À luz da lua
por DietrichXena chegou às ruínas do castelo. A luz forte do sol parecia castigar as pedras desgastadas, projetando sombras longas sobre os muros desmoronados. O vento carregava um cheiro de terra antiga e musgo. O lugar tinha uma imponência triste, como um gigante adormecido, há muito esquecido pelo tempo. Segundo o que as pessoas da vila tinham contado, tinha pertencido à uma família de sobrenome Karnstein. Por um momento, a visão a levou de volta à sua vida na Grécia antiga e sentiu um aperto de nostalgia.
Ela subiu a encosta com passos firmes, seus olhos percorrendo cada detalhe ao seu redor com atenção treinada, buscando algo fora do comum.
As torres, agora sem teto, se erguiam como espectros contra o céu, enquanto o pátio central estava repleto de entulhos e vegetação selvagem. Xena passou os olhos pelas janelas escuras, tentando captar qualquer sinal de movimento ou irregularidade, mas tudo parecia imperturbável, congelado no abandono. Ela avançou pelos corredores vazios. Mesmo assim, por mais que seus sentidos estivessem atentos, não havia nada de extraordinário – apenas o silêncio, o vazio de um lugar perdido em sua própria história.
Quando chegou ao cemitério anexo ao castelo, onde os túmulos antigos da família Karnstein repousavam, encontrou um jovem curvado sobre uma lápide, limpando a pedra com movimentos cuidadosos. O rapaz, de cabelo castanho desalinhado e um rosto marcado pelo sol e pelo trabalho ao ar livre, levantou a cabeça ao notar sua presença, seus olhos curiosos e atentos. Ele limpou as mãos sujas de terra no avental e se levantou.
– Posso ajudar em algo? – perguntou ele, sua voz carregada com a calma de quem está acostumado ao silêncio dos mortos.
Xena parou a alguns metros de distância, observando os túmulos bem cuidados ao redor, enquanto cruzava os braços.
– Talvez você possa. Suponho que você trabalhe aqui com frequência. Já notou algo de diferente ou estranho nesse ambiente?
O rapaz passou a mão pela nuca, parecendo ponderar por um momento.
– Não sei ao certo. Faz anos que cuido dos túmulos da família Karnstein, mas o lugar sempre esteve… quieto. O pessoal da vila conta muitas histórias – ele deu de ombros – mas eu nunca vi nada estranho.
Xena assentiu, ainda analisando cada detalhe ao seu redor, mas o peso de um mistério não revelado parecia pairar ali. Mesmo sem encontrar nada incomum, algo na atmosfera fazia seus instintos permanecerem em alerta. E ela jamais ignorava seus instintos.
– Que histórias são essas?
O rapaz sorriu, como quem já estava acostumado a responder aquela pergunta.
– Você sabe, toda aquela história que a família Karnstein eram vampiros. Uma lenda famosa, que gerou aquele livro. Carmilla.
– Muita gente aparece aqui perguntando isso?
– De vez em quando. Mas sabe, como eu disse, tô aqui há anos e nunca vi um resquício de algo anormal ou sobrenatural. São só velhas histórias.
Xena teve a sensação que o rapaz era sincero. Ela sentia que havia algo ali, mas, se havia, não se mostrava para o rapaz. Xena acreditava que as pessoas desta era não eram capazes de ver um palmo adiante do nariz quando algo estranho ocorria, dominados que estavam pelo naturalismo científico.
Bem, Xena vinha de um tempo onde o fantástico aparecia diante de seus olhos e não estava pronta para descartar a possibilidade de algo mágico por causa da palavra de um rapaz moderno. Fez uma nota mental de voltar ali quando a noite caísse, onde havia mais chances de algo de manifestar.
– Bem, obrigada, senhor, an…
– James.
– Bem, obrigada James. A propósito, meu nome é Xena.
– Por nada, dona Xena. Feliz em ajudar.
***
Gabrielle folheava o livro “Carmilla” com despretensão. No início, a narrativa fluía de maneira tranquila, com um ar de mistério, mas à medida que avançava, as palavras começaram a penetrar sua mente de uma forma perturbadora. Seu coração, antes calmo, passou a bater com uma intensidade crescente.
Ela apertou o livro nas mãos, os dedos pressionando a capa com força, à medida que o reconhecimento se tornava impossível de ignorar. Os sonhos da personagem Laura, eram assustadoramente semelhantes aos seus próprios sonhos recentes. E a descrição de Laura… Gabrielle sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Era muito semelhante à pessoa que Xena tinha descrito em seu sonho.
