Capítulo 14: Como ferve o cérebro dos amantes e dos loucos
por Fator X - LegadoPela primeira vez em dez estações, Sylla não me despertou pela manhã e pela primeira vez em outras tantas estações, eu não despertei antes do amanhecer. Quando por fim me livrei do sono que me sujeitava em suas tênues garras, fiquei contemplando o elevado teto. Ainda que as tapeçarias tampassem as janelas, dei-me conta, pela luz que se filtrava pelas bordas dos pesados panos, que a manhã já estava muito avançada. Outra coisa que notei foi a batida do coração que palpitava contra meu peito. Não era meu próprio coração, senão o da pequena loira, cujo corpo estava jogado em cima do meu. Que maneira tão agradável de despertar, pensei.
Sorri; um sorriso amplo e preguiçoso enquanto escutava o suave ressonar de Gabrielle ao dormir. Pelos deuses, quem pensaria que algo assim me resultaria agradável? Minha jovem escrava dormia profundamente, coisa que normalmente não fazia, mas estava certa de que os feitos da noite passada e da madrugada eram o motivo. Soltei-me com cuidado e rolei Gabrielle para o lado; um leve murmúrio de protesto escapou de seus lábios enquanto continuava dormindo. Levantei-me e coloquei entre seus braços o travesseiro ainda quente onde descansei minha cabeça. De novo se ouviu um suave gemido, mas desta vez ouvi as palavras que roubaram meu fôlego.
– Mmmm, Xena. – sussurrou baixinho.
Beijei sua testa e me apressei a vestir a mesma roupa do dia anterior. Depois passei os longos dedos pelo cabelo e pensei que ao menos estava suficientemente apresentável para descer às cozinhas. Tinha fome, mas o que mais me intrigava era por que Sylla não aparecera pela manhã para me despertar.
Esquivei-me de uns quantos ajudantes de cozinha, com os braços carregados de pratos, e quando segurei a porta aberta para que passasse a mais baixinha das três, esta me olhou como se fosse uma aparição. Por Hades, um olhar assim baixaria o humor de qualquer um.
– Tudo bem, menina, passa. – obriguei-me a dizer amavelmente.
– Muito obrigada, Senhora Conquistadora. – respondeu, passando pela porta a toda velocidade. Seus olhos não se afastavam dos meus. Não sabia se tinha tanta pressa por tudo o que levava nos braços ou se queria apenas afastar-se de mim.
Dei-me conta de que ainda que fizesse quase cinco estações que não atacava uma mulher, minha reputação continuava precedendo-me. Certamente a coisa não melhorou porque me tornei tão monarca que não apenas nunca visitava algumas partes do castelo, como que raramente sabia se alguém trabalhava para mim ou não. Não conhecia ninguém em minha própria casa. O pensamento me fez tomar a decisão de mudar essa situação. Não sabia como, mas tentaria. Perguntaria para Gabrielle. O pensamento escapou sem mais. Pedir conselho a minha escrava sobre como governar? Não, respondi a mim mesma – Perguntar sobre como conhecer as pessoas. Gabrielle parecia saber muito sobre as pessoas, parecia compreendê-las, assim como os sentimentos que as impulsionam.
Ao entrar na pequena cozinha particular que era o domínio de Delia, alegrei-me de ver a mulher mais velha que estava muito atarefada trabalhando uma massa em cima de uma grade lousa de pedra.
– Bem, bem, bom dia, Senhora Conquistadora. Como está hoje? – disse-me afastando do rosto uma mecha solta do cabelo com o antebraço, pois tinha as mãos cobertas de farinha.
– Sylla está doente? – perguntei rapidamente.
Olhou-me com um sorriso cansado e balançou a cabeça.
– Bom dia Delia, estou muito bem, e você? – disse a mulher falando ao ar.
Não pude evitar sorrir, como uma criança que tivessem apanhado roubando um bolo a mais da bandeja.
– Desculpa. Bom dia Delia. Estou bem, obrigada.
– Alegro-me muito de ouvir isso. – continuou amassando, jogando mais farinha na mistura. – Suponho que tenha descido porque tem fome, não?
– Sim, é a verdade. Por que Sylla não me despertou? Está bem?
– Sylla está bem, não se preocupe. – contestou.
– Deuses! Não esqueci seu aniversário ou algo assim, não? – devaneei de repente e pensei que Sylla celebrava algo mais perto do solstício de verão.
