2 – A maior força de todas
por DietrichXena entrou, hesitante, na taverna. Estava bastante movimentada, aliás, a cidade toda fervia de pessoas. Meio arrependida, buscou com os olhos a figura da barda. A localizou no balcão, conversando animadamente com um jovem atendente.
Observou por alguns minutos antes de se aproximar, e percebeu pela postura do rapaz que ele estava fazendo de tudo para chamar a atenção da loira. Ouvia com atenção o tagarelar infindável de Gabrielle, inclinado na direção dela, os olhos brilhando e concordando com tudo que ela falava. Xena sorriu e balançou a cabeça, antes de finalmente se aproximar de onde a barda estava.
– Xena! – a loira sorriu – você veio mesmo!
– Eu disse que viria – respondeu a morena.
– Teremos que esperar um pouco para vagar uma mesa. Está bastante cheio hoje.
– Sem problemas – virou-se para o rapaz – me traga algo que você não daria ao seu pior inimigo.
O jovem, meio aborrecido com a intromissão da mulher em seu flerte, foi atrás de uma garrafa e encheu um copo com uma dose de bebida, que a guerreira virou e logo pediu mais.
– Por que está em Atenas? – perguntou Gabrielle.
– Vim entregar um bastardo para a justiça. Telamon, o nome dele.
– Telamon? Não foi ele que matou um monte de mulheres aqui em Atenas?
– Ele mesmo.
– Uau! E você estava atrás dele?
– Na verdade, foi meio por acaso. Deparei com ele na floresta, nem sabia quem era. Tentou roubar meu cavalo. Quando o derrubei, vi que ele trazia vários cartazes com o rosto dele no bolso. Foi quando soube de seus crimes e o trouxe até aqui.
– Você viaja por aí sozinha?
– Sim.
– Eu também.
– É perigoso para uma mulher viajar só.
– Você viaja só.
– Sei me defender.
– E acha que não sei?
Xena ergueu uma sobrancelha. Diferente de quase todos com quem conversava, a barda não parecia se sentir intimidada por ela, tinha uma postura até meio desafiante.
– Não me parece o tipo guerreira, Gabrielle. Não vai beber?
A barda pediu uma bebida, que o mal-humorado rapaz trouxe.
– Obrigada. Está certa, não sou guerreira. Mas aprendi um pouco de autodefesa. E tenho – a barda hesitou, nunca tinha falado disso com ninguém – tenho uma proteção, digamos assim.
– Uma proteção?
– Ah, me diz, você gostou mesmo da história que contei sobre você?
Xena estreitou os olhos, perguntando-se porque a mulher tinha desviado o assunto.
– Gostei sim, embora seja bem imaginativa. A realidade foi bem menos empolgante.
A barda sorriu e concordou.
– Eu sei. Eu enfeito de propósito.
– Então você não acredita que pilotei carruagens de fogo, atirei raios com as mãos e voei pelos ares?
– Claro que não, quantos anos acha que tenho? Mas as pessoas gostam de ouvir coisas assim. Sei que é uma heroína, mas penso que provavelmente faz isso sendo uma mulher de carne e osso mesmo. Embora eu tenha ficado bastante impressionada com a coisa das flechas. Nunca vi ninguém fazendo isso.
– Estou longe de ser uma heroína, Gabrielle. Se realmente conhece histórias sobre mim, sabe minha reputação.
– Foi uma senhora da guerra bastante… ativa.
– É uma forma de dizer. Outra forma é dizer que fui uma assassina.
– Mas me salvou hoje, não foi? Não precisava ter feito isso.
A guerreira deu de ombros e virou mais uma dose da bebida.
– Olha, Xena, nosso canto está livre – foram e sentaram-se à mesa – vamos, pode pedir o que quiser. Aqui tem javali, porco, ensopado de legumes, na verdade, meio que tem tudo. Eles estão caprichando para os festivais.
– Hummm – a guerreira tamborilou os dedos na mesa – o que você vai pedir?
– Javali assado.
– Será que a porção não é suficiente para nós duas?
A barda baixou os olhos, meio encabulada.
– A porção é boa, mas eu como sozinha.
– Nossa. Para onde vai essa comida toda?
– Não sei. Minha irmã costumava falar que eu tinha Caríbdis no estômago.
– Onde está sua família?
Uma leve tristeza baixou nos olhos da loira.
– Estão em casa, em Potedia. Faz anos que não os vejo. Eles não ficaram nada felizes quando saí de casa.
– E quanto àquele rapaz?
A loira suspirou.
– Ainda estou abalada e com dificuldades de entender o que aconteceu. Como eu disse, ele sempre foi muito gentil. Nunca passaria pela minha cabeça que ele ficaria magoado ao ponto de fazer aquilo.
– Ele é um crápula – disse a guerreira – desculpe, Gabrielle, caso ainda tenha algum tipo de sentimento por ele. Mas é o que ele é. Um covarde.
