pode ser condenado. O problema maior é saber o que está fazendo, senão… – ele sorriu mais uma vez.
– Saber o que está sendo feito, hein? – ela sorriu, com sarcasmo. – Você sabia o que estava fazendo, Lúcifer?
Para a surpresa de Gabrielle, Lúcifer permaneceu sorrindo. Pôs as mãos nos bolsos do sobretudo e andou na direção de Gabrielle.
– Sabe… – a voz dele mudou para uma voz feminina, e quando Gabrielle olhou, ele se tornara uma mulher de cabelos castanhos. – Você é insolente, audaciosa… E a admiro por isso.
– Devo agradecer ao elogio? – ela perguntou, olhando-o atentamente.
– Agradeça por ser como é e ter chamado a minha valiosa atenção – ele sorriu, passando para a forma de um menino.
– Hmpf – ela bufou impaciente. – E de que me vale a sua ‘valiosa atenção’?
– Mais do que a sua mente humana poderia imaginar – o menino disse, formalmente. – Gula, Avareza, Ira, Inveja, Luxúria, Vaidade e Preguiça. Em sete pecados existem milhares formas de se vir para o Inferno, e em cada forma, existem cerca de um milhão de almas… Somando-se, existe cerca do triplo de pessoas que vivem na Terra pagando seus pecados no Inferno. Entre todas elas… Eu vim em pessoa ver você.
– Sempre pensei haver coisas mais importantes para se fazer no Inferno.
– E eu as estou fazendo! – um homem de meia-idade surgiu e exclamou, animado. – Olhe ao seu redor, minha cara. Cada milímetro que você tocar me pertence. Cada grão de areia em que você pisa é meu – ele estreitou os olhos, ameaçadoramente. – A sua alma é minha.
Gabrielle permaneceu calada, enquanto ele explicava.
– Deus não é onipotente, onisciente, onipresente em seus domínios? – ele sorriu mais uma vez. – Nos meus domínios eu também sou. Posso estar aqui e estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
– E por que você está aqui?
O homem cruzou as mãos nas costas e caminhou alguns passos, com um semblante pensativo. Depois lançou para a jovem um sorriso provocante.
– Gabrielle… – ele iniciou. – Quem diz que Deus e o Diabo são inimigos têm uma ponta de razão, mas não é bem o correto. O mal já está na Terra, é como se fosse o caminho para o Inferno, e os humanos seguem apenas se quiserem. Esse é apenas um dos pontos em que eu discordo Dele veemente. Segundo ele, se não é o caminho dele, é o caminho errado. Abortar uma criança não é o caminho de Deus, então é o mal? Não querer emprestar o seu carro caríssimo para um morador de rua é egoísmo, sendo assim é o mal?
– Aonde você quer chegar? – Gabrielle perguntou impaciente.
– Sabe o que é o suicídio, Gabrielle? – ela se sobressaltou quando ele se transformou nela. – É você usar o seu livre-arbítrio contra Deus. É agir contra a vontade Dele, por isso é considerado um pecado – ela viu sua própria imagem sorrir maliciosamente. – Mas o livre-arbítrio é mais poderoso do que você pensa, Gabrielle.
Gabrielle permaneceu em silêncio.
– Os humanos crêem que são influenciados o tempo todo por anjos e demônios, que eles acreditam que são mais poderosos que eles. Não sabem, mas são eles que influenciam a gente; ninguém mais tem o poder de decidir quantos mais irão para o Paraíso e quantos mais irão para o Inferno. É aí que entra o livre-arbítrio. O livre-arbítrio é como uma chave, que transita seu usuário entre as três esferas: Terra, Inferno e Paraíso. Mas para uma porta se abrir do lado de cá, alguém precisa fazê-lo lado de lá.
– Ou seja…?
– Sabe que lá todos que a conheceram desejam a sua volta. Principalmente… – Gabrielle gelou, quando Xena surgiu à sua frente. – Ela.
Os olhos de Gabrielle queimaram pela fúria, e isso apenas divertiu Lúcifer.
– É dela a razão de você estar aqui, não é? E é por ela que você quer voltar. Resumindo… – ele aproximou o rosto do dela. Ela desviou o olhar daquela face que a lembrava tantas coisas que queria esquecer. – A sua namoradinha tem a chave pro lado de lá.
Gabrielle estreitou os olhos. Estava começando a entender.
– E por que você me faria voltar? Se fosse tão simples assim o mundo estaria repleto de mortos vagando sobre a Terra – perguntou.
– Aí que está! – ele riu. – Não acha que todo demônio que a família quisesse de volta poderia voltar, não é? Caridade não faz o meu feitio, de pobres diabos que merecem caridade o Inferno está cheio. O seu caso me interessa.
– E por quê? – Gabrielle segurava a ansiedade na voz. Queria se mostrar o mais impassível que pudesse, apesar de a esperança de voltar ter lhe interessado.
Lúcifer, ainda na forma e voz de Xena, rondou Gabrielle como uma fera selvagem, esperando para atacar. Enfim, parou e disse:
– Vou lhe fazer uma proposta, Gabrielle. Permito-te uma hora na Terra, para rever o seus amigos, sua família, etc etc etc.
Gabrielle permaneceu em silêncio. Sorria interiormente, sentindo seu peito arder novamente como se seu coração ainda batesse. Poderia sair gritando, se não quisesse deixar transparecer nenhuma emoção.
– Mas… – ele continuou. – Nada é de graça. É a lei da compensação. Você terá que fazer algo por mim…
Gabrielle sorriu melancolicamente. Claro, era muito óbvio que ela não receberia jamais algo de graça agora que no Inferno. Não poderia jamais dizer que não havia ficado decepcionada, mas não deixaria transparecer sua ingenuidade humana.
– E o que seria? – ela suspirou friamente.
Lúcifer sorriu maliciosamente para ela, e sibilou:
– A alma da sua namorada.
