O Julgamento.

Século XVII.

Os raios de sol entravam pelos vidros empoeirados das janelas daquele recinto tenso, onde figuras religiosas repousavam sobre prateleiras igualmente empoeiradas, mas naquele momento toda concentração residia no centro da sala onde uma figura de aparência frágil, cabelos longos claríssimos e olhos verdes, a qual era rodeada por homens de fé distorcida que lhe interrogavam.

Algumas mulheres que vestiam vestidos que lhe cobriam todo o corpo, com exceção do rosto e das mãos lhe olhavam de maneira reprovadora como se a sua simples presença ali fosse uma afronta.

-CONFESSE! – gritou um dos homens que tomava a liderança do grupo. – CONFESSE seu contato com o demônio ardiloso! Ainda há tempo para salvar a sua alma do fogo nefasto através da confissão sincera antes da execução. Assuma que compactuaste com o satanás para trazer essa enfermidade demoníaca à pobre Marguerite!

-Pelo amor do bom Criador, eu jamais me envolvi com qualquer coisa desse tipo! Tudo que foi encontrado na minha cabana são ervas! Plantas inocentes, medicinais. E não há enfermidade demoníaca nenhuma, vocês estão cegos para perceber o óbvio? – a jovem suplicava com lágrimas escorrendo-lhe pelas bochechas.

-O demônio está escondido em cada sombra de Salem, ele disfarça suas ações no óbvio para corromper a imagem das pessoas de bem! Afirmou reverendo Joseph Stokes erguendo seu tom de voz.

-Vocês viram o que ela fez a mim com esses símbolos malignos e poções demoníacas – disse uma das mulheres chorando com uma voz lamurienta que soava como um agouro– Me perdoa irmão, eu não quero morrer! – o choro se tornava mais histérico e a mulher apoiava o rosto no reverendo que lhe acolhia.

-Ficará tudo bem Marguerite… O Criador é justo com os que possuem coração puro.

Os olhos da jovem figura loira que era centro das acusações estavam vermelhos, fazia horas que a mesma estava submetida a aquelas humilhações daqueles que se diziam homens de bem do pequeno povoado. Seus olhos focaram na mulher que dirigira a palavra a si, seus cabelos longos, rosto coberto por um véu, e olhos cruéis. Gostaria de poder levantar-se e fazer acusações também, mas de que adiantaria de qualquer modo? Que reputação ela tinha ao lado da beatífica irmã do reverendo Joseph, Marguerite Stokes?

-Esta jovem insolente está condenando a si mesma a morte e a sua alma a eterno sofrimento no fogo do inferno. Esse é o preço que aqueles que fazem aliança com o satanás devem pagar. O enforcamento se realizará amanhã ao meio-dia. Levem-na para o calabouço. – Declarou o magistrado batendo o martelo.

O início de todo o problema

Alguns dias antes.

Três batidas se deram na madeira rústica da porta de uma cabana rodeada de árvores e grandes folhagens. Era uma cabana pequena, de três cômodos. Do lado de fora era coberta por trepadeiras que davam flores amarelas e as pedras eram bastante velhas, já cobertas pelo musgo. Nas janelas de abas abertas repousavam alguns pássaros como se não temessem a presença de possíveis humanos por ali e da chaminé de pedra saía uma fumaça que dava a impressão de que um ambiente confortável era o que se encontrava lá dentro.

A porta se abriu para revelar a imagem de uma jovem de cabelos louros, estatura média. Um lenço segurava seus cabelos que ostentavam duas tranças presas para trás. Suas feições eram de uma delicadeza rara para as mulheres locais que traziam traços mais angulares e definidos. Seus olhos verdes davam uma impressão de bondade, embora estivesse surpresa em ter ali em sua porta uma figura desconhecida.

            -Aeleen O’Riley?

            – Sim, sou eu. A senhorita é…?

            – Marguerite Stokes, sou a irmã do…

            -Reverendo Joseph?  O que trás a senhorita á minha humilde cabana? – indagou a jovem de olhos esbugalhados.