– Não, tudo bem. Para ser bem sincera, nunca tive um sentimento real por ele. Estava com ele por acomodação, porque era o caminho fácil e era o que esperavam de mim. Mas não consegui mais mentir pra mim mesma e busquei meu próprio rumo. Na verdade, fugi de casa na calada da noite, deixei só um recado pra todo mundo e escapei. Sei que parece meio cruel quando falo assim – a loira deu de ombros – mas eu não ia conseguir de outro jeito. Minha família e eu somos muito diferentes.
– Não achei cruel – disse a guerreira – achei incrivelmente corajoso. Então, dois javalis? Vou confiar no seu gosto.
A loira sorriu e pediu os pratos.
– Bem, já faz um tempo. Algum dia criarei coragem de ver como eles estão. E sua família?
A morena ficou séria. Gabrielle recuou um pouco.
– Desculpe, Xena, não quero me intrometer. Sei que falo demais e que pergunto demais. Não precisa dizer nada, se não quiser. Nem precisa me ouvir de verdade, só me deixe encher seu estômago hoje à noite, tá?
A guerreira desfez a cara séria, e sorriu. Sentiu uma ternura inesperada pela jovem loira.
– Está tudo bem. Sei que sou um pouco fechada. Mas gosto de ouvir você falar.
– Bem, menos mal, porque posso até parar de te perguntar coisas, mas parar de falar é mais difícil – a jovem parou alguns segundos e ficou olhando para a guerreira – sabe, você é bem diferente do que eu imaginava.
– E como me imaginava?
– Ah, não sei – a barda ficou um pouco rosada – cada história te retrata de uma forma. Achei que ia ser mais… hum…
– Uma barda sem palavras. Vamos, fala o que pensou.
– Não achei que seria tão bonita – o rubor de Gabrielle aumentou.
Isso fez Xena dar uma breve gargalhada, mas se sentiu lisonjeada.
– Me pintou com cara de górgone?
– Tem histórias que te descrevem bem monstruosa. Outras como uma linda mulher sedutora que devasta o coração dos homens. Outras como uma fera selvagem.
– Bem, nenhuma dessas descrições está realmente errada. Já fui um pouco de tudo isso. E, sabe – Xena pensou duas vezes, mas decidiu falar – você também é muito bonita. Aquele rapaz ali – apontou para o balcão – estava fazendo de tudo para marcar pontos com você.
– Que? – a loira olhou para o atendente, que já estava pendurado em outra moça – não está falando sério, está? Achei que ele estava sendo gentil, como os atendentes costumam ser.
– Acredite em mim, eu entendo dessas coisas. Achei inclusive que você estava correspondendo. Quase dei meia volta para não atrapalhar sua noite. Mas tinha prometido, então…
– Eu não estava correspondendo.
– Por que não? Ele não é feio.
– Ah – Gabrielle mordeu os lábios, pensando se devia mudar de assunto novamente. Não queria que a guerreira interpretasse errado o seu convite de jantar – ele não é meu tipo. Me diz, onde vai passar o resto do festival?
– Na verdade, vou embora logo que me despedir de você. Não vou ficar para os festivais. Não é muito meu estilo.
– Então porque ouviu minha história?
– Estava passando e ouvi meu nome, aí fui verificar.
– Deuses. Veja, Xena, que curioso. Você não gosta de festivais, mas veio em Atenas logo quando eu ia performar e contar uma história sobre você, justo quando sou atacada e você salva minha vida. Isso vai dar uma história e tanto, não acha?
– Com você contando, certamente.
Os pratos chegaram. Era um bom pedaço de javali. Xena perguntou-se se ia dar conta, e ficou surpresa de saber que aquilo cabia na barriga da pequena mulher à sua frente.
– Bom apetite! – disse a entusiasmada jovem antes de começar a atacar seu pedaço de carne.
***
Gabrielle foi a primeira a terminar o javali, e ficou falando enquanto a guerreira lentamente tentava finalizar o extravagante prato.
– …e o pai dele me denunciou porque achou que eu estava sabotando Homero, acredita nisso? Bem, ele não estava errado, eu de fato forjei o meu convite para o concurso, mas quer saber? Como Gastacius falou, a burocracia não pode ficar no caminho das Musas. Bem, o fato é que depois…
Xena ouvia com meia atenção, era um pouco difícil acompanhar a confabulação da barda. Mas, mesmo sem saber exatamente do que ela falava, descobriu-se apreciando o entusiasmo e a forma que ela gesticulava enfaticamente ao se expressar.
-…e eu comi o pão de nozes, deuses, estava tão gostoso, mas o que eu não sabia é que estava cheio de drogas. Devorei inteiro e comecei a ver e ouvir coisas por todo lado. Sinceramente, não sei como não acabei morta. Eles eram realmente violentos, mas eu mostrei pra ela que, na verdade, o marido dela estava sendo drogado, pelo próprio filho! Eles ficaram tão tristes, coitados, tiveram que mandá-lo para a prisão, ele não parou de tentar matar o próprio irmão até estar preso. Se não fosse por Afrodite..