Gabrielle não disse nada, como se estivesse tentando processar em sua mente o que ele havia dito, ou simplesmente confirmar; não poderia ter sido aquilo mesmo que ela ouviu.
– O quê? – ela sibilou incrédula.
– Foi como eu disse, minha cara. Nunca disse que seria barato.
– E o que o faz pensar que eu faria isso?! – ela vociferou entre os dentes.
– O fato de você saber perfeitamente que nunca mais verá a sua namorada. Boa, gentil, provavelmente já tem uma vaga no Paraíso. E desse, você nunca verá a cor…
Gabrielle baixou a cabeça, apertando os punhos com força. Lúcifer permaneceu andando em volta dela, e encostou-se em seu ouvido, sussurrando:
– Pense. Toda a eternidade ao lado do seu afeto. Juntas, pagando a mesma pena no Inferno…
– E o que eu ganho com isso? – ela perguntou, enojada com a proposta repugnante que lhe fora feita.
– Poder – ele sussurrou novamente. – Você é apenas mais uma alma no Inferno. Com mais poder, você se tornará um demônio. Poderá transitar entre quaisquer esferas do Inferno, e ir até a Terra influenciar os mortais. E não mais passar o resto da eternidade caminhando nessa areia fétida.
Gabrielle permaneceu em silêncio, com os olhos estreitos de fúria e os punhos cerrados.
– …Ou você acha que ela não aceitará? – ele lhe perguntou, com veneno.
Gabrielle não disse nada novamente. Aceitaria se fosse ela no lugar de Xena, mas que orgulho deveria ter disso? Então ela deveria se aproveitar do amor que semeara enquanto viva para fazer a morena sofrer junto a ela?
– Temos um acordo? – perguntou ele, mais uma vez com olhos e cabelos negros como no princípio. Estendeu a mão para Gabrielle.
Gabrielle hesitou. Em um segundo, ela viu as imagens de toda a pequena eternidade pela qual já havia passado no Inferno. Xena e seu egoísmo. Era irônico, de fato. Seu errôneo egocentrismo a fizera cair onde estava, e agora ela precisava deste mesmo para sair. A semelhança obviamente era Xena, que pagaria por esse mesmo pela segunda vez. Pagaria mais uma vez pelos erros dela.
Gabrielle ergueu os olhos para Lúcifer que sorria para ela, como se já soubesse a sua resposta. Por fim, ela apertou a mão dele como quem entrega sua cabeça para o carrasco. Sentiu uma leve vertigem, e por um momento, até certo temor do sorriso ardiloso do Príncipe das Trevas. O acordo com certeza não tinha apenas a palavra dela como valia.
– Não irá se arrepender… – ele disse, com a malícia brilhando em seus olhos.
xXxXxXxXxXx
Xena entrou no quarto. Gabrielle estava encolhida contra uma parede, abraçando os joelhos e procurando um ponto perdido no chão. Não era a primeira vez que Xena a via assim, como uma criança amedrontada numa noite de trovões. Por mais problemas que soubesse que ela tinha, desconhecia se havia uma verdadeira e única razão para aquilo, ou se eram apenas todos os demais somados. Sorriu para a jovem que parecia nem ter notado quando ela entrou, e caminhou em sua direção.
Ajoelhou-se diante dela, para que ficasse na mesma altura. Ao notar alguém à sua frente, Gabrielle ergueu seu par de olhos verdes para a namorada. Xena sentiu um aperto no coração. Chocava-a de forma cruel como aqueles olhos – que já tanto haviam brilhado – preencheram-se de uma névoa escura, tal como o céu em noites de tempestades.
– Oi – ela disse, com voz calma, sorrindo. – Hoje é o nosso aniversário. Seis anos. Quer sair para comemorar?
Gabrielle baixou os olhos mais uma vez. Passou alguns segundos calada, olhando para o chão. Xena nada disse.
– Por que só agora você decidiu notar que eu existo? – ela perguntou, com a voz baixa e sombria.
Xena espreitou os olhos, com ar de dúvida. Ela não tinha toda a certeza do mundo de que ouviria um ‘sim’, mas não havia sequer lhe passado pela cabeça aquela resposta.
– O… O quê? – perguntou, sem entender.
– Eu passo dias e noites sozinha nesse maldito apartamento, é raro eu te ver em casa. Por que eu deveria comemorar? – explicou com a voz dura.
Xena não acreditava que ela estava realmente falando aquilo.
– A culpa não é minha porque você se sente sozinha. Eu fui totalmente contrária que você largasse a faculdade, eu passei na creche e dizem que há quase três semanas você não surge lá. Eu dedico todo o meu tempo disponível única e exclusivamente a você, que história é essa de ‘só notar agora que você existe’?
– Única e exclusivamente? – ela perguntou incrédula. – Você dorme cedo, acorda cedo, sai cedo, chega tarde, acha que o resto do seu tempo é o bastante para qualquer pessoa? – A voz dela estava alterada.
– Eu estudo Gabrielle! – disse, elevando o tom de sua voz até o nível do dela e levantando-se. – E trabalho! Eu não posso passar o tempo todo com você, já é bem grandinha para entender isso!
– Então não venha me dizer que eu recebo a sua atenção! – ela gritou também se levantando. – Você não me liga, está em casa hoje por milagre, que tipo de atenção é essa?
– Gabrielle… – riu, era impossível que ela estivesse falando aquilo. – Devem ter cerca de mil chamadas perdidas no seu celular. Minhas, das suas amigas, das coordenadoras da creche, dos professores da faculdade, da sua família! Não pense que eu não sinto o cheiro de cinzas no banheiro quando eu chego em casa, eu sei que você também queima as suas cartas.
– Ah! – ela riu, com um ar incrédulo. – Então suponho que você esteja dizendo que eu fico sozinha por escolha ‘minha’? Acha que é vontade minha que as pessoas me desprezem?
– Quem te despreza, Gabrielle? – ela perguntou impaciente. – Ninguém! Você caiu num buraco sozinha e quer que alguém te ajude a sair, mas mesmo assim não aceita ajuda! Que mania é essa de achar que o mundo está contra você! É você que de repente se virou contra tudo e todos!