– Não, não está doente e nem se esqueceu de seu aniversário. Disse-lhe para que não a despertasse esta manhã.
– Você? – repliquei confusa. – Não entendo.
– Sylla desceu como sempre para recolher seu desjejum e disse que continuava dormindo. Também comentou que estava tão gracinha…
– Diga que minha donzela não me chamou de gracinha. – disse com um olhar fulminante.
– Não. – disse Delia rindo. – Isso fui eu que acrescentei.
– Nisso sim acredito… Continue, depois do gracinha. – a adverti.
– Bem, ela achou estranho que continuasse profundamente adormecida quando já havia saído o sol. Então um dos guardas lhe disse que as velas estiveram acesas em seus aposentos até o amanhecer. Fui eu quem lhe disse que a deixasse em paz. Pensei que sua Gabrielle e você tivessem dormido muito tarde. – se virou e piscou um olho.
A expressão de meu rosto deve ter lhe dito algo, porque enrugou a testa, preocupada.
– Sente-se Xena, parece mais que cansada – disse, empurrando-me até a banqueta alta que estava sempre colocada junto ao fogo. – Está doente? Gabrielle está bem?
– Não estou certa. Sei apenas que eu não estou bem. – contestei.
Delia lavou as mãos e me serviu uma caneca de chá, obrigando-me a rodear a caneca com os dedos, e sentou-se diante de mim.
– Bebe isto, se sentirá melhor.
Havia algo muito maternal nesse gesto e senti que reagia a seu afeto.
Gostei do sabor de menta da infusão e não demorei a contar-lhe tudo o que ocorrera na noite anterior. Tudo saiu tão de sopetão e desordenado, o que havia acontecido de verdade misturado com o que sentia por minha jovem escrava, que quando terminei, estava certa de Delia não tinha a menor idéia do que estava ocorrendo.
Quando levantei o olhar de minha caneca, vi que sorria.
– Xena – disse suavemente – Não precisa dar tantas voltas. Está apaixonada, isso é tudo.
Fiquei olhando-a.
Era essa a confirmação que esperava ou o fato de que estava esforçando-me tanto por negar? Corri meus dedos pelo cabelo, levantei-me e me pus a dar voltas muito agitada.
– Delia! Os amos não se apaixonam por seus escravos. – disse categoricamente.
– Bem, nisso tem razão. Mas isso se resolve facilmente. – expôs.
Neguei-me a responder, ainda que sentisse literalmente o peso de seu olhar à espera de uma resposta. Continuei dando voltas até que a ouvi suspirar.
– Tem pensado em corrigir isso, não Xena?
Ouvir Delia usar meu nome próprio… Isso sempre havia nivelado um pouco mais o terreno de disputa entre nós. Na realidade, o igualava sobejamente. A mulher mais velha o usava somente em algumas ocasiões, mas parecia mais velha que os dez verões que tinha sobre mim. Suponho que me sentia assim pelo ar maternal que tinha sempre. Agora, mais que nunca, vi aparecer a anciã que trazia dentro. Estava me perguntando se eu pretendia dar para Gabrielle a sua liberdade. Era tão incapaz de ocultar a verdade de Delia como de ocultá-la de mim mesma.
– Se lhe dou a liberdade… Partirá. – disse hesitando.
– Por que pensa isso? – respondeu.
– Por quê? – repeti, dando voltas outra vez, com uma sensação de queimação na boca do estômago. – Sequer você ficaria com alguém como eu se pudesse escolher, nenhuma mulher o faria. – gritei.
– Faria se estivesse apaixonada por você. – replicou baixinho. – Gabrielle está tão apaixonada por você como você por ela.
Fiquei imóvel, sem deixar de me perguntar a mesma coisa. De costas para a mulher mais velha estou certa de que parecia uma criança pequena e assustada. Bem sabem os deuses que assim era como me sentia.
– Acredita de verdade nisso, Delia? – perguntei.
– Xena, senta aqui. – indicou-me a banqueta de novo. – Agora me olhe nos olhos e diga que não sente isso. Bendita seja Athena, você dorme com essa mulher. Quando a toca, não sente suas carícias diferentes de qualquer outra que já experimentou em sua vida?
– Para mim sim, mas como sei se Gabrielle sente o mesmo?