Gabrielle fechou o livro com um ar sério e preocupado. Tinha lido até a última linha. Com o coração acelerado, saiu da biblioteca rapidamente, a cabeça girando com as revelações e uma sensação de urgência.
***
Gabrielle chegou em casa, o coração ainda galopando, mas a adrenalina deu lugar à frustração quando se deu conta de que Xena ainda não tinha voltado da sua expedição. Ela andou de um lado para o outro, tentando se acalmar. Sabia que Xena retornaria em breve, mas a ansiedade começava a tomar conta. Por um breve momento, amaldiçoou o fato de ambas ainda resistirem ao uso de telefones celulares. “Seria muito mais fácil sincronizar nossos passos se finalmente adotássemos aqueles dispositivos estranhos”, pensou. Fez uma nota mental de trazer esse assunto à tona com Xena assim que tivesse a chance.
Mas, por ora, precisava de algo que a distraísse. Gabrielle suspirou e decidiu ocupar as mãos e a mente. Pegou um cesto e saiu para o jardim de ervas que cultivava. Com paciência, começou a colher manjericão, alecrim e hortelã, sentindo o aroma fresco das plantas lhe trazer um pouco de tranquilidade. Ela separou as folhas com cuidado, tentando focar-se no ritmo metódico da tarefa. O trabalho com a terra costumava lhe acalmar, mas hoje, seus pensamentos corriam mais rápido que suas mãos.
O som de passos a tirou de seus devaneios. Gabrielle largou o cesto no chão e correu pelo terreno, aliviada ao ver Xena chegar, uma expressão séria no rosto. Antes que Xena pudesse dizer qualquer coisa, Gabrielle praticamente tropeçou nas palavras:
– Xena, você não vai acreditar no que aconteceu – disse ela, quase sem fôlego – eu estava na biblioteca, lendo “Carmilla”, e os sonhos de Laura, a protagonista do livro, são iguais aos meus. E a descrição de Laura batia com a mulher que você viu em seu sonho.
Xena a observou atentamente, os olhos azuis fixos em Gabrielle.
– Eu também senti algo estranho – disse Xena – no castelo Karnstein, parecia quieto demais, e ao mesmo tempo, havia algo no ar, como se o lugar estivesse esperando por alguma coisa. Acho que há mais naquela ruína do que parece à primeira vista.
As duas trocaram um olhar significativo, e Gabrielle sentiu um frio percorrer sua espinha novamente. Não havia mais dúvida, havia algo ali, algo que precisavam investigar.
– Temos que voltar às ruínas – disse Xena.
Gabrielle assentiu, o nervosismo agora substituído pela determinação.
– À noite – completou ela, sua voz firme – vamos descobrir o que está acontecendo.
***
A lua cheia brilhava intensamente no céu, banhando as ruínas do castelo Karnstein com uma luz prateada, enquanto Xena e Gabrielle cavalgavam até o local. O som rítmico dos cascos dos cavalos ecoava pela noite, e as sombras das árvores ao redor pareciam se mover, inquietas. Quando chegaram ao pé das ruínas, desmontaram com agilidade, suas botas tocando o terroso chão úmido. Xena, sempre alerta, observava os arredores, enquanto Gabrielle mantinha o olhar fixo nas paredes antigas e nos túmulos que descansavam sob a luz da lua. Para uma noite em um lugar abandonado, tudo parecia, a princípio, normal – ou pelo menos tão normal quanto uma ruína com um cemitério poderia ser.
As duas avançaram em silêncio, os sentidos aguçados. O vento sussurrava entre as árvores próximas, e o farfalhar das folhas parecia amplificado pela quietude da noite. Ao se afastarem da área central, caminhando em direção à floresta mais densa que circundava as ruínas, a sensação de inquietação começou a crescer. A cada passo que davam, Gabrielle sentia como se algo invisível estivesse observando-as, movendo-se nas sombras com um silêncio mortal.
Xena, sempre uma com seus instintos, parou de repente. Sua mão foi para a espada em um movimento fluido, sacando-a, o som metálico cortando o ar. Gabrielle, de respiração curta, também parou e sacou seus sai, os olhos varrendo o ambiente à procura de um perigo iminente. O silêncio ao redor era esmagador.
Porém, antes que qualquer ameaça se revelasse, uma figura emergiu das sombras das árvores. Xena manteve a espada em posição, e ao vislumbrar o onírico rosto familiar, sua expressão endureceu. Gabrielle ofegou, reconhecendo a mulher que saía da escuridão: Ulara, a simpática atendente da biblioteca, carregando um livro nos braços, e envolta em longas vestes claras que pareciam quase flutuar sob a luz da lua.