– Então… – ela perguntou, enquanto de seus olhos jorravam duas grossas gotas prateadas. – Você de fato acha que eu gosto dessa situação…? – sua voz tornou-se embargada. – Nem você vai me ajudar…?
Xena baixou os olhos. Conseguira deixá-la irritada. Por mais que a menção de ir até lá e abraçá-la estivesse quase em prática, não poderia. Já não era mais tão fácil conviver com Gabrielle. Virou-se em direção à porta.
– Se você não quer que ninguém te ajude… – ela disse, com a voz mansa. – Então você precisa sair desse buraco sozinha – e saiu.
Gabrielle caiu de joelhos no assoalho. Olhou de olhos arregalados para Xena, que já estava na entrada do apartamento, abrindo a maçaneta e saindo.
Xena desceu as escadas. Esfregou o rosto e suspirou, buscando recuperar a calma. Chegou à rua, caminhando sem rumo. As pessoas andavam para lá e para cá, indiferentes aos seus problemas. Ela tentava, tentava e tentava de todas as formas entender o quê levara a jovem tão alegre e bem disposta àquele estado deplorável, que beirava a loucura. Era impossível que ela tivesse tantos problemas assim. E se tinha, por que não a deixava ajudá-la?
Essa dúvida latejou na mente confusa de Xena por cerca de uma hora. Sentada num banco branco de praça, ela olhou para o céu azul. Nuvens negras o circundavam, provavelmente viria uma forte tempestade à noite. Já estava quase anoitecendo quando ela tomou nota de que deveria voltar para casa. Encostou a cabeça no banco e viu a imagem de uma barraca de flores, de cabeça para baixo. Uma senhora de longos cabelos grisalhos arrumava um ramalhete lindo, de delicadas flores brancas. Ela sorriu.
Odiava brigar com Gabrielle. Por isso, não adiantava ficar brava que isso só pioraria as coisas. Foi mais ou menos isso o que ela pensou enquanto subia as escadas e buscava pelas chaves, perdidas no bolso da calça. Entrando em casa, chamou pelo nome da jovem, cuja reação ela sorria sozinha em imaginar. Ela sorriria, perguntaria se o convite ainda estava de pé e elas sairiam juntas. Não obteve resposta. Chamou mais uma vez. Várias vezes. Buscou pelos cômodos da casa e nada. Era impossível que ela tivesse saído, as chaves dela estavam sobre a mesa e a porta estava trancada. Começou a ficar preocupada. Chamou mais e mais vezes, buscou em cada canto da casa, até ver um feixe de luz saindo por debaixo da porta do banheiro. Aliviou-se. Provavelmente ela estava no banho. Chamou por ela, para confirmar. Mais uma vez, não obteve resposta. Bateu na porta. Nada. Começou a ficar realmente preocupada. Bateu, bateu e bateu. Seguidas vezes. Tentou abrir a maçaneta e nada. A porta estava trancada por dentro. Forçou a porta. Gabrielle nada dizia. Tentou manter a calma. Jogou-se contra a porta. Mais uma vez. E outra. Até o trinco ceder e a porta escancarar-se com um estrondo.
Gemidos roucos saíram de sua garganta. O ramalhete despencou de suas mãos, avermelhadas pelo tanto que batera. Seus olhos arregalaram-se, enquanto ela permanecia sem reação.
– Gabr… – foi o máximo que conseguira dizer ao ver que a jovem, que deveria receber as flores, sorrir e perguntar sobre o convite para sair, estava encostada em um canto do banheiro de azulejos brancos, que aos poucos se tingiam de escarlate. O transe que a dominara passou, enquanto ela corria até Gabrielle, abraçava-a e sacudia a jovem pálida.
– Gabrielle… – ela simples e inutilmente chamava desesperada.
Passou alguns segundos implorando para que ela respondesse. Mas nada.
– Gabrielle, por favor… – sorria meio incrédula de que aquilo estivesse realmente acontecendo. – Você não pode morrer…
Gabrielle permanecia muda. Seus olhos verdes entreabertos mantinham um rastro de lágrimas.
– Meu amor… – soluçou. Não era um pesadelo, ou uma piada de humor negro de Gabrielle. Ela chorou, enquanto abraçava-a. Um grito ecoou entre aquelas paredes brancas, que testemunharam tudo. ‘Por quê?’, perguntou. Quem mais tinha o direito de saber do que ela? ‘Eu te amo…’, murmurou baixinho. Mas a loira já não mais podia ouvi-la.
xXxXxXxXxXx
Xena recordava-se dos acontecimentos de meses antes, distraída. Estava sentada numa cadeira, na creche onde Gabrielle costumava trabalhar e vez ou outra a levava junto. Estava totalmente alheia ao alvoroço das crianças naquele mundo de paredes amarelas. Riam, enquanto desenhavam distraídas, comparando seus desenhos com os dos outros colegas. Ela gostava de ir lá, e as crianças também. Quando não muito ocupada, ela podia pensar. Não que conversasse com alguém, mas o suicídio de Gabrielle ainda era um enigma de em sua mente. Não podia ser por falta de amor. Ela a amava, certo? Nem por falta de amigos, como ela própria lembrava-se de ter dito a ela… Então…?
– Tia Xena – uma voz doce e infantil preencheu seus ouvidos. Baixou os olhos, como se tivesse voltado para a Terra. Um par de brilhantes olhos azuis a recebeu, com um sorriso. Era Eve, uma menina de cerca de cinco anos que ela e Gabrielle adoravam. Era alegre, jovial, feliz. Quando a esterilidade de Gabrielle fora descoberta, ela havia se tornado a principal – e praticamente única – opção para adoção, já que entre elas havia se formado um pacto mútuo de que Xena não geraria filhos em silencioso respeito ao sonho despedaçado de Gabrielle. Ela sorriu para a menina.
– Sim, Eve? Diga.