            -Como você sabe, são tempos difíceis, jovem. Eu preciso dê sua ajuda. Importa-se se eu…?

            -De modo algum, entre! Disse a jovem abrindo mais a porta e se precipitando para trazer até o cômodo outra cadeira para acomodar a inesperada visita. – No que supostamente eu posso ajudar a senhorita? – perguntou finalmente após as acomodações.

            -Antes de dizer gostaria de lhe perguntar se és capaz de jurar segredo sobre toda palavra que eu lhe disser, pois caso contrário minha vida cairia em profunda desgraça o que seria motivo de vergonha incomparável para meu irmão e caos entre a ordem religiosa de Salem.

            -Temo perguntar o que seja tal assunto de tanta complexidade…

            -Pelo amor do bondoso Deus senhorita O’Riley, minha vida está prestes a se arruinar. Minha única esperança é de que possas me ajudar! – disse a mulher numa estranha súplica que tinha um tom levemente imperativo de indignação. Seus olhos azuis se fixaram na figura loira, como se exigissem uma resposta.

Aeleen suspirou longamente hesitando. Sentia que estava prestes a entrar num problema bastante grande, mas sua criação a havia ensinado que nunca deveria negar uma mão estendida a quem precisasse de seu auxílio.

-Tudo bem. Eu prometo não dizer nada. Em que posso ajudá-la senhorita Stokes?

Tempo presente.

Aeleen era agarrada por seus braços e arrastada para fora do cômodo. Sabia que seu destino era voltar para a cela imunda e fria que havia passado as horas anteriores e que suas horas de vida estavam contadas.Queria ser capaz de gritar, berrar a plenos pulmões o quão errado estava tudo aquilo, mas apesar de tudo ela era como os demais cidadãos de Salem, uma camponesa sem vez e sem voz. Que não se encaixava no padrão de vida dos habitantes do centro do povoado e como outras haviam sido, seria agora executada diante dos olhos sádicos dos demais cidadãos, muitos dos quais que não viam aquilo como um ato de crueldade, mas sim com gosto sádico pelo acontecimento. A última coisa que vira naquela sala foram os olhos azuis e frios de Marguerite Stokes, que lhe fitavam como duas pedras geladas, escondendo atrás de si a alma que Aeleen julgava agora ser de uma víbora…

Alguns dias antes…

            -Me perdoe senhorita Stokes, mas eu não posso ajudá-la! Jamais o farei, isso posso te assegurar. Se precisar de outro favor, posso providenciar, mas o que está me pedindo agora não é algo que eu possa fazer.

            -Você é a única que pode! Não há mais ninguém que tenha o controle dessas plantas como você. Você sabe o que as pessoas comentam a seu respeito nas ruas do mercado. Todos sabem que você é…

            -Com todo respeito senhorita, se me julga pelas coisas que dizem a meu respeito, não é adequado que venha até meu recinto. Agora sinceramente eu gostaria que se retirasse, pois tenho meus afazeres a terminar.

            -Achei que tivesse um bom coração, senhorita O’Riley.

            -Nossos conceitos de bondade de divergem aqui. Tenha um bom dia senhorita Stokes – disse por fim abrindo a porta e convidando a dama a sua frente a se retirar.

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Reverendo Joseph estava sentado à sua escrivaninha redigindo um manuscrito ao qual fixou o selo da diocese local, quando foi interrompido por um homem de grande porte, ombros largos e embora trajasse roupas de um certo valor, tinha modos grosseiros.

            -Como vão as coisas, meu caro Wilhelm?

            -Não poderiam estar melhores, pastor. Todos estão satisfeitos com a condenação, as pessoas a temem e certamente se sentirão aliviadas após cortarmos essa ramificação do mal.

            -É uma pena que não tenhamos conseguido uma confissão. A Igreja mandaria um bispo sem pensar duas vezes para deter a presença maligna desse povoado.