– Não disse que disse para ela e ela disse para você? – respondeu-me Delia. Percebi que estava confundindo a mulher.
– Bem… Mais ou menos… De certo modo…
– Xena, disse para a jovem que a ama, sim ou não?
– Bem… Não com essas palavras… Exatamente.
– Com que palavras… Exatamente? – perguntou Delia, cruzando os braços sobre o peito.
– Bem… Disse-lhe que sentia… Mais. – respondi. Começava a me sentir novamente como esse colegial estúpido.
– Mais o que?
– Apenas… Mais. – terminei sem olhar para seus olhos.
– E ela o que disse sobre isso? – perguntou Delia. Estou certa de que a estas alturas estava surpresa de que levasse quarenta e quatro estações cuidando de mim mesma sem nenhum incidente.
– Disse que também sentia mais.
Delia colocou a cabeça entre as mãos e não sei se estava rindo ou chorando. Levantei-me da banqueta de um salto e continuei dando voltas agitadamente. Sentia-me envergonhada e irritada por tentar fazer com que essa mulher entendesse.
– Não sei fazer melhor que isso! – quase gritei. – Eu… – parei de repente, convencida de que começaria a chorar de frustração. Ah, claro, agora começo a chorar! Baixei a cabeça, com as mãos no quadril, e com a voz entrecortada, tentei continuar. – Não posso… Não sei como…
– Não sabe… O que lhe dizer? – perguntou Delia num tom compreensivo.
Voltei ao meu assento e sentei pesadamente. Pude responder apenas assentindo com a cabeça.
– Deveria saber. – contestei por fim.
Delia fez algo que jamais esperei desta mulher mais velha. Pegou minhas mãos entre as suas, pequenas e gorduchas, e as apertou suavemente até que levantei o rosto para olhar em seus olhos.
– Xena, como poderia saber? Nunca se sentiu assim antes, nunca teve ninguém que lhe ensinasse o que dizer. É muito dura consigo mesma. É compreensível que por não ter ninguém por perto que a ensinasse a amar, não teve o exemplo e a educação que a maioria das pessoas recebe. – terminou.
– Isso também é minha culpa. Passei toda a vida…
– Nem o mencione, minha amiga. – repreendeu-me Delia. – Quer de verdade compadecer-se de si mesma? Certo, passou toda a vida fazendo… O que? Vejamos, assassinando, violando, dando surras, roubando… Certo?
Olhei-a com um sorriso irônico. Juro que somente Delia e Gabrielle são capazes de fazer que me sinta assim.
– Sim, obrigada, já me sinto muito melhor. – respondi.
Delia começou a rir e apertou levemente minhas mãos.
– Xena, dizer para Gabrielle que a ama pode ser a coisa mais fácil do mundo. Tudo o que tem a fazer é deixar de analisar tanto tudo e olhar dentro de seu coração. Olhe aí dentro e diga o que sente; o que vê que há entre as duas.
– Quando tento fazer isso, o cérebro congela e sinto a língua como do tamanho de uma pedra. – confessei. – Pareço uma idiota.
– Certo, pode ser que pra você soe um pouco estranho e pode ser que balbucie um pouco, mas lhe asseguro, quando declarar seu amor, pode ser que pra você pareça que quem fale é Xena a Conquistadora, mas Gabrielle ouvirá apenas os líricos poemas de amor de Íbico. – assegurou-me Delia.
– E se ela não sente o mesmo que eu? – perguntei por fim.
– Aí tem a questão que mais enlouquece os amantes que qualquer outra coisa. Tudo o que posso lhe dizer Xena, é que a verdade do amor é uma arma poderosa. Você mais que ninguém deveria saber o valor de uma boa arma. Tem o poder de salvar ou destruir, tudo depende de como a utilize. De vez em quando alguns de nós, muito poucos, chegamos a um ponto de nossa vida em que encontramos algo pelo qual vale a pena arriscar tudo. Somente você pode decidir se amar Gabrielle será aquilo pelo qual lance os dados.
– E se me pede que a liberte? – perguntei, ainda que no fundo de meu coração, já sabia a resposta de Delia.
– Isso, Senhora Conquistadora, é uma decisão que terá de tomar só. Quero apenas acrescentar que não pode iniciar uma relação entre iguais baseada em uma desigualdade. Não é?