A menina mordeu os lábios de empolgação. Ergueu uma folha de papel na direção de Xena.
Os traços não eram perfeitos. No desenho, um anjo de cabelos loiros sorria e acenava. Suas asas eram disformes e usava uma túnica azul. Sorriu novamente. Era Gabrielle.
– Que bonito Eve – ela disse com um sorriso gentil para a menina. – Foi você mesma quem fez?
– Fui! – exclamou com orgulho. Seus olhos brilharam com o elogio. – Eu sonhei com a tia Gabrielle essa noite! Ela era o anjo mais bonito de todos os anjos de ‘toooodo’ o céu! – a menina escancarou os braços para dar uma idéia de proporção.
Xena alisou a cabeça da menina que riu feliz com o carinho.
– Quem sabe ela pousa na sua janela essa noite? Junto com todos os anjos do céu?
Mais uma vez, os olhos da menina cintilaram como estrelas, com a possibilidade de uma visita de anjos. De repente, seu sorriso desapareceu.
– Mas aí as meninas vão acordar, e vão ver os meus anjos e querer pegar pra elas! – a menina reclamou. Xena soltou uma risada.
– E para quê você quer tantos anjos, menina?
– Para virar ‘anja’! – ela disse, surpresa com a pergunta que parecia tão óbvia. – Se cada anjo me der uma pena de sua asa, eu posso montar as minhas próprias asas!
Xena sorriu novamente. A ingenuidade da menina tocava-a no fundo de sua alma. Ela a observava enquanto fazia gestos largos, caras e bocas para expressar seus pensamentos de forma clara.
xXxXxXxXxXx
– E quando eu poderei voltar? – Gabrielle perguntou, livrando-se da vertigem que a invadira.
– Agora – Lúcifer disse. Gabrielle arqueou uma sobrancelha. – O que eu mencionei sobre ‘ser um demônio, poder ir e vir em quaisquer planos’ é válido. Você pode ir para a Terra a partir desse exato momento, sem ser vista. Mas o estado material de uma hora começará apenas no instante em que você morreu. O que deve acontecer daqui a cerca de… – ele fingiu contar, depois sorriu. – Vinte minutos.
Passaram alguns segundos de silêncio. Gabrielle girou os olhos, impaciente.
– …Então? – perguntou.
Lúcifer riu. Ergueu o dedo indicador na direção dela.
– Vá – Gabrielle sentiu seu corpo ser tragado para trás, enquanto a gargalhada de Lúcifer ecoava em seus ouvidos. Era como uma queda, e ela mal podia abrir os olhos.
Finalmente parou. Sentiu que iria tombar quando seus pés bruscamente tocaram o chão. Estava na Terra.
Caminhou em passos lentos. Estava num lugar demasiadamente conhecido e extremamente diferente. Tudo havia mudado, e ao mesmo tempo, tudo estava igual. As cercas em torno das pequenas árvores da calçada, as crianças que corriam felizes com balões em suas mãos, os executivos que fugiam de seus escritórios para tomarem café…
Ela fechou os olhos. Sentia certo calor em sua nuca. Em sua mente, pôde ouvir uma voz, uma prece. Era uma voz feminina, delicada.
‘…E cuide da tia Gabrielle, que agora é um anjo seu. Não sei se o Senhor deixa, mas quando eu virar anjo, eu quero que ela seja minha mãe. Amém.’
Ela sorriu. Era a voz de Eve, orando por ela. Numa fração de segundo, Gabrielle pôde transportar-se para onde a menina estava, enquanto esta subia na cama iluminada por um feixe pálido de luz que vinha da Lua. Deitou-se e se cobriu até os ombros. Olhou perdida e esperançosa para a janela à sua frente. Suspirou, fechou os olhos e acabou por adormecer.
Gabrielle sentou-se ao lado dela. Podia sentir a face macia da menina, mas sabia que esta não poderia senti-la ou vê-la. Suspirou.
Em sua mente, projetaram-se imagens das coisas em que Eve pensara com veemência antes de adormecer. Ela viu a si mesma, voando, célere como um pássaro no céu azul. Atrás de si, vinham vários outros anjos. Sorriu melancolicamente. Nunca pertenceria àquele mundo.
A menina sorriu adormecida. Sonhava com o grupo de anjos que a levaria para o céu, como um deles, de onde ela veria as pessoas na rua como pequenas formigas; de onde pularia para os braços de Gabrielle, de quem sentia tanta saudade.
Gabrielle baixou os olhos para a luz gélida da Lua que se desenhava no chão. Fazia certo tempo que não se lembrava daquele dia.
xXxXxXxXxXx
Gabrielle caiu de joelhos no assoalho. Olhou de olhos arregalados para Xena, que já estava na entrada do apartamento, girando a maçaneta.
– Volte… – murmurou para si mesma.
Xena atravessou a porta, fechando-a atrás de si.
– Eu suplico… – ela implorou, com voz embargada ainda como um sussurro. – …Por favor, não vá embora…
A porta foi fechada. Gabrielle passou alguns instantes parada, olhando a porta fechada sem saber o que fazer. Abraçou o próprio corpo e chorou, copiosamente. Seus soluços a enfraqueciam, seu corpo dobrava-se à medida que seu pranto mais rasgava sua alma. Passou bastante tempo assim. Até que seu choro consumisse todas as suas forças. Ela deitou-se de costas, com um olhar vago para o teto. Tudo estava acabado. As amigas a desprezavam. Ninguém a entendia. E ‘ela’, justo ela, a calmaria da tempestade em que sua vida havia se transformado a havia rejeitado também. A única razão que ainda possuía para permanecer naquele mundo podre era ela, e agora, ela não a amava mais.
