6 – Sabe o que quero?
por Dietrich– “Há muito tempo, quando os cães ainda não tinham sido domesticados pelo homem, viviam organizados em dois países. Cada país…”
– Era só o que me faltava. Cães com nacionalidade…
– Xena! Se não parar de me interromper, vai morrer antes de saber o final da história.
O riso cansado da morena ecoou nas paredes de pedra.
– Quanto tempo acha que vão nos deixar aqui? – perguntou Xena.
– Não sei. Imagino que esteja tudo confuso agora que o rei está morto.
– Você viu como deixei a cara dele?
– Você realmente acabou com ele. Aposto que seria uma grande guerreira.
– Você também, vi como atacou aquele guarda.
– Escute. “Cada país tinha um chefe e cada chefe gabava-se de ser mais poderoso que o outro. Um desses chefes quis um dia casar com a irmã do outro”.
Xena abriu a boca para falar, mas Gabrielle pós um dedo em seus lábios e a olhou com uma expressão repreensiva. Xena balançou a cabeça e desistiu de falar, não sem antes beijar o dedo encostado em sua boca.
– “Mas, como eles estavam sempre zangados, o outro respondeu ‘Não. Não quero que sejas o marido da minha irmã’”.
O fluxo da narrativa foi cortado pelo barulho de passos apressados. As mulheres se olharam, assustadas e se abraçaram com força.
Alguém abria as grades da cela, mas elas não olharam quem era, concentradas em estar perto uma da outra até o momento da inevitável separação.
– Ariadne! Aletheia! Por favor, se apressem!
Num movimento único, as mulheres voltaram-se para a origem da trêmula voz feminina, e uma pequena figura encapuzada as tocou nos ombros. A pessoa retirou o pano que lhe cobria a cabeça. Era uma adolescente que as mulheres nunca tinham visto antes.
– Tem dois uniformes ali para vocês se disfarçarem – a voz da moça era urgente – está tudo organizado, os cavalos, os guardas estão distraídos, ninguém desconfia, mas vocês têm que partir agora mesmo!
As mulheres continuavam sem reação.
– Você não eram as únicas – a moça disse – todas nós estamos gratas. Por favor, vamos logo…
Gabrielle foi a primeira a reagir. Levantou-se do chão de pedra e estendeu a mão para Xena, que, ainda confusa, a pegou. Seguiram a menina, que as ajudou a vestir os uniformes o mais rápido possível. Andaram pelos corredores. Gabrielle sentia as mãos dormentes de tensão, e saíram rapidamente do castelo. A moça as levou até os estábulos, onde outra mulher lhes entregou um cavalo e sorriu para elas.
– Quais seus nomes? – perguntou Gabrielle – os verdadeiros.
As mulheres se entreolharam.
– Sou Lina, ela é Mateia – disse a mais jovem.
– Sou Gabrielle, e ela é Xena – disse a loira – muito obrigada por nos ajudarem.
– Nós que agradecemos. As mulheres distraíram os guardas dos portões, se apressem!
Gabrielle viu Xena montar prontamente no cavalo. A loira subiu atrás dela e o animal disparou.
Atravessaram os portões. Xena não parou para pensar em refletir, todo o seu ser se concentrava em colocar o máximo de distância entre ela e o castelo de Cortese. Só parou quando seus músculos não suportavam mais o esforço e o próprio cavalo vacilava na cavalgada. Já era noite fechada e estavam no meio de pura mata selvagem. Desceram do animal e encostaram-se, exaustas, numa árvore.
– Isso é real? – perguntou Gabrielle – estamos sonhando?
– É real. Precisamos fazer uma fogueira.
– Você sabe como fazer uma?
– Eu sabia, há dez anos atrás. Vou tentar, fique aqui.
Xena conseguiu juntar alguns pedaços de lenha e acendê-los. Quando o calor irradiou, percebeu o quanto a noite estava fria. Deitaram-se no chão, perto do fogo, e abraçaram-se.
– Eu sei que devia estar simplesmente feliz – disse Gabrielle – mas estou apavorada.
– Eu também estou.
– Como vamos sobreviver?
– Vamos passar por hoje. Amanhã é amanhã. Gabrielle, por favor, não me deixe.
– Nunca vou te deixar, Xena, nunca.
***
– Eu disse que ia dar certo, Gabrielle – disse Xena, observando a lebre presa na armadilha.
– Como você sabe todas essas coisas?
– Quando era adolescente vivia na floresta com um bando de meninos fazendo estrepolias. Matava minha mãe de preocupação.
– Xena… o que vamos fazer?
– Precisamos sair do reino de Cortese. Podem estar nos procurando.
– Não temos nada, nenhum dinheiro…
– Vamos dar um jeito.
– Tem que me ensinar tudo que sabe.
– Com certeza. Veja, para encontrar água….
***
– Vocês estão sabendo? Mataram Cortese!
– Deuses! Quem?
– Ninguém sabe. Ninguém parece muito disposto a descobrir, na verdade.
– Ainda bem! Seja quem for, gostaria de poder dar os parabéns por acabar com aquele bastardo.
– Quem vai assumir é o general Héracles.
– Espero que ele seja mais benevolente.
Gabrielle saiu discretamente da taverna após ouvir a conversa, o rosto coberto pelo capuz. Entrou na floresta a foi até onde estava acampada com Xena. A morena soltou um suspiro de alívio quando a viu.
– Eu estava para ter um troço – disse Xena.
– Você sabe que é melhor eu ir só, chamo bem menos atenção.
– Isso não impede que eu fique preocupada.
– Xena… não estão nos procurando. Os nobres e os camponeses estão satisfeitos com a morte de Cortese.
– Ainda assim… é melhor sairmos do reino, fazer nossa vida em outro lugar.
Gabrielle sorriu.
– Nossa vida?
Xena baixou os olhos.
– Isso, se você quiser. Somos livres agora. Podemos fazer o que bem entendermos.
Gabrielle pegou a mão de Xena na sua e a beijou, depois enlaçou a cintura da mulher e beijou-a no colo.
– Sabe o que quero? – perguntou a loira.
– O que? – perguntou Xena, devolvendo o abraço.
– Quero sair do reino de Cortese com você. De preferência para um lugar bem longe. Dentro dessas fronteiras, é como se ele ainda estivesse nos olhando, ou pudesse surgir a qualquer momento e nos fazer mal. Sei que é irracional… mas é assim que me sinto. Quero ir para um lugar onde eu possa estar com você sem me preocupar com a presença dele – beijou os lábios da morena – e fazer amor com você devagar, sem pressa, sentindo cada pedacinho seu, como jamais pude.
– Podemos fazer isso agora – Xena sussurrou.
– Não – disse Gabrielle – não enquanto ainda sinto ele. Quero você, só você.
Xena a beijou ardorosamente. O desejo a assolou, mas ela entendeu o que Gabrielle queria dizer, era como se a presença ameaçadora do homem ainda as assombrasse. O impulso a que estava acostumada era de tomar Gabrielle rápido, antes que o pior acontecesse, e ela não queria. Começou a sonhar com o que Gabrielle tinha falado. Um lugar distante, só delas, onde pudesse amar Gabrielle por todo o tempo que desejasse.
– Vamos encontrar esse lugar – disse Xena.
A história contada nesse capítulo pode ser encontrada no link: https://muralafrica.paginas.ufsc.br/files/2011/11/CONTOS_AFRICANOS.pdf. Recomendo muito a leitura!
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