Sorri com tristeza, pensando agora em tudo o que tínhamos que conversar Gabrielle e eu. Ao pensar em Gabrielle me lembrei de algo.
– Por Hades! – levantei-me rapidamente. – Eu vim buscar o desjejum para Gabrielle.
– Pelos deuses, com o que come essa jovem e ainda não a alimentou? Melhor que seja um almoço. – responde Delia, movendo-se de repente por toda a pequena sala para encher uma bandeja de comida.
Quando saía da cozinha, com os braços carregados com uma bandeja de prata até em cima de comida e bebida, parei e me virei.
– Obrigada, minha amiga. Pergunto-me se Galen sabia o quão afortunado era por tê-la encontrado. – disse a Delia.
– Não há de que, Senhora Conquistadora. – disse, virando-se de cara para o fogo. – Sinto saudade daquele velho soldado. – acrescentou em voz baixa quando cruzei a porta.
*****
Tentei passar pela porta de minha sala exterior sem fazer ruído, com pouco êxito, pois uma das travessas de prata caiu no chão com todo o estrépito.
Gabrielle levantou de um salto dos almofadões onde estava sentada junto à porta aberta da varanda.
– Oi, pensei que podia ter tanta fome como eu, então trouxe o almoço. – expliquei, sorrindo sem jeito por minha estupidez.
– Achei… – Gabrielle não terminou o pensamento e percebi um tom de apreensão em sua voz e a expressão tensa em seu rosto.
– Oh, Gabrielle, não… Apenas fui buscar algo para comermos. – expliquei, depositando a bandeja na mesa.
Puxei-a para um abraço e a segurei, descansando o queixo em sua cabeça. Ergui seu rosto até que vi seus reluzentes olhos de esmeralda e me abaixei para beijá-la. Tentei acalmar seus temores e convencê-la de que era sincera com esse beijo.
– Acredita em mim? – perguntei, afastando-me para olhá-la.
Suas bochechas afogueadas me fizeram sorrir e assentiu com a cabeça.
– Tem fome?
Assentiu novamente com mais entusiasmo ainda e nos separamos para sentarmos à mesa.
Comemos com estranhos intervalos de silêncio. Uma dizia algo bobo, como um comentário sobre o tempo, e então conversávamos um pouco sobre esse tema, até que pouco a pouco voltava a fazer um silêncio constrangedor. Imaginava que tínhamos as mesmas coisas na cabeça. Por fim, terminamos de comer e fiquei sem desculpas, já não mais podia adiar o inevitável. Havia chegado o momento de fazer algo que levava quase quarenta e cinco estações evitando como a febre dos pântanos. Estava prestes a abrir meu coração e falar.
– Gabrielle…
– Minha senhora…
Começamos ao mesmo tempo.
– Gabrielle, eu acho que, devido às circunstâncias, poderia me chamar Xena, o tempo todo. Quero dizer, ao menos enquanto estivermos sós. Com certeza não pegaria bem aí fora… – acrescentei este último a toda pressa, pois ainda não estava preparada para que me chamasse assim diante de meus homens.
– Não sei se… Tem certeza? – perguntou.
– Sim, tenho. – respondi com um sorriso nervoso. – Queria dizer algo?
– Por favor, você primeiro. – respondeu.
– Huh? – me pegou um pouco desprevenida, pois estava pensando que talvez pudesse por minhas idéias em ordem enquanto Gabrielle falava. Agora, a luz da tocha caía diretamente sobre mim.
– Disse que tinha algo para dizer? – instou Gabrielle delicadamente.
– Sim… Sim, é verdade. – minhas mãos começaram a suar e me perguntei por que a ninguém havia ocorrido a idéia de formar um exército de jovens como esta. Deixam-na sem alento, arrebatam seus pensamentos, privam-na da capacidade de se mover e praticamente a impossibilitam de realizar qualquer atividade. Ninguém as deteria e, enquanto estava tomando nota mental para falar com alguém sobre este plano, Gabrielle me tirou de minhas absurdas reflexões.
– Xena?
– Ah, sim… Bem, pois… Gabrielle, eu… – me salvei por uma batida na porta exterior. – Verei quem é. – disse, levantando-me rapidamente para atravessar a sala.
Era Sylla, que vinha recolher os pratos sujos. A jovem foi mais rápida do que pensei e pouco depois estava passeando pela sala, decidida a dar a Gabrielle pelo menos uma idéia do que sentia por ela.