Passou bastante tempo assim. Como uma estátua, de olhar frio e vago. A mente nublou-se totalmente por mágoas enquanto as sombras pouco a pouco engoliam seu corpo. Já bastava. Havia se rendido naquela batalha que lutava sozinha. Caminhou em direção à porta. Na mesa da sala, ela abriu um pequeno estojo com o material que usava na faculdade. Retirou o canivete e foi até o banheiro. Trancou a porta atrás de si, escorando-se momentaneamente contra essa mesma. Sentou-se em um dos cantos. Soluçou furiosamente mais uma vez, enquanto abria o canivete. Olhou por alguns segundos para a lâmina que subia. Ela merecia vergonha, e não piedade.
Soltou um gemido breve, quando fez o primeiro corte. Quem ela pensava que era para sentir dor? Fez o segundo. Pronto. Tudo havia acabado. Na sua mente, formou-se a imagem do olhar frio de Xena pouco antes dela sair. Grossas lágrimas caíram de seus olhos. A luz branca do banheiro rapidamente foi se apagando. Logo, ela não via mais nada. Já não respirava. E pronto.
xXxXxXxXxXx
Gabrielle apertou com força um dos pulsos com a outra mão. Fúria. Era aquilo que a invadia quando pensava no dia de sua morte, não tristeza. Quantas e quantas vezes ela vira refletido naquele céu fantasioso do Inferno o que realmente Xena estava pensando naquele dia? Ah, ela a amava? A maior culpa era dela. Ela a fizera sentir-se indesejada. Ela que dizia todos os dias que amava, para depois roubar-lhe tudo. Ela que destruíra tudo que antes lhe era sólido para depois se arrepender.
Fincou as unhas na colcha azulada de Eve.
‘Ela era a responsável pela sua morte.’
Gabrielle estacou. Sentiu um forte formigamento em cada canto do seu corpo. Inspirou profunda e desesperadamente, enquanto o ar retornava para seus pulmões. Não havia notado, mas seu tempo já havia começado.
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Xena caminhava a passos largos pelas ruas enegrecidas pela noite. Havia se esquecido do tempo enquanto cuidava das crianças. Consultou rapidamente um relógio, e constatou que realmente estava mais tarde do que ela imaginava. Maldição. A coordenadora tinha mesmo que chamá-la para confirmar sobre um passeio das crianças ao zoológico, sendo que ela iria somente como responsável? Nunca conseguiria pegar o supermercado aberto para comprar as coisas que Tara lhe pedira pela manhã.
Passou apressada por uma distinta praça de bancos brancos que conhecia demasiadamente. Não olhou para as árvores que uivavam em reação ao vento gélido da noite. Não olhou para os pássaros que se agitaram quando seus passos firmes ecoaram na pavimentação.
Não olhou para a forma sentada que fitava a negritude do céu.
– Não vai chegar a tempo – disse-lhe uma voz feminina, com uma dose de escárnio.
Ela estacou automaticamente. Suas veias pulsaram energicamente, sua respiração parou e um nó subiu por sua garganta. Seus olhos atônitos fitavam o nada, enquanto tentava afirmar em sua cabeça que não podia estar tão louca quanto imaginava. Virou-se, de sobressalto, para a praça atrás de si. De pé, com seus olhos verdes fitando seu rosto pálido, estava ela.
Ela. Que reinava e dominava seus sonhos e pesadelos.
Ela. Que estaria sempre em sua mente, mesmo quando não quisesse.
Ela. Que jamais voltaria.
Gabrielle olhava-a friamente, indiferente à incredulidade da mulher. Na verdade, parecia satisfazê-la. Como era patética. Então o tal ‘túnel escuro’ em que a vida dela havia entrado era aquele pavor pela sua presença? Patético. Hipócrita. Ela não a queria de volta. Um sorriso sarcástico delineou seus lábios.
– Assustada, Xena? – perguntou, com a voz prazerosa. Era cômico de uma forma estranha como tudo o que ela acreditava apesar de saber ser mentira era realmente mentira.
Xena piscou, aproximando-se da jovem. Era como se tivesse ido ao espaço e voltasse, ainda trôpega pelo impacto dos pés com a Terra.
– Ga… – um gemido rouco escapou de sua garganta. Não podia ser. Ela estava no banheiro, com os pulsos jorrando sangue, dentro do caixão de madeira escura… Não podia ser ela.
– Não vai chegar à tempo – repetiu. – Não chegou da outra vez. Também não chegará desta.
Ela ignorou a sensação adormecida de coração batendo descompassado. As medonhas sensações que fantasiava ter ao reencontrar-se com aquele par de olhos azuis que lhe fora ruína e salvação eram nada, diante da atual.
– Hmpf, nasceu brindada com o dom do atraso – disse, com tom sarcástico. – É uma irresponsável que nunca soube lidar com aquilo que possuía – os olhos dela estreitaram-se, e sua voz saiu em tom de acusação. – Sempre foi sua a culpa de eu morrer…
Ela sabia que era o mais esperto de se fazer. Não se jogaria nos braços de quem lhe causara tanto sofrimento por benefício próprio. Não se rebaixaria a esse ponto, de vender o seu orgulho por nada. Xena tinha coração fraco, se ela realmente se sentisse culpada não seria difícil pedir-lhe a alma.
– É realmente isso que você acha? – surpreendeu-se ao vê-la alguns metros diante de si, com o olhar calmo e sério que sempre tinha. – Acha mesmo que a culpa é minha?
Gabrielle não hesitou. Se deixasse transparecer seu nervosismo, poria seu orgulho em jogo e isso era algo terminantemente fora de cogitação.
– Não pense que eu sou um anjo, Xena – disse com malícia. Seus olhos brilharam num vermelho profundo durante alguns instantes, mas Xena sequer piscou. – Você deveria ter vergonha. Foi a única coisa que eu realmente amei e a última a me deixar.
– Eu tive vergonha – ela replicou tranquilamente. – Muita. Sempre me culpei pela sua morte. Sempre, claro, como força de expressão – riu apaticamente. – Minha primeira reação foi a de culpa. Mas não custou a passar. Eu tinha a consciência de ter amado você durante cada segundo.
Ergueu a cabeça. Ela não a comoveria.
