1 – Faz de conta
por DietrichO entroncado homem de olhos estranhos abriu a porta da gaiola de madeira e puxou a pequena menina loira. A garota caiu no chão e o homem, puxando-a pelos cabelos, a ergueu abruptamente, ao que a menina soltou um guincho de dor. O homem a empurrou brutalmente, e a menina fez tudo que podia para não tropeçar nos próprios pés e andar na direção que o homem lhe empurrava.
Entraram em uma grande tenda, pelo que a menina percebia, era a maior do acampamento.
– Essa serve, Cortese? – perguntou o homem.
O homem que já estava na tenda deu uma olhada rápida na garota loira e fez um gesto displicente com a mão.
– Qualquer uma serve. Menina, vá ali e cuide dela – apontou para uma mulher deitada numa pele no chão – Malik, me acompanhe, preciso falar com os homens.
Os dois saíram da tenda, e a menina loira demorou alguns segundos para lembrar que lhe tinham dado uma ordem. Lentamente, foi pondo um pé diante do outro, até alcançar a mulher deitada. Seu estômago se revirou.
Uma jovem, de longos cabelos morenos, jazia na pele. Seus lábios estavam partidos e sangrando, seus olhos estavam inchados e o corpo seminu estava coberto de hematomas. As mãos e os pés estavam acorrentados. A menina tinha certeza que estava diante de um cadáver, até as pálpebras inchadas abrirem e olhos azuis aparecerem para fitá-la. A morena ergueu os braços aprisionados, gemendo de dor e apontou.
– Ali tem uma bacia com água e panos – ela falou, a voz quase desaparecida – é melhor simplesmente fazer o que ele disse.
– Eu não sei o que…
– É para cuidar de mim. Limpar meu sangue, minhas feridas. Me deixar pronta para a próxima.
A menina ainda não se mexia. Sua cabeça parecia ter parado de funcionar. Em uma única tarde seu mundo inteiro tinha desaparecido diante de seus olhos. Parecia que numa hora estava correndo atrás de Lila no pátio de casa, as duas gargalhando, na hora seguinte, tinha uma estranha moribunda diante de si, seus pais não existiam, sua irmã não existia.
Deu-se conta que os homens que a tinham feito mal não estavam mais ali. Pensou imediatamente em fugir e isso deve ter aparecido em seus olhos de alguma forma, porque a jovem machucada disse, em voz urgente:
– Não. Eles estão por toda parte. Vão te machucar. Apenas faça o que ele disse, por favor. Pegue a bacia com água.
A menina olhou mais uma vez para a jovem e foi como se o mundo caísse sobre ela de uma só vez. Achou que fosse desmaiar, quando a voz ferida da morena soou novamente:
– Me diz seu nome, menina.
Suas cordas vocais moveram-se sozinhas:
– Gabrielle – disse.
– Gabrielle – repetiu a morena – Gabrielle, por favor, preciso que me ajude. Para que nem eu, nem você, sejamos machucadas, preciso que obedeça Cortese.
O tom suplicante da jovem mulher recolocou os pés da menina na realidade. Ela conseguiu pegar a bacia e os panos, e se ajoelhou ao lado da morena. Com as mãos sacudindo quase incontrolavelmente, molhou o pano e começou a limpar as feridas. Com pouco tempo, a aparência da jovem tinha melhorado um pouco. A água da bacia tornou-se vermelha.
– Obrigada, Gabrielle – a jovem fechou os olhos, uma expressão de alívio se figurava em seu rosto – muito obrigada.
Gabrielle viu o alívio momentâneo da outra transformar-se em terror quando a tenda abriu-se novamente e o homem chamado Cortese entrou, indo diretamente até elas. Gabrielle correu e se encolheu num canto da tenda, mas o homem a ignorou e foi direto até a morena. Pegou-a pelo queixo e virou seu rosto de um lado para o outro, depois olhou o corpo fragilizado de cima a baixo.
– Que me diz, Ariadne? Uns dois dias de descanso e podemos fazer mais?
– Meu nome é Xena – a jovem respondeu, num tom rascante e desafiador que surpreendeu Gabrielle.
– Então não quer esperar – o homem rosnou – faremos agora mesmo.
– Mande a menina embora – o tom de voz da jovem era urgente.
Finalmente Cortese olhou para Gabrielle com mais atenção. Seu sorriso era perverso.
– Ah, não. É bom que ela saiba desde já o custo de me desafiar.
– Seu bastardo! Seu porco imundo, maldito, filho de uma…
A torrente de maldizer da morena foi interrompida por um soco do homem em seu rosto. Xena tossiu sangue e Gabrielle fechou os olhos. Logo antes de cobrir as orelhas, ouviu, em tom desesperado:
– Não olhe, Gabrielle!
Suas pequenas mãos não foram o suficiente para abafar os barulhos terríveis que ali soaram. Cada grito de dor atravessava sua alma como um corte lancinante e Gabrielle sentiu as lágrimas escorrerem por seu rosto. Em um determinado momento tinha se desconectado tanto que cometeu o erro de abrir os olhos por um segundo, apenas para fechá-los novamente em absoluto pavor diante da cena que encontrou. Pôde sentir empaticamente a dor em sua própria pele, e gemeu de agonia pela mulher que era ali violentada.
– Menina, limpe ela de novo – disse o homem, logo antes de sair novamente da tenda.
Obedeça, Gabrielle.
Como um autômato, ela foi novamente até a bacia e começou imediatamente seu trabalho. Percebeu que a jovem chamada Xena ainda estava consciente, e isso só a fez sentir-se pior. Limpou com cuidado e meticulosidade o corpo dilacerado. Viu uma lágrima escorrer do olho da morena.
– Sinto muito, Gabrielle – um pequeno soluço escapou da garganta da mulher acorrentada – eu realmente sinto muito.
– Seu nome é mesmo Xena?
– Sim – disse a morena.
– Da próxima vez, só faz o que ele diz. Para ele não fazer isso com você.
– Eu não…
– É só um faz de conta. Você faz de conta que é Ariadne, só para ele se acalmar. Mas, por dentro, você sabe que é Xena.
Um riso estrangulado saiu da garganta da morena.
– Tem razão, menina. Você tem toda razão. É só um faz de conta – fechou os olhos e perdeu a consciência.
Gabrielle quase entrou em pânico, mas percebeu que a respiração da mulher era constante e forte. Provavelmente desmaiara de dor e choque. Continuou limpando as feridas, fez o melhor que pôde, depois simplesmente ficou parada olhando para a jovem à sua frente. Os pensamentos começaram a correr velozes, Potedia, seus pais, sua irmã. Começou a se sentir tonta. Sua visão escureceu.
Quando acordou, já era o dia seguinte, e estava novamente na gaiola de madeira, que balouçava em cima da carroça que a levava. Sentiu o estômago doer de fome, a boca arder de sede. Sua pele estava queimada. Dentro da gaiola com ela tinha muitas meninas de sua idade, algumas de Potedia, outras que nunca tinha visto. Ninguém conseguia se olhar nos olhos ou tinha mais forças para fazer muita coisa além de abraçar o próprio corpo. Algumas choravam baixinho.
Gabrielle apenas envolveu os próprios joelhos e desejou desmaiar novamente. Seu corpo, piedosamente, obedeceu.
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