– Gabrielle… – comecei de novo, talvez pela quinta vez, retrocedendo devagar até que senti a parede contra minhas costas.
Gabrielle esperava sentada, com muita paciência, devo acrescentar e com uma expressão um pouco perplexa. Comecei a acariciar nervosamente a mesma tapeçaria pendurada na parede. Pelos deuses, a coisa ficaria totalmente desfiada antes do inverno se continuasse assim. Estive a ponto de dar uma palmada em minha mão para deter o gesto nervoso de puxar os fios soltos.
– Gabrielle… Tenho que lhe dizer uma coisa. É… Bem, é sobre o que… – desta vez chamaram com mais força à porta. – Pelas tetas de Hera! – exclamei e Gabrielle soltou um risinho.
– Agora eu vou. – disse.
Quando regressou, meu guarda Nicos vinha com ela.
– Perdoe a interrupção, Senhora Conquistadora, mas disse que devia apresentar-me diante de vós assim que voltasse. Tenho a informação que queria. – disse Nicos, em posição firme todo o tempo.
– Trouxe-os com você? – perguntei enigmática.
– Sim, Senhora Conquistadora. – replicou Nicos com um sorriso malicioso. – O capitão Atrius está com eles neste momento. Aguarda vossas ordens.
– Excelente Nicos, muito bom trabalho. Diga ao capitão que desço agora mesmo e depois vá comer algo e descansar. – apertei o único braço do soldado com um cumprimento de guerreiro e senti que o homem se erguia um pouco mais, pois os motivos de orgulho tinham sido escassos para ele nas últimas estações.
Quando Nicos se foi, entrei em meu quarto. Abri o baú, tirei minhas armas de seu lugar habitual e as coloquei nos pontos apropriados. Ao levantar a vista, de repente vi que Gabrielle me observava em silêncio. Por Hades, me esqueci de algo, não?
– Gabrielle, eu tenho algo importante para falar com você, mas isso é algo de que tenho de me ocupar imediatamente. Compreende?
Sorriu e senti um alívio instantâneo.
– Sim, Xena, eu compreendo perfeitamente.
– Não tenho nem a mais remota idéia de quando terminarei. Mas não tem porque ficar aqui esperando. – passei o braço por seus ombros e ela rodeou minha cintura com o seu enquanto nos dirigíamos à porta. O gesto foi totalmente involuntário e parecia absolutamente natural.
– Pois então verei Anya. – disse.
Beijei seus lábios e senti que sorria contra minha pele e sorri do mesmo modo. Quando finalmente saí do quarto e desci pelo corredor iluminado por tochas, toquei os lábios com os dedos. Sabia que estava sorrindo como uma idiota, mas era uma sensação física curiosíssima. Meus lábios literalmente formigavam depois de ter beijado Gabrielle. Sabia que assim que me livrasse dos próximos momentos desagradáveis, procuraria Gabrielle e lhe diria que estava verdadeiramente apaixonada por ela.
*****
– Olha, olha… Kassandros. Teria que ter imaginado. – disse assim que entrei na pequena sala onde Atrius mantinha os prisioneiros.
Acorrentados, os quatro homens tinha um ar abatido e desalinhado. Se não os conhecesse, poderiam ter passado por camponeses ou simples viajantes. Mas os conhecia muito bem. Callius, o capitão de minha frota, havia me dado seus nomes, todos e de cada um deles, enquanto seu sangue se derramava sobre minhas mãos. Os traiu com um sussurro agonizante, sem se incomodar de levar seus nomes ao Hades com ele.
Assim que descobri a traição, ordenei a Atrius que não prendesse meu administrador Demetri. Sabia que se pensasse que não ficara implicado no assunto do comércio ilegal de escravos, quando matei Callius, acabaria por assumir o papel do capitão para dirigir todo o esquema. Enviei Nicos com dois esquadrões de homens para capturar os demais implicados sem chamar a atenção. Deixei que Demetri continuasse pensando que não estava sabendo de suas atividades, até que tivesse todos os seus sócios bem presos e ao meu alcance.
Sequer me surpreendi quando o nome de Kassandros foi o primeiro que escapou dos lábios do capitão agonizante. Era um dos governadores eleitos por mim, instalado em uma das províncias do norte da Macedônia. Acho que foi um momento de nostalgia o que me levou a elegê-lo; isso ou a culpa. Matara seu pai, Antípatro, regente da Macedônia. Depois que matei Alexandre, seu regente Antíparo não foi problema. Depois dessa campanha tomei o controle da Macedônia e comecei a expandir para o exterior as zonas que conquistei, até que a maioria dos impérios estrangeiros que circulavam o mar Egeu ficou sob meu controle.
Ao que parece, Kassandros tinha bandos de mercenários que sequestravam jovenzinhas e as vendiam em Amphipolis, Abdera e Potidaea. As jovens eram filhas de homens livres, mas isso não importava aos traficantes de escravos. Coisa que me espantou recentemente, a maioria das escravas acabava chegando a Corinto e aos numerosos leilões da grande cidade.
Foi preciso uma grande dose de paciência, compreensão e tempo para averiguar toda a história das meninas que resgatei aquele dia no cais. Pedi a Delia que me ajudasse e as meninas não demoraram em superar o trauma o suficiente para confiarem na afetuosa anciã. Agora, os homens responsáveis estavam diante de mim, não havia nada que desejasse mais que vê-los decapitados ou até crucificados no pátio do meu palácio. No entanto, não havia castigo suficiente que pudesse imaginar minha escura mente para fazê-los pagar. O que têm feito ao longo de sabem os deuses quantas estações enquanto eu governava não poderia jamais reparar, sequer com suas mortes. Para as jovens, as mulheres e suas famílias, ao menos seria um começo.
Rodeei os condenados para enfrentá-los.
– Bem, quem quer compartilhar seus segredos comigo?
Sorri; um sorriso do mais desagradável, como fazia tempo não utilizava. Três dos quatro homens, sentados e acorrentados diante de mim, se puseram a falar tão rápido que a besta dentro de mim se sentiu um pouco decepcionada ao ver que não a libertaria. O quarto homem ali sentado, silencioso e sarcástico, era Kassandros.
Enfim, ouvi tudo o que precisava. Francamente, fiquei um pouco surpresa. Nunca pensei que Demetri tivesse bolas para este tipo de esquema, mas acho que por isso se cercou de um grupo de indivíduos extremamente grosseiros. Era evidente, sobretudo pelo que dizia este bando, que Demetri era o cérebro e eles a força. Kassandros não disse uma palavra enquanto nos olhávamos firmemente um para o outro. Fiz os demais se calarem com um olhar iracundo e me coloquei diante do ex-governador. Acho que não gostou muito do meu sorriso de superioridade, porque contraiu os lábios com uma careta de desprezo e cuspiu em minhas botas.
– Oh, sim… Isso dói. – respondi zombando.
– Não pense que lhe darei a satisfação de me ouvir desembuchar as tripas como estes imbecis. Livre-me dessas correntes e lhe ensinarei do que é feito um autêntico guerreiro, puta hipócrita! – gritou.
Limitei-me a sorrir novamente. Levantando o olhar, apontei a dois guardas.
– Procurem Demetri e o prendam. Tragam-no aqui… Ou melhor, mete todos no calabouço. Acho que meu ex-administrador deveria começar a conhecer a gentalha com quem se associa a um nível mais pessoal.
Quando me virava para sair ouvi de novo a voz de Kassandros.
– Sabia que é fraca demais para aceitar meu desafio. – gritou, mas não lhe dei atenção e continuei avançando até a porta. – Sempre se deu ares com essa grande espada, mas aposto que não é nada sem armas. Toda a Grécia comenta que a puta da Conquistadora se deita com uma prostituta suja!
Fiquei paralizada, como se acabassem de me bater entre as omoplatas com um tijolo. Sequer era consciente de ter recordado essa sensação. O que disse sobre Gabrielle causou uma leve agitação, no mais fundo, nas profundezas de minha alma, senti que a besta abria caminho para a superfície.
– Senhora Conquistadora… – Atrius estava ao meu lado, mas fiquei olhando a porta, imóvel.
– Leve estes outros para uma cela, esse deixe aqui. – disse.
Alguns guardas arrastaram o resto dos prisioneiros às masmorras do palácio.
– Os demais… Fora! – ordenei e os homens saíram correndo da sala.
Tirei o cinto com a espada e o chakram pendurado do lado oposto. Envolvi com cuidado o conjunto de armas e me virei para entregá-lo a Atrius.