– Ulara? – Gabrielle perguntou, surpresa e confusa. – o que você está fazendo aqui?
A mulher parou a alguns passos delas, seu olhar carregado de algo que Gabrielle não conseguiu decifrar de imediato.
– Não sou Ulara – disse ela, a voz doce, mas soturna – meu nome verdadeiro é Laura.
Gabrielle estreitou os olhos. Laura, como no livro. Antes que pudesse processar o que aquilo significava, Laura deu um passo à frente, segurando o livro mais perto do peito, e sua voz tremeu de dor contida.
– Vocês sabem o que é ver a pessoa que você ama ter a cabeça cortada e seu corpo reduzido a cinzas?
Gabrielle ficou imóvel, o sangue sumindo de seu rosto enquanto as memórias antigas e dolorosas a atingiam com a força de um golpe. O cenário de Japa voltou como um relâmpago: o corpo de Xena, sua cabeça perdida, a cremação, e a urna com as cinzas. A dor daquele momento ainda era vívida, tão real quanto o solo sob seus pés. Ela olhou para Xena, e viu que a guerreira estava pálida.
Os olhos de Xena desviaram para o chão por um momento, a mandíbula tensa, os dedos apertando o punho da espada. A lembrança da própria morte em Japa e de tudo o que ela e Gabrielle tinham passado ainda doía, mais do que qualquer ferida física.
Gabrielle engoliu em seco, tentando encontrar palavras, mas nenhuma surgiu. Laura as olhou fixamente e um olhar de expectativa surgiu em seu rosto.
– Vocês entendem, então – ela murmurou.
Xena manteve a espada em punho, e seu olhar voltou a se fixar na desconhecida.
– Foi você quem enviou os sonhos? – Xena perguntou, a voz continha um tom de acusação.
Laura franziu a testa. Ela apertou mais o livro contra o peito e sacudiu a cabeça lentamente.
– Não… eu não sei do que você está falando.
Gabrielle, que ainda sentia o peso das palavras anteriores de Laura, deu um passo à frente.
– Você é a Laura do livro “Carmilla”, não é? – seus olhos buscavam uma reação naquela mulher que parecia ter saltado das páginas de um conto.
Laura fechou os olhos por um breve momento. Quando finalmente os abriu, assentiu, um suspiro escapando de seus lábios.
– Sim, sou eu – admitiu ela, a voz baixa, quase um sussurro – a Laura de “Carmilla”.
Gabrielle trocou um olhar rápido com Xena, o frio na espinha crescendo enquanto as peças começavam a se encaixar de maneiras que não queriam imaginar.
– Conte-me sobre os sonhos – pediu Laura, sua voz carregada de uma urgência mal disfarçada – preciso saber o que você viu.
– Um minuto, garota – Xena se adiantou – Você aparece em um sonho meu, também é uma personagem de um livro, e, por acaso, aparece nas ruínas no exato dia que eu e Gabrielle viemos aqui investigar. Por que você está aqui neste momento?
Laura se adiantou, parecendo mais confiante.
– Quando Gabrielle apareceu na biblioteca e escolheu o livro da minha tragédia, eu sabia que algo diferente ia acontecer hoje. Eu prometo contar tudo à vocês. Por favor – o olhar de Laura tornou-se suplicante – contem-me sobre seus sonhos.
A moça parecia uma jovem inocente, mas Xena sentia uma ameaça indefinível emanar dela. Sentiu o toque leve de Gabrielle em seu braço, e encontrou os olhos verdes pedindo que ela desse uma chance à garota. Suspirou e assentiu para Gabrielle.
Gabrielle deu um passo à frente e começou a relatar os detalhes do seu sonho. Laura escutava em completo silêncio, o rosto ficando cada vez mais pálido conforme Gabrielle avançava. Quando Gabrielle terminou, ela deu um passo para trás, como se as palavras a tivessem atingido fisicamente.
– Esses… – Laura começou a falar, a voz quase inaudível – esses são os meus sonhos. Os mesmos que eu tinha quando… – ela engoliu em seco, o terror evidente – quando Carmilla me atacava.
De repente, como se movida por um impulso desesperado, Laura correu em direção a Gabrielle, os olhos arregalados de urgência.
– As marcas! – gritou, os dedos estendidos – eu preciso ver, por favor, Gabrielle, me mostre se você tem as marcas!
Gabrielle mal teve tempo de processar o pedido antes de Xena se mover com a rapidez e a precisão de um relâmpago. Num instante, ela estava entre Laura e Gabrielle, erguendo a mão de maneira firme e protetora.