– Você levou tudo o que havia de valioso na minha vida. Você me condenou a viver sozinha, afinal, você sabia que eu amaria você para sempre. É esse o seu modo de vida? Obrigar as pessoas a amar você para depois forçá-las a esquecer? Você me confunde. Fala de falso amor, egoísmo, traição e vergonha quando a culpa maior é sua, e você sabe disso. Eu fiquei ao seu lado durante cada milésimo após a descoberta da sua infertilidade, e até sugeri que adotássemos uma criança. Eu nunca propus que eu engravidasse para que isso não te atingisse. Eu fiquei ao seu lado quando as meninas lhe pediram desculpas pela brincadeira, e você as rejeitava, ferindo-se por isso. Eu estava com você, estudando dia e noite para que suas notas melhorassem, mas você não se esforçou. Eu apoiei você quando seus pais morreram. Ajudei, estive lá, apoiei – ela apertou os olhos e disse em tom baixo. – E você ainda me acusa de não amar você?
Gabrielle baixou a cabeça mordendo os lábios. Ela não poderia ver seus olhos marejando-se à medida que falava. Sabia que era verdade, sempre soube que era verdade. Por mais que quisesse negar, era mesmo responsável por sua escolha.
– Não era você que não me amava o suficiente, Gabrielle? – ela perguntou em tom calmo.
Sorriu para o chão. As lágrimas já haviam secado. Olhou com um sorriso melancólico no seu rosto de pálpebras baixas para Xena, que permanecia impassível.
– O que você quer? Desculpas? – perguntou com sarcasmo.
Passaram-se mais alguns segundos de silêncio até que a voz baixa de Xena rompesse a quietude do lugar com um “Não”.
Gabrielle ouviu os passos da morena aproximando-se dela. Seu coração parou ao sentir os braços dela envolvendo seu corpo, e o coração batendo contra o seu. Ela havia abraçado-a, e não dissera nada. A mente de Gabrielle latejou uma ordem de ‘saia daí’ e ‘não mais uma vez’, mas o corpo não obedeceu. Lágrimas tornaram a umedecer seu rosto, criando duas finas linhas que percorriam seu rosto.
– Eu só quero que você saiba disso – a voz baixa dela soou em seus ouvidos como um sussurro. – O maior medo que eu tinha era que você morresse sem saber o quanto eu me importava com você. Você mesma disse, eu fui a última a abandonar você, mas você errou. Eu serei a última – ela apertou o abraço. – Foi difícil aprender a conviver com a sua ausência, mas eu estou tentando. Já não imploro mais que você volte… Eu só quero que você esteja bem… Onde você estiver…
Um soluço escapou de sua garganta. Não estaria bem jamais se não lhe levasse a alma, mas…
Não fugiu do abraço de Xena. Era sim a coisa que ela mais queria, mais até do que se vingar sem motivo. Ela a amava, e sabia disso. Jamais se mataria se não pensasse que ela já não mais permitiria que a amasse.
– Você jura… – começou, com a voz baixa e embargada. – Que só quer que eu esteja bem?
Ela sorriu, apesar da loira não estar vendo.
– O tempo todo. E sempre. Eu poderia morrer para ver você sorrindo.
A convicção com que Xena afirmara aquilo deu-lhe um nó no peito. Poderia pedir-lhe a alma. Poderiam ficar juntas no Inferno para sempre.
Não. Ela fora o ser sórdido que abandonara a vida por um motivo banal. Fora ela quem escolhera desistir da única coisa que um dia lhe valera a pena.
E sua amada não pagaria por isso.
– Poderia… – afastou-se lentamente do abraço dela e sorriu. – Mas não o fará. Por mim, eu imploro que não o faça.
Ela nada disse sobre o pedido da moça.
– Não o farei. Contanto que me prometa que estará bem.
Mordeu os lábios, com um sorriso. Era mais uma piada de humor negro que o destino lhe pregava.
– Isso eu não posso… – disse com a voz falhando.
Xena sorriu. Tocou seu rosto com gentileza.
– Faça o que puder.
Retribuiu o sorriso, e aproximou seu rosto da morena da mesma forma que a mesma o fazia. Pronto. Lá estava a vida que tanto almejava em sua morte, que era nos braços dela. Não importava mais a solidão, uma estava com a outra. Não importava mais os medos e fraquezas, as almas estavam reunidas. Não importava mais o mundo que as duas estavam juntas.
Quando tudo parou.
A loira estranhou o silêncio à sua volta. As aves já não mais se mexiam, o vento já não mais uivava e sequer as grades do balanço emitiam som. Silêncio. Ela sobressaltou-se quando a Xena diante de si parou, com os olhos vagos. Imóvel como uma estátua.
– Você é muito esperta – disse-lhe uma voz atrás de si, firme e dura.
Virou-se. Era Lúcifer, e ele não estava sorrindo. Seu olhar sério faiscava em seu rosto, enquanto ela olhava de Xena para Lúcifer e vice-versa.
– O que você fez… O que você fez com ela?! – perguntou, exasperada.
– Nada, sua estúpida. O tempo parou, somente isso – respondeu com rispidez. Ela notou a falta de sarcasmo em sua voz, e isso por alguns instantes a assustou. – Não se faça de espertinha comigo, garota. Acha que o trato foi apenas uma chance que promovi para o casal se encontrar? Você deu a sua palavra de trazer a alma da garota. E não pense que para mim você pode dizer algo e voltar atrás.
Gabrielle sentiu seu corpo arrepiar-se de medo, mas misteriosamente o medo logo passou. Ela havia reencontrado aquela que tanto amava. Havia descoberto que ela realmente a amava. Já não tinha mais medo de nada.
– Você não pode tocar nela – a audácia de Gabrielle fez os olhos de Lúcifer saltarem com o ultraje, queimando em fúria. – Eu sou a única que pode ajudá-lo a ter a alma dela, e eu não o farei. Ela não descerá ao submundo ao qual você faz parte, e se sujar com a podridão daquele lugar.