– Tire suas correntes e saia. – disse num tom monocórdico, consciente de que estava prestes a perder o controle da escuridão que começava a se apoderar de mim.
– Senhora Conquistadora, isto é uma insensatez. O homem vai morrer amanhã. – meu capitão tentava dissuadir-me de cometer esta temeridade, mas eu já não era mais capaz de ouvir ou raciocinar.
– Agora. – repeti.
Ouvi o estalo da porta quando Atrius a fechou de má vontade e então virei-me para enfrentar o homem que não era mais alto que eu.
– Agora – disse – Ensina-me do que é feito um autêntico guerreiro. – rosnei.
Sentia-me possuída quando tomei a decisão consciente de renunciar aos últimos vestígios de controle sobre a besta.
*****
– Mande dois homens arrastá-lo até uma cela. – disse para Atrius ao passar ao seu lado rumo a um barril baixo cheio de água. Lavei o sangue das mãos e fiz uma careta de dor ao dobrar os dedos. Pelos deuses, que mandíbula dura ele tem. Enxaguei o sangue da boca e toquei meu maxilar com cuidado, para comprovar se tinha algum dente solto. Dei muito mais do que recebi, mas não sairia da sala totalmente incólume.
Atrius me passou um pano seco, com uma cara que me dizia seu desgosto pelo que havia feito. Recuperei minhas armas e as cingi na cintura.
– Senhora Conquistadora, compreendo por que desevaja dar-lhe uma surra do Tártaro, o que não compreendo é por que se colocou em perigo dessa maneira e foi adiante. – Atrius estava com uma atitude protetora e não podia culpá-lo… Muito.
– Imagino que você mais que todos sabe por que tinha de fazê-lo. – contestei, jogando o pano longe.
Um sorriso torto e um grunhido, que interpretei como de acordo, foi tudo o que obtive do capitão.
– Senhora Conquistadora… – um jovem tenente se aproximou correndo. – Alguém deve ter avisado o senhor Demetri… Fugiu. Tenho dois esquadrões de homens verificando o palácio e outros quatro vasculhando a cidade.
– Pelas bolas de Ares. – murmurei baixinho. – Será que as coisas nunca podem dar certo? Está bem, provavelmente já fugiu da cidade, mas diga aos homens que continuem procurando, para o caso.
– Às ordens, Senhora Conquistadora. – respondeu e se foi a toda velocidade.
– Deuses, cada dia são mais jovens. Começo a sentir a idade. – disse queixosa a Atrius.
Meu capitão me olhou com ar consternado.
– Falando de idade, Senhora Conquistadora… Está comprometida com certo grupo de aspirantes a oficiais.
– E como Hades isso é possível? – resmunguei. Essas classes de treinamento estavam sempre cheias de dúzias de jovens soldados que aspiravam serem os primeiros a vencer-me com uma espada.
– Na verdade, Senhora Conquistadora, é que prometeu que hoje se reuniria com eles. Sua donzela pessoal me disse que estava um pouco… Indisposta esta manhã. – disse Atrius, com esse maldito brilho nos olhos.
– Já que lhe parece tão divertido, pode vir comigo e cobrir-me as costas. – disse sorrindo.
– Sim, Senhora Conquistadora. – mastigou entredentes.
Detive-me antes de continuar para sair do palácio. Sentia um calafrio que me subia pelas costas e que não sabia a que atribuir, mas não podia ignorar.
– Não acredita que Demetri seja tão estúpido de esconder-se aqui, não é?
– Se é esperto, a estas alturas já estará a caminho de Atenas. – contestou Atrius.
– Bem, nunca lhe atribuí uma grande inteligência, mas isso é o que faria um homem prudente. – respondi com um suspiro. – Bem, vamos… Ao campo de treinamento.
Meu capitão e eu empreendemos a marcha até o exterior, para mostrar aos jovens filhotes de cachorro o bem que continuavam mordendo dois velhos guerreiros. O que disse por último sobre Demetri era bem mais uma zombaria, mas uma coisa sim que era certo – fugir do palácio era o que um homem prudente faria. Por desgraça, nesse momento, meu administrador se equilibrava entre a prudência e a demência.
Enquanto me dirigia ao campo de treinamento, sequer me ocorreu pensar que minha Gabrielle pudesse estar em alguma parte, prestes a cair em uma armadilha.