Fanfics sobre Xena a Princesa Guerreira

Estou aqui deitada, acordada, enquanto a luz que antecede o amanhecer tenta entrar por trás das grossas tapeçarias que cobrem as janelas. Escuto a respiração regular e sinto as mínimas contrações dos músculos envolvidos no sono da mulher que está em meus braços. Aproveito este momento para agradecer aos deuses que ainda me favorecem, assombrada pela tolerância de Athena diante de minhas vinte estações de ausência de seu templo. Talvez me convenha aplacá-la um pouco, pois sei, com toda a certeza, de que somente o poder dos deuses pode ter unido Gabrielle e eu desta maneira.

Despertar à hora de sempre não foi mais difícil que de costume. Entretanto, não desejava de forma alguma deixar o lugar onde me encontrava nesse momento. Agora tinha uma razão para ficar e mandriar – a sensação do pequeno corpo de Gabrielle colado a mim me impelia a ficar aqui deitada, um pouquinho mais.

Ouvi Sylla na sala externa. Sem dúvida, estava recolhendo o caos que eu havia deixado para trás e que Gabrielle esteve muito ocupada para lembrar. Minha donzela decidiu que entrar no quarto para me despertar era uma tarefa muito íntima, agora que já não estava só. Sorri ao lembrar quantas vezes Sylla teve de levar a toda pressa uma rameira sonolenta de minha cama para que eu não tivesse que ver a mulher no dia seguinte. Pelos deuses, as coisas que tinha de aturar essa gente. Agradeci que Sylla mostrasse tanto respeito, não apenas por mim, mas também por Gabrielle. O motivo apagou o sorriso de meu rosto, substituída por uma carranca. Sylla se mostrava cortês para com Gabrielle porque já não a considerava uma escrava. Na realidade, muito poucas pessoas do palácio a viam assim. Quando as pessoas me falavam dela, chamavam-na de sua Gabrielle. Poderiam perfeitamente dizer sua escrava, mas ninguém o fazia. Ao que parece apenas uma pessoa ainda considerava Gabrielle uma escrava e essa pessoa era a própria Gabrielle.

É claro, eu perpetuava essa idéia ao lhe negar egoísticamente a liberdade. Com apenas uma palavra, poderia ter uma rainha a meu lado e, no entanto, me contentava com uma escrava. Eu sei… Racionalmente sei que isso está errado, mas pelos deuses, ai de meu coração. Não poderia suportar se me deixasse. Esse é o x da questão, não? Agora ela diz que me ama, mas espera. Espera até que a besta caia sobre ela e não sobre um inimigo. Se fosse uma mulher livre poderia fugir, como faria qualquer mulher em seu juízo. Certo?

Encontrei o amor de minha vida, a mulher com quem ninguém pode nem poderá se comparar e, entretanto, aí está essa vozinha, nas profundezas. Essa voz que diz que não mereço ser amada, que com o tempo, acabarei machucando esta jovem maravilhosa. Pergunto-me quando conhecerei o dia em que me pareça bem que alguém me ame. Soltei um grande suspiro e de repente, a mulher que estava ao meu lado despertou.

– Está pensando coisas muito sérias. – sussurrou com humor, com voz sonolenta.
– Há quanto tempo está acordada? – perguntei rindo. Estava tão concentrada em minhas reflexões que nem ouvi a mudança no ritmo da respiração de Gabrielle.
– Tempo suficiente para sentir como seu corpo se comprime com tanta preocupação – respondeu. – Xena?
– Mmmm?
– Continua bem… Que a chame assim? – perguntou Gabrielle, com certo colorido de preocupação na voz.
Virei-me de lado, até apoiar-me nela, olhando para esse rosto precioso.
– Seria preciso mais que uma noite no reino de Morpheus para que eu esquecesse meu amor por você, Gabrielle. – sublinhei essa declaração com um profundo e longo beijo.

As dúvidas desapareceram do rosto de Gabrielle, enquanto que minhas autorrecriminações ficavam relegadas a um lugar afastado de minha mente. Continuava sendo motivo de preocupação, mas Gabrielle tinha uma forma especial de dissipar as trevas de meu coração e minha mente, para não falar da maneira absolutamente demