4 de janeiro de 2024 — 20:16
por Bidi NaschpitzNotas iniciais do capítulo
Nessa fic são citados os episódios 4×21 The Ides of March, a trilogia nórdica (6×07 The Rheingold, 6×08 The Ring e 6×09 Return of the Valkyrie), 6×18 When Fates Collide, 6x21x22 A Friend in Need e principalmente 6×19 Many Happy Returns, onde o cenário é o mesmo na qual se passa essa história. Vale lembrar que é contado um ano a cada temporada, e a história se passa dez anos depois após o último episódio da série, ou seja, os vinte e cinco anos que elas passaram congeladas também contam, bem como o ano que Gabrielle passou adormecida dentro do fogo de Brunhilda, na trilogia nórdica.
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Levantou o olhar ao mesmo tempo em que uma lágrima escorreu. O sol ia se pondo por trás de uma cobertura verde já escura, lançando suas últimas fagulhas quentes no lago a sua frente.
Lago.
Aquele lago…
Os risos gostosos de diversão e felicidade ainda ecoavam em sua mente, dessa vez como uma maldição…
Os últimos raios do dia brilhavam uma cor alaranjada tanto no céu quanto nas águas agitadas pela cachoeira que ali havia. No corpo de pele acetinada, amorenava a pele branca e fazia suas mechas loiras tornarem-se ruivas. Seus olhos, seus perdidos e mortos olhos – aqueles já sem brilho –, eram preenchidos de um tom mais antinatural, bem como se encontrava sua alma: dividida e saqueada pela dor.
Agora a luz iluminava bem as sombras daquele olhar, e quem olhasse de longe – se desconsiderasse seu corpo derrotado e devastado pela morte –, poderia ver alguém comum. Por mais que seus olhos petrificados dissessem o contrário.
Olhou adiante, lembrando-se da última vez que estivera ali; quando Xena aplicou-lhe um beliscão no sexo de brincadeira, e o que isso acarretou mais tarde naquela noite, mesmo após a brincadeira ingrata com a cobra.
Ironicamente havia sido em seu aniversário que estivera ali pela última vez, dez anos antes. Os últimos dias mais felizes de sua vida, que hoje soavam como o prelúdio da tragédia – bem como o vento anuncia uma tempestade –, lhe doíam o peito como a maldição que injustamente deveria carregar. Que as Destino eram cruéis já tinha conhecimento, mas não poderia imaginar que pior seria sem elas.
Suas memórias imparciais e permeadas de sofismas a remeteram para outro episódio de sua vida que também a faria carregar uma cicatriz eterna: Xena, a Imperadora, crucificada por ela, uma escritora ordinária que teoricamente nunca vira na vida. O sangue da mulher que amava escorrendo, tocando o chão por aquela cruz que anunciava a morte iminente… Seus olhos sempre amorosos e calorosos perdendo a vida pouco a pouco… Tinha essas memórias vivas em seu coração e em sua mente, poderia até mesmo garantir que fora ontem que César as crucificara. Mas já se passavam mais de trinta e oito anos…
Mais uma vez apertou as mãos, em tão costumeira tentativa de abrandar a dor. Mas naquelas, agora, se encontrava uma rosa vermelha. Bonita como a vida e a felicidade que tivera, mas traiçoeira… Afundou os espinhos em sua mão quando tentou se esquivar da mágoa, e agora só sentia doer-lhe mais. Pensava que a dor era assim, trabalhava somente em cadeia: jamais diminuía, sempre aumentava ou pelo menos se mantinha constante.
to your grave, I spoke
holding a red, red rose
gust of freezing cold air
whispers to me that you’re gone…
para o seu túmulo eu falei
segurando uma vermelha, vermelha rosa
rajada de vento congelante
sussurra para mim que você se foi…
Ao longe, um cavalo relinchou, tirando-lhe dos devaneios. Sua túnica branca etérea agora jazia manchada pelas cores carmesim que escorriam na mesma, pingadas de sua mão ferida. Mas mesmo assim não largava a rosa. Ela representava seu amor: bonito como as memórias felizes que tinha, mas traiçoeiro e doloroso quando a resvalava para o poço de mágoas em seu coração. E via-se escrava disso agora. Ela tinha sido toda sua vida, e sempre seria.
O sol da tarde resplandeceu na égua de crina branca quando esta passou ao seu lado, intensificando seu brilho dourado. A única que tinha sido sua companheira fiel nos últimos dez anos, além da dor constante. Agora jazia velha, talvez tanto quanto ela estava em fim de vida.
Observou quando o animal cutucou suavemente o cadáver gelado com o focinho, a poucos metros de seus pés, numa tentativa inútil de reanimá-lo, e que ambas sabiam. Aquele que fora seu corpo em outrora; quem fora e o portador de sua alma, recipiente de todas as memórias e mágoas que guardava agora, já não parecia mais tão importante. Não tinha agüentado a maior de todas as provações e havia perecido ante seu maior desafio: suportar a dor.
Viu quando o animal deitou-se calmamente ao lado de seu cadáver, em silenciosa aceitação. Sabia que sua vida também chegava ao fim devido à idade avançada, e preferia seguir com sua dona a ficar sozinha.
Um singelo meio sorriso brotou na face de Gabrielle ao compreender o intento do animal. Ela sim, nem mesmo na morte a abandonaria.
A alma de Xena ficara presa no Japão; motivo de seu perecimento precoce ante a solidão. Outra artimanha de Akemi para ter a guerreira de volta: separar duas almas amantes destinadas a viver, morrer e renascer juntas.
Não fora coincidência morrer justo à beira daquele lago. Dirigiu-se para lá quando sentiu os últimos fios de vida escapar-lhe pelos dedos. Queria que sua última visão fosse do lugar que mais lhe trouxera felicidade em vida, acariciando a grama onde se deitara consumando o amor que sentia arder no peito.
spent a lifetime of holding on just to let go
I guess I’ll spend another lifetime searching for a new hope…
gastei uma vida inteira segurando firme para apenas permitir que parta
eu acho que gastarei outra vida procurando por uma nova esperança…
Um brilho etéreo surgiu ao seu lado, materializando-se na égua dourada. Dessa vez sorriu, franzindo o nariz. Agora tinha certeza de que não seguiria para os Elíseos sozinha.
Afagou carinhosamente o pescoço do animal, passando a pentear-lhe a crina. A égua balançou a cabeça, em um gesto impaciente tão característico. Limitou-se a rir e a obedecê-la, montando em seu lombo de pêlos macios. Tal como os cavalos das terras de Odin, com um simples salto Argo já se encontrava cavalgando pelo ar. Um sentimento de paz e liberdade começava a consumir o coração perturbado de Gabrielle, a medida que o vento lhe tocava a face e a fazia se inclinar mais sobre o pescoço do animal. Rasgava-lhe por dentro a ciência de que passaria a eternidade sozinha, sem a mulher que amava; mas preenchia-lhe a certeza de que essa eternidade teria um fim. Elas renasceriam. E se encontrariam. Viveriam juntas… Mais uma vez.
Fim