– Espere aí – interrompeu a guerreira – o que Afrodite tem a ver com isso?
– Ah – Gabrielle coçou o queixo – bem… eu… já te contei da vez que acordei os Titãs?
– Não, dessa vez não. Está mudando de assunto de novo. Me diz o que Afrodite tem a ver com essa história do homem que ouvia um deus esquisito.
– Ai, eu e minha boca grande. Droga, vou lhe contar. Tenho medo que me ache doida ou mentirosa. Sabe quando eu falei que tinha proteção? A verdade é que eu – a loira apertou os dedos – eu conheço Afrodite e às vezes converso com ela. Ela, digamos, cuida de mim.
– Está me dizendo que reza para Afrodite e crê que ela te protege?
– Não. Eu realmente conheço ela. Sempre vou no templo dela, e, às vezes, ela aparece pra mim.
Xena ficou em silêncio.
– Acha que estou mentindo, não é? – perguntou Gabrielle, receosa.
Xena olhou bem nos olhos da barda, e percebeu que a mulher estava falando a verdade, ou, no mínimo, acreditava no que dizia. Se não visse de fato a deusa, com certeza alucinava a deusa.
– Não, não acho. É que os deuses não costumam aparecer assim para mortais. É raro.
– Eu sei. Você é a primeira pessoa a quem digo isso. Na verdade, não preciso que acredite em mim, mas já que perguntou… Bem, foi ela que apareceu pra me resgatar quando eu estava bem enrascada com o caso do senhor drogado. Ela me protegeu até o efeito das drogas passarem, aí pude voltar e conversar com a esposa dele.
– Quando viu Afrodite pela primeira vez?
– Logo que saí de Potedia. Sempre gostei dela, sempre foi minha deusa favorita, porque, bem… – a mulher sorriu e deu de ombros – imagino que para uma guerreira como você minha opinião será ingênua, mas sempre acreditei no amor como a maior força de todas. Mais até que a força da guerra e da espada. Então sempre me apeguei a ela. Quando saí de Potedia, uma das primeiras coisas que fiz foi visitar seu templo. Ela apareceu, e me contou que sempre olhara por mim, e que tinha decidido me visitar porque finalmente eu tinha decidido seguir meu coração para além de qualquer coisa. Ela aparece pouco, mas sempre vou em seus templos e sei que ela cuida de mim. Certo, pode me chamar de boba agora.
– Eu não faria isso. Para ser sincera com você, tem um deus que as vezes aparece para mim também.
– Sério?
– Sim. Ares.
– E o que ele quer com você?
– Me convencer a voltar a ser quem eu era.
– Espero que não dê ouvidos a ele.
– Não dou. Mas, às vezes, ele mexe comigo – Xena disse – não quero soar condescendente, Gabrielle. Acho bela a visão que tem do amor, e, no fundo, acho que está certa. Mas, o amor é muito mais difícil de praticar que a guerra. Acho que a maior parte das pessoas está mais interessada na força da espada. Eu mesma, provavelmente, faço parte desse grupo. Dependendo do dia em que estou, os argumentos dele quase me convencem. Ele diz que posso trazer paz ao mundo através da força. Mas eu já estive nesse caminho. Só tem sangue e destruição – Xena desviou os olhos, surpresa com o tanto que tinha compartilhado.
– Xena, você espera um minutinho? Vou no meu quarto buscar uma coisa, rápido.
– Claro, espero.
A jovem subiu as escadas e voltou após alguns minutos. Puxou a mão da guerreira e colocou na palma dela um pequeno broche prateado em formato de arco e flecha.
– Sei que o que vou dizer agora vai parecer totalmente contraditório com o broche – a barda riu, sem soltar a mão da morena – e considerando o que me aconteceu hoje, fica ainda pior. Mas eu achei esse broche no chão logo depois que vi Afrodite pela primeira vez, e sempre guardei como um sinal que ela estava me olhando de longe, sendo minha arma à distância, digamos assim. Eu já acredito no amor, e você ainda não. Então quero que fique com ele e pense nisso toda vez que esse deus tentar te fazer voltar para a violência.
– Gabrielle – Xena arregalou os olhos – não posso aceitar isso.
– É só mais uma forma de agradecer pelo que fez hoje. Veja – a barda se esticou um pouco sobre a mesa e prendeu o broche firmemente num dos braceletes da guerreira – combina com sua armadura e não vai te atrapalhar. Não recuse, sabe que sou insistente.
A guerreira olhou para o pequeno e bonito broche, sem saber muito bem como reagir. Voltou os olhos para a barda e sorriu.
– Consigo ver porque Afrodite cuida de você.
A barda ficou corada novamente.
– Você vai terminar esse javali?
– Não, não cabe mais – olhou para o rosto pressuroso da barda – quer terminar ele?
– Já que insiste – a loira puxou o prato da guerreira em sua direção.
0 Comentário