– …O quê…? – um sorriso doentio surgiu no rosto de Lúcifer, igualando-se ao seu semblante e voz baixa e ameaçadora. – Como você ousa…
– Eu faço parte daquele mundo nojento e sórdido. O sangue azedo e asqueroso característico de lá já ensopou minhas mãos e roupas, eu não tenho como fugir. Por isso, contente-se com somente um brinquedinho, que ela você não terá – as palavras saíram da boca de Gabrielle com uma fluência que jamais pararia para admirar-se. Não tinha mais medo. De nada. Nem de ninguém.
– Como você se atreve, menina…– a voz de Lúcifer saiu grave e monstruosa, Gabrielle deu um passo para trás. – Comigo não se brinca e agora você vai descobrir por que!
Gabrielle sentiu uma forte vertigem, e o ar novamente parando de circular em seus pulmões. Logo, sentiu sua pele voltar a queimar. Seus pulsos voltarem a jorrar sangue. Não precisava abrir os olhos para saber que estava no Inferno, e muito menos para perceber que estava num lugar muito pior do que o anterior. Mesmo assim, sentia-se aliviada. Sorriu, imaginando o sorriso sincero de Xena ao pôr flores em seu túmulo, ao dizer “bom dia” para os amigos, ao brincar com as crianças… Sua memória refrescava-lhe a mente, e ela já não receava mais sofrer.
Num instante, parou de sentir calor. Medo. Fome. Dor. Sentiu como se uma delicada brisa viesse-lhe beijar o corpo. Uma paz desigual que jamais havia experimentado. Sentiu-se leve como nunca.
Abriu os olhos lentamente, como se estivesse dormindo o tempo todo. Arregalou-se. Não era o Inferno. Era um lugar adornado por nuvens azuis e brancas, com lindos palácios de arte gótica, risadas doces soando em seus ouvidos e uma música tranquila que a acalmava.
– Vejo que acordou – disse uma voz branda e doce que ela assustou-se ao reconhecer.
Virou-se para de cara com uma mulher mais velha de cabelos compridos e loiros. Um sorriso delicado nos lábios. Duas asas grandes encolhidas em suas costas.
– Mamãe… – sibilou incrédula. A mulher continuou sorrindo.
– Você é uma pessoa tão boa, Gabrielle… – respondeu com um olhar sereno sobre a filha. – Ao mesmo tempo em que me entristece saber que você precisou passar por coisas tão difíceis para compreender isso, me alegra. Seu espírito é forte como o de muitos não é.
– Eu… – Gabrielle olhou para si própria. Havia apenas duas pequenas cicatrizes em seus pulsos. Estava usando um vestido creme preso com uma corda dourada. Tinha em suas costas um par de asas brancas como ela jamais imaginaria ter algum dia. – …Não entendo, eu…
A mãe apontou-lhe o dedo indicador indicando a se calar.
– Existem várias portas para o Paraíso. Várias, mas a maioria poucas encontra. Você encontrou a maior de todas elas, e que pouquíssimos conseguem ver – a mulher sorriu mais uma vez, dizendo com a voz rasteira. – Sacrifício; a opção da tormenta pelo bálsamo do semelhante.
Gabrielle olhou para as pequenas cicatrizes novamente. Um sorriso abriu-se em seu rosto, como há muito não fazia. Xena estava bem então. Ela ainda estava na Terra, e com a alma magnífica que somente a mesma possuía e ambas compartilhavam. Agora ela via isso.
– Você é um anjo tão puro quanto todos aqui – a mãe disse docilmente. – Abra as suas asas, Gabrielle. Você é livre agora.
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Epílogo
– Ande rápido, elas logo vão chegar! – Xena gritou da cozinha para alguém no segundo andar. Passos apressados correram até metade da escada e voltaram:
– Estou indo! – gritou uma delicadamente fina e aguda voz infantil. – Estou quase pronta!
Xena balançou a cabeça negativamente com um sorriso nos lábios. Era estranho para ela entender os instintos de algumas mulheres, independentemente da idade delas. Gabrielle, por exemplo, apesar do pouco tempo que passava se arrumando sempre saía deslumbrantemente linda. E mesmo assim odiava tirar fotos e sempre achava que não havia perdido tempo suficiente em determinado detalhe. Apesar de seu crescimento não ter sido diretamente acompanhado por Gabrielle, Eve estava ficando igualzinha a ela. Em termos. Ela adorava se arrumar. Quando achou numa mala grande algumas coisas de Gabrielle que Xena planejava dar para Ephiny ou as outras, teve um acesso de felicidade instantânea tão grande que ela não teve coragem de desfazer-se dos apetrechos. Eram coisas simples como alguns perfumes, maquiagem e a coisa que Eve mais gostou: as jóias. Como Gabrielle não gostava de andar parecendo uma “árvore de Natal”, como ela mesma dizia, seus pertences eram simples e lindos ao mesmo tempo. Xena ria sozinha, lembrando-se de quando Eve a obrigara a ficar na sala como platéia quando ela vinha exibir sua arrumação. A roupa de Gabrielle embolava em seus pés e muitas vezes ela tropeçou. Os adornos no cabelo foram a parte mais fácil de mostrar.
– Eve… – chamou novamente a menina que ela ouvia andar de um cômodo ao outro no andar de cima.
– Já estou pronta, um minuto! – ela gritou, correndo para o banheiro.
Girou os olhos, sorrindo. Fechou a pequena lancheira rosa que envolvia o lanche da menina e deixou a pequena caixa sobre a mesa da cozinha.
Eve acostumou-se rápido com a casa. No primeiro dia, já conhecia cada detalhe de cada cômodo. Adorara a decoração de seu quarto e da quantidade de bonecas que nele havia. A solidão também não fora problema, ela ia à creche praticamente todos os dias, e quando Xena não podia levá-la, simplesmente atravessava a rua e pedia que Hercules ou qualquer um a levasse, já que a nova casa de Xena era de frente para a república.
