Existem pequenas momentos na vida que nos marcam mais fundo que a história de toda a humanidade. Muitas vezes, esses pequenos lapsos de tempo nos deixam mais fortes e aptos a encarar a realidade, por pior que ela nos pareça.

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“Oh no I just keep on falling(Back to the same old)

Where’s hope when misery comes crawling?

(Oh, oh way hey)

With your faith you’ll trigger a landslide(victory)

Kill off this common sense of mind

 It takes aqcuired minds to taste to taste to taste

this wineYou can’t down it with your eyes

So we don’t need the headlines

We don’t need the headlines

We just want…” [Born For This]

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Naquele dia fui eu quem acordou primeiro. Era impressionante como isso vinha acontecendo com maior freqüência. Não precisei olhar para o lado para verificar se ela estava dormindo. Eu simplesmente sabia, ou melhor, sentia. A mão dela estava sobre a minha barriga, apesar de estarmos um pouco longe uma da outra. “Até dormindo ela é espaçosa!”, eu pensei e isso provocou um leve sorriso em meu rosto.Concentrei-me na energia que passava da palma dela para o meu corpo. Então, foi como se minha coragem aumentasse e isso produziu um arrepio em minha espinha, como se tivessem tirado parte do peso que a espremia. Entretanto, eu tinha consciência que o resto ainda estava lá e isso era o bastante para me sufocar.Direcionei minha atenção para ela novamente. Mesmo ela estando dormindo, eu podia sentir que estávamos mais perto uma da outra do que jamais estivemos nos últimos tempos. E eu sabia que a culpada disso era eu. Ouvi sua respiração ritmada e, por uma fração de segundo compreendi que podia contar com alguém de novo. Mas isso foi por muito pouco tempo, a treva dentro de mim não me permitia muitos segundos de luz.

Sim, eu ainda sentia dentro de mim todas as apreensões que vinham me atormentando, todo o sangue derramado. E para quê? Para nada! Era como se o destino estivesse nos levando a um caminho do qual não podíamos voltar. Hoje sei que estava certa, pois foi exatamente isso que aconteceu.

Virei-me suavemente para não acordá-la. A mão dela estava na minha cintura. Perdi alguns segundos contemplando suas feições. “Oh, deuses” – eu pensei – “Não acredito que ainda sinto esse deslumbramento por dormir e acordar do seu lado, do lado da pessoa que eu mais admirei na vida!”.

Detive-me nas partes do rosto dela de que eu mais gostava: aqueles olhos, mesmo fechados, me fascinavam. Sua boca transformada naquele sorriso maravilhoso.

Nunca disse isso a ela, mas havia momentos nas lutas em que um sorriso magnífico brotava em seus lábios. Um sorriso que dizia que por mais que tudo estivesse difícil, uma hora ia melhorar. Uma expressão que me enchia de mim mesma, me dava forças e mostrava que alguém realmente acreditava em mim. Nesses momentos eu perdia a atenção por alguns segundos e, esses pequenos lapsos de distração me rendiam vários hematomas.

É estranho eu nunca ter falado nada para ela, já que sempre era eu quem abria o meu coração a qualquer momento. Era tão bom ter alguém com quem dividir as minhas coisas, uma pessoa que me compreendia e despertava o melhor de mim.

Olhando-a, me lembrei de como no início eu costumava fingir que dormia. Oh, como a pequena barda tinha segredos! Sim, também nunca tinha contado isso a ela… Na verdade eu mentia porque eu tinha consciência que ela só se permitia adormecer depois que eu estivesse dormindo profundamente. Lembro-me das centenas de vezes que fingi dormir para que ela descansasse.

Enquanto ela dormia eu ficava olhando-a e, podia ficar assim por horas…Ficava imaginando como teria sido a minha vida se eu não tivesse seguido aquela guerreira.

Lembrei-me dela dizendo que adorava ver os sol batendo no meu cabelo, porém vendo-a daquele jeito, dormindo tranqüilamente com o vento sacudindo levemente sua franja, não consegui entender como o meu cabelo podia se comparar àquela visão.

Naquele dia, quando olhei para o rosto dela banhado pelos primeiros raios de sol, a sensação de que apesar dos erros tudo tinha dado certo me inundou. Meu corpo foi tomado pela afeição que eu sentia por aquela mulher que representava a parte mais importante de mim. Concentrei-me naquela onda de ternura tão sublime e inebriante.

Eu que sempre escrevi muito sobre Xena, a guerreira, me tornara incapaz de encontrar uma palavra que definisse tudo aquilo. Instintivamente pensei em amor… mas não, já havíamos deixado isso para trás há muito tempo. Era tudo tão maior, depois de tudo que passamos juntas… Subitamente me lembrei da quantidade de pessoas que nos perguntavam se éramos amantes. No início, nós respondíamos que não, mas elas não acreditavam ou não entendiam. Então simplesmente paramos de responder. Se elas não acreditavam, não podíamos fazer nada e, acho que por muito tempo nem nós compreendemos. Como se pode gostar tanto de alguém, sentir que se precisa dessa pessoa para respirar? E, se isso acontece, como definir? Não, mas amantes não. Sempre estivemos um passo à frente disso. Nossa união era divina, além de tudo e todos, talvez mais sobrenatural que a própria essência dos deuses. Na verdade nunca entendi os humanos por pensarem que o amor se restringe à família ou ao físico. Com Xena aprendi que existem sentimentos muito maiores, e que dependem mais do espírito do que do resto. Com ela nunca tive dúvidas sobre o que sentia, eu sempre soube que devíamos permanecer juntas, evoluindo, crescendo, aprendendo uma com a outra.