– Fique onde está – ordenou Xena, a voz gélida e cortante, os olhos fixos em Laura – não toque nela.
Laura parou bruscamente, sua respiração entrecortada e o rosto lívido.
– Desculpe – murmurou ela, a voz trêmula – eu não queria assustá-las. Mas os sonhos de Gabrielle são idênticos aos que eu tinha quando Carmilla me atacava. Se as marcas estão lá, então… – ela fez uma pausa, os olhos cheios de medo e confusão – mas isso não pode ser. Carmilla está morta. Ela foi destruída há séculos.
– Se ela está morta – Gabrielle questionou, a voz baixa e preocupada – como você explica os sonhos?
Laura abaixou os olhos lentamente, respirando fundo. Parecia estar construindo um raciocínio. A tensão no ar parecia aumentar à medida que o silêncio se prolongava, com Xena e Gabrielle aguardando, sem saber ao certo o que esperar. Finalmente, Laura deu um passo à frente e ergueu o olhar novamente.
– Eu acho que entendo o que são esses sonhos – disse ela, sua voz agora mais calma. Ela olhou para o céu, onde a lua cheia brilhava intensamente, e então para as ruínas ao redor, como se o lugar e o momento fossem parte de um quadro maior – não são coincidências. Não são apenas sombras do passado.
Laura estendeu o livro que trazia consigo e o mostrou para elas. Era um tomo antigo e misterioso, com símbolos gravados na capa. Seus dedos deslizaram sobre os relevos, e a energia que emanava dali era quase palpável.
– Tudo isso foi causado por uma conjunção de fatores – continuou ela, com firmeza na voz – Aalua cheia, onde a magia é mais forte, a reunião de almas gêmeas. Vocês, Xena e Gabrielle, e eu… e Carmilla. Almas gêmeas ligadas por algo maior que o tempo e a morte.
Gabrielle olhou de soslaio para Xena, surpresa com o fato de Laura ter usado aquelas palavras, que para elas significavam tanta coisa. Xena permaneceu em silêncio, os olhos fixos em Laura, com o olhar calculista de quem tenta juntar as peças de um quebra-cabeça.
– Nós somos o gatilho – disse Laura, com um brilho melancólico nos olhos – quando almas gêmeas se encontram num momento de magia, como este, as barreiras entre o passado e o presente começam a se romper. Foi isso que gerou os sonhos. A ligação entre vocês duas a deixaram sensíveis a captar a minha dor e a de Carmilla.
Ela fez uma pausa, o peso das próximas palavras visível em seus olhos.
– Eu me matei – confessou Laura, sua voz baixa, mas firme, enquanto os olhos de Gabrielle se arregalavam de choque – eu me tornei uma vampira na esperança de encontrar Carmilla novamente. – ela olhou diretamente para Gabrielle tentando manter a calma mesmo que a dor em sua voz fosse evidente – no livro que você leu, Gabrielle, o barão explica que suicidas, em determinadas circunstâncias, podem renascer como vampiros. Eu estudei essas circunstâncias. Eu segui os rituais, cumpri os passos, tudo para renascer com o dom do sangue. Porque eu queria, eu precisava me unir a Carmilla como uma igual.
O ar ao redor pareceu pesar ainda mais. Xena apertou o punho da espada, o rosto sem expressar emoções, os olhos estavam fixos em Laura, analisando cada palavra.
– E agora – continuou Laura – eu estou aqui com as cinzas de Carmilla, que carrego comigo há séculos – ela abriu lentamente uma pequena bolsa de veludo que estava presa em sua cintura revelando uma pequena urna de cerâmica. Gabrielle engoliu em seco ao ver aquela macabra reminiscência de seu próprio passado – o livro que trago comigo fala sobre mágicas relacionadas ao poder de almas gêmeas e como ele pode ser usado para romper as barreiras entre os mundos, para trazer alguém de volta.
Gabrielle engoliu em seco, sentindo o impacto das palavras de Laura.
– Você quer que nós a ajudemos? – perguntou Gabrielle, pressurosa.
Laura assentiu, os olhos cheios de uma mistura de esperança e dor.
– Vocês são as únicas que podem me ajudar a trazer Carmilla de volta. As almas gêmeas, a magia da lua cheia, tudo se alinha. Com a energia de vocês, eu posso trazê-la de volta. Poderemos nos unir novamente, como deveria ter sido desde o início.
Xena e Gabrielle trocaram um olhar carregado de perguntas. O destino havia colocado as três naquele momento, mas agora, a decisão estava nas mãos delas.