            -É uma pena, Pastor. Já devia ter sido percebido há muito tempo que as regras da igreja seriam muito mais adequadas para o bem-estar do nosso povo do que a meia dúzia de bobagens que o magistrado impõe.

-Mas haverá outras oportunidades, certamente.

-Certamente, reverendo.

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12:00: A Hora da ‘Justiça’.

O sol estava alto indicando o meio-dia no pequeno povoado de Salem. Uma aglomeração de gente se fazia presente na praça principal diante do palanque de enforcamento, enquanto Aeleen era empurrada por um homem grande e grosseiro. O carrasco, vestido com seu capuz e capa preta e o reverendo andavam alguns passos atrás. Aeleen tinha as mãos amarradas para trás, seus olhos demonstravam tristeza, mas não medo e embora grande parte da multidão lhe olhasse com olhos recriminadores, não sentia vergonha. Sua consciência estava tranqüila.

A corda havia sido colocada em volta do seu pescoço, e o reverendo se aproximou.

– Existe alguma palavra de arrependimento que queira dizer jovem?

Aeleen olhou para os olhos frios do reverendo e em seguida para os olhos de Marguerite, na multidão. Com uma voz baixa, permitindo que somente o pastor lhe ouvisse, sussurrou:

-Sua irmã nunca esteve doente. Ela espera uma criança.

A jovem fitou por alguns segundos a expressão ultrajada do homem à sua frente que então lhe deu às costas e acenou para o carrasco o seu sinal positivo. A alavanca foi puxada definindo o destino de Aeleen O’Riley.

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Um pouco da história da nossa heroína…

9 anos atrás.

Como muita gente do Velho Mundo, o casal O’Riley resolvera deixar a Irlanda rumo à nova terra que diziam ser próspera e abundante em riqueza. Ah, o ilusório paraíso: América. Mas o Destino, eventualmente mostra suas garras e presas e foi o que ocorrera naquela viagem de navio. A mãe de Aeleen, grávida na época, padecera de algum mal e morreu, deixando a filha de 11 anos e o marido sozinhos a bordo.

O pai, fraco, entregue à bebida e ao vício para superar a dor, acabou contraindo dívidas de jogo durante a viagem e foi vítima de uma emboscada logo que o navio aportou.

A primeira noite de Aeleen O’Riley na América não tinha nada de próspera. A pequena menina de cabelos claros e olhos verdes assustados vagara pelo povoado, faminta e mal-vestida, sendo ignorada pelos olhares reprovadores, até encontrar um estábulo para passar a noite fria, chorando de saudades dos pais. E ser chutada logo no alvorecer por um fazendeiro furioso. Sentia medo de voltar para o meio das pessoas, então adentrou um bosque, caminhando sem rumo por horas. A falta de comida lhe havia deixado extremamente fraca, e suas pernas frágeis cambaleavam tropeçando em raízes e cipós. Um passo em falso foi o suficiente para lhe levar ao chão, rolando um pequeno declive e batendo a cabeça num tronco caído. Aeleen desmaiara, sendo escondida pela vegetação da floresta. Mas talvez aquele passo em falso, tivesse sido sua salvação.

 

Praça de Salem – 12:13.

O trote furioso de um cavalo foi ouvido pela multidão, que por segundos desviou os olhos de Aeleen para ver uma figura encapuzada, vestido uma capa escura saltar do cavalo para o palanque, e acertar a corda da forca com uma lâmina afiada antes que ela fosse completamente esticada tirando a vida de Aeleen.

A jovem loira caiu ao chão, sem equilíbrio o suficiente devido a suas mãos estarem amarradas. Uma mão forte lhe puxou para cima novamente, enquanto alguns chutes furiosos repeliam os capangas do magistrado.

O ser encapuzado arrancou a corda que prendia as mãos de Aeleen, e lhe empurrou para a direção do cavalo lhe fazendo montar, enquanto numa posição defensiva, apontava uma espada para os demais. Em seguida montou também batendo as botas surradas nos flancos do animal que saiu num galope louco abandonando um religioso furioso, uma víbora chorosa e uma multidão sádica insaciada.