Vez por outra, me passava pela cabeça que um dia nossas almas se uniriam em uma só, e aí sim o plano reservado para nós se cumpriria…

Eu sei disso tudo porque compreendo o amor terreno – sim, acho que está certo chamar assim…-, foi esse sentimento que me fez casar com Pérdicas e quase me perder na dor quando ele se foi. Sei que Xena também o reconhece, pois já passou por isso. Mas às vezes isso parecia tão distante de Xena e eu… como se fosse em outra vidas.

De repente ela se mexeu e eu prendi a respiração interrompendo meus pensamentos. “Será que eu a tinha acordado?”- pensei. Não, ela apenas chegou mais perto. Tão perto que eu podia sentir a sua respiração na minha testa. A mão dela ainda estava envolvendo minha cintura suavemente, mas agora parecia mais presente, como se passasse segurança.

“Por que era tão difícil dizer o que enchia meu coração?”, me perguntei, notando um arrepio frio corroer meu estômago. Antes não era assim, eu simplesmente falava ou então via que ela lia a verdade nos meus olhos. Mas isso me pareceu enterrado num passado tão remoto quanto o início dos tempos. Naquele momento eu me perdia em mim mesma tentando esconder meus medos e apreensões. O problema, eu sabia, era que isso me distanciava cada vez mais da pessoa que eu mais amava na vida e me levava para longe de tudo que nós duas tínhamos conquistado juntas.

Eu a via se aproximar todos os dias, tentando me encontrar e, eu simplesmente velava tudo que sentia. Não era que eu quisesse esconder as coisas, apenas não queria que ela ficasse todo o tempo me sondando ou então controlando seus atos para não me magoar. Eu me sentia tão terrivelmente cansada de ser aquela garotinha para todo mundo…

Eu realmente não queria que ela mudasse. Desde o começo, eu sempre soube qual era a essência dela. E era aquela pessoa que tinha me conquistado. Essa pessoa que eu quis seguir. Cada vez que ela mudava os planos para tentar me defender… bom, isso me matava por dentro. Doía saber que ainda precisava ser protegida, mesmo depois de termos passado o inferno juntas, nesse caso literalmente. Entretanto, havia vezes em que tudo o que eu queria eram aqueles braços me isolando de tudo que pudesse trazer dor ou sofrimento…

Oh, os meus pensamentos eram tão contraditórios! Assim como não queria que me defendesse, em alguns momentos eu tinha tanto medo de tudo que acontecia… E esse temor me gelava os ossos, envenenava meu sangue, me deixava exatamente como estava. Era como se algo ruim estivesse nos espreitando o tempo todo.

Ouvi vagamente os sons da floresta acordando e resolvi não pensar mais em coisas más. Fechei os olhos e me concentrei na respiração dela no meu rosto.

“Dez dinares por seus pensamentos”, escutei a voz dela dizer próxima a mim. Meu coração acelerou ao ouvi-la. O que eu faria?

“Estava pensando quando você acordaria pra levantar de cima do meu cabelo!”, escutei a minha boca libertar aquelas palavras tão sarcásticas. Elas queimavam meus lábios, mas eu não consegui barrá-las. Até hoje me pergunto porque não disse a verdade. A mentira era tão óbvia, já que o meu cabelo era curto demais para dar sustentação ao argumento. Acho que tudo o que eu queria era que ela perguntasse o que estava havendo… Claro que isso resultaria em uma briga, mas ultimamente o momento que eu me sentia mais próxima dela era quando discutíamos. Ela me ouvia xingá-la, mas o que eu dizia na verdade era: “Me ajude, por favor… me prenda em seus braços, me faça esquecer…”.

No entanto ela apenas riu, apesar da minha falta de educação e disse: “Ta, eu levanto, mas você vai ter que admitir que estava pensando em levantar e fazer um café maravilhoso para sua melhor amiga!”.

Ainda de olhos fechados, senti-a retirar a mão da minha cintura e levantar. Virei-me de costas para ela incapaz de olhá-la. Uma lágrima escorreu do meu olho direito.

“Gabrielle…”, ouvi a voz dela pronunciar meu nome. Ela estava preocupada e, isso definitivamente não me ajudava…

Senti-me imensamente egoísta ao pensar isso. Sentei-me e com o canto dos olhos fiquei olhando-a arrumar as armas. Ela estava de costas e, isso era ótimo, pois eu não tinha coragem para mergulhar no azul profundo do olhar dela.