Era um bem maior na vida da morena. Qualquer detalhe em sua vida passava batido quando ela caminhava até seu quarto, chorando, dizendo que havia tido um pesadelo. Não havia problema que pudesse impedi-la de acalmá-la em noites de raios. Não havia nada que a fizesse mais feliz do que o simples ato da menina de contar sobre o seu dia na escola.
– E então? Como eu estou? – ouviu a pequena lhe dizer da porta da cozinha. Ela abaixou os olhos para a menina.
Parecia uma boneca. A pele branca e os cabelos castanhos num contraste deslumbrante. O uniforme azul da escola impecável, uma linda fivela de Gabrielle que ela adorava ao lado da boina, posta jeitosamente sobre os cabelos. Entre outras coisas mais, como algumas pulseiras com pequenas contas. Eram poucas as coisas que a escola permitia, mas ela não parecia se importar.
– Linda – disse, sorrindo serenamente para Eve, cujo rosto iluminou-se com o elogio. Em seguida fingiu seriedade. – E extremamente atrasada.
Eve pôs uma mão na nuca, sorrindo atrapalhada. Xena indicou com a cabeça o relógio pregado sobre a porta da cozinha.
– Que horas são? – perguntou-a.
– Hn… – ela apertou os olhos para o relógio, como se tentando decifrá-lo. Depois se virou brusca e animadamente para Xena. – Seis e vinte!
– Exato – consentiu. Ela deu um pulo pelo objetivo conquistado. – Isso significa que elas devem estar chegando…
A campainha tocou.
– Agora – concluiu.
– Minha mochila! – a menina correu até a mesa da sala, pegou a mochila e preparou-se para sair.
– Eve… – Xena chamou novamente. Da porta, a criança olhou-a interrogativamente. A morena mostrou-lhe a caixa rosa.
– Meu lanche! – sobressaltou-se ainda mais. Ela correu até a cozinha, abriu a mochila sobre a mesa e pôs a pequena caixa dentro.
– Vá com cuidado – lhe disse a mulher quando ela pôs a mochila sobre as costas.
– Eu irei! – ela sorriu, angelicalmente. Num pulo, alcançou o seu pescoço, envolvendo-a com seus bracinhos. Deu-lhe um beijo doce, afundando seus lábios em sua bochecha. Retornou ao chão e sorriu-lhe.
– Tchau, mamã… – ela parou, com um olhar assustado. Seu rosto corou, e abaixou-o, envergonhada. Soltou um muxoxo parecido com um ‘Desculpa’, e ela respondeu-a serenamente com um ‘Tudo bem’.
A menina puxou o braço de Xena, para que lhe acompanhasse até a porta. Lá, um grupo de meninas de sua classe e uma menina pouco mais velha a aguardavam. Eve acenou largamente para Xena até que desaparecesse no fim da rua. Xena sorriu para o lugar onde a menina havia desaparecido.
– Ela gosta muito de você – ouviu uma voz serena dizer atrás de si. Ela sorriu sem se virar.
– De você também – respondeu com a voz branda. – É como se não percebesse que você não está aqui. Gabrielle.
Uma risada divertida ecoou pela sala, e num feixe rápido de luz ela já estava lá. Xena virou-se devagar, encostando-se no beiral da porta. Sorriu para o feixe que rapidamente tomava a forma do corpo de Gabrielle. Estava linda. Seus olhos brilhavam como antes o fizeram, sua túnica dava-lhe o aspecto de uma princesa. Seus pés estavam a menos de vinte centímetros do chão.
– E você? – ela perguntou, voando em sua direção e pousando diante dela, olhando fixa e serenamente para os olhos de Xena. – Percebe que eu não estou aqui?
– Não – lhe sorriu. – Você disfarça muito mal. Sei que não sai daqui nunca – brincou.
– Hn… Talvez… – ela disse sarcástica. – É bom saber que é indiferente se eu me mostro ou não para você.
– Então não foi um sonho? – guardou as mãos no bolso da calça, mantendo o sorriso brando para Gabrielle. Ela balançou a cabeça, negativamente. – É, eu sabia disso.
– Você é onisciente por acaso? – brincou a loira, fingindo um semblante duvidoso. – Sabe que eu estou aqui sem me ver, sabe o que é sonho e o que é real… O que mais sabe?
– Sei que você é a pessoa mais impressionante que eu já conheci – disse com a voz rasteira, sem perder o sorriso. – E que eu espero que chegue logo a hora da gente se encontrar. De novo.
Ela sorriu, erguendo uma das mãos para acariciar-lhe a face. Já não havia mais cortes visíveis sobre a pele branca.
– Ainda falta muita coisa por aqui. Não acha impressionante como algo tão pequeno e delicado quanto a Eve pode depender tanto de você? Ela vai crescer e ter em você a imagem de algo que sempre usará como modelo. Ensinará para seus filhos os mesmos princípios que você ensinará para ela. Eu quero acompanhar cada passo dela. Quero ver vocês duas estabilizando uma família feliz. Quero ver você tornar-se uma profissional, com grande destaque em sua empresa. A jornada de vocês pela Terra será tão maravilhosa que, quando vocês chegarem ao Paraíso, verão que não é tudo isso que dizem – terminou a frase, seu corpo subindo alguns metros acima do chão.
– Então… – ela disse, olhando-a de baixo. – Isso é um ‘hasta la vista’? – brincou.
Ela sorriu, descendo um pouco e curvando seu rosto próximo ao dela. Beijou docilmente seus lábios, tomando como uma dívida não-cumprida do encontro anterior. Afastou-se poucos centímetros dos lábios de Xena, sorrindo, e dizendo quase num murmúrio:
– Até a eternidade, Xena.
Em seguida uma fenda de luz abriu no teto da sala. Ela lançou-lhe um último sorriso por cima do ombro e voou, atravessando essa luz que logo desapareceu.
Ela sorriu, olhando para o teto. Sabia que aquele era um adeus que duraria o resto de sua vida. Mas… Quem precisa do resto da vida quando se tem o infinito em mãos?
Fim