“Xena… eu…”, balbuciei entre uma lágrima quente que teimou em descer por meu rosto. Nem notei que ela tinha voltado e estava à minha frente.

“Eu sei como você se sente…”, ela disse, se ajoelhando à minha frente e secando uma lágrima que já alcançava o meu queixo.

“Mas eu queria poder te contar…”, eu ainda não conseguia olhar os lindos olhos dela.

“Não precisa, eu entendo…”, ela disse com a voz embargada. Em seguida passou delicadamente a mão no meu rosto, secando cada um dos meus olhos molhados.

Deuses, ela estava tão perto de mim, e isso tornava tudo tão mais difícil! Uma parte de mim realmente queria ser confortada, deixar que a amizade dela curasse minhas feridas, mas outra gritava dizendo que eu não podia deixar o peso de resolver todos os meus problemas sobre os ombros dela. Tive de me afastar, a minha vontade estava fraquejando. Levantei-me, tirando meu rosto das mãos dela. Fui para o outro lado da clareira. Os pensamentos me vinham em turbilhão, várias cenas me passavam pela cabeça. Uma raiva sem sentido me envolveu naquele momento. “Ela diz que sabe, mas não tem como saber. Ela pensa que sabe tudo, tudo! E eu… eu me sinto tão perdida… como se…”.

“… como se algo dentro de você estivesse quebrado e nada no mundo pudesse colar!”, disse ela, ainda no lugar onde estávamos antes.  Eu não sabia o que dizer, ela tinha falado exatamente o que eu estava pensando, como se soubesse realmente…

“O quê…”, foi só o que consegui externar.

“Eu sei que é assim, pois era o modo como eu me sentia antes de você chegar e colar todos os meus pedaços!”. A voz dela estava pesada de emoção e eu percebi que ela vinha na minha direção.

Tive de me controlar para barrar as lágrimas que teimavam em encharcar meus olhos.

Ela veio por trás de mim e passou o braço direito em volta da minha cintura e outro envolveu meus ombros. Era como se ela quisesse me segurar para eu não fugir – e era justamente isso que eu queria fazer, fugir, correr e correr até que tudo sumisse.

“Por favor, me deixe fazer isso por você agora!”, ela sussurrou no meu ouvido, pouco antes de me virar suavemente de modo que ficasse de frente para ela. Seus braços envolviam minhas costas de um modo firme, como se fossem um muro me isolando de tudo ao redor. De repente apenas havia nós duas. Eu olhava para o chão. Ela levantou meu rosto para que eu olhasse em seus olhos e, eu vi que havia lágrimas neles.

“Me mata ver que não consigo te alcançar!”, disse e em seguida encostou os lábios em minha testa. Na hora percebi que aquilo demonstrava o quanto ela queria me ajudar. Percebi que ela tentava me passar assim tudo o que não conseguia expressar com palavras. Senti o tamanho da afeição que transbordava daquele gesto. Ao mesmo tempo, notei o medo no tremor dos lábios dela. Como não percebi antes? Eu tinha tornado tudo tão difícil para ela e agora ela estava ali, disposta a dividir minha dor, entregue em alma para me tirar das trevas.

“Me deixe tirar esse peso de você!”, eu a ouvi dizer ainda com os lábios colados em mim. A voz dela estava tão cheia de angústia que não consegui dizer nada.

Em seguida me abraçou forte, nossos bustos estavam tão intensamente colados que pareciam ser um só. Meu coração batia descompassado, o dela levemente exaltado, mas se controlando para que o meu também o fizesse. Então a sensação de frio que me acompanhava desde aquela tempestade no deserto sumiu.  Não havia som, luz, nada. Apenas nossos corações que começaram a bater no mesmo ritmo.

“Por favor,…”, sussurrou no meu ouvido e eu não consegui mais resistir. Permiti que me levasse de volta aos cobertores onde havíamos dormido. Eu nem sentia que caminhava, era como se eu fosse carregada por forças invisíveis. A mim demorou uma eternidade para atravessar aquela clareira. Eu queria tanto chegar!

Ela deitou-se nos cobertores, sempre segurando minha mão entre as suas.

Eu podia ouvir os sons dos pássaros enquanto deitava e me aconchegava no peito dela.

A pele quente em contato com o meu rosto e o seu toque carinhoso nos meus cabelos me deram forças e, pela primeira vez em muito tempo, me permiti ser sincera comigo mesma. Aos poucos as lágrimas iam escorrendo pelo meu rosto e caindo no colo dela. Elas passavam por mim lavando toda a minha culpa, dor…medo. Chorei por muito tempo. Ela não disse nada, nem eu, apenas ficamos abraçadas enquanto toda a dor do meu coração finalmente saía de mim. Não dissemos nada, mas foi nossa melhor conversa em anos.

Até hoje, quando não consigo me desvencilhar da dor de não tê-la mais ao meu lado, eu lembro daquele abraço e me sinto em casa de novo.

Por muito tempo apenas isso me deu forças para prosseguir.

Do pergaminho secreto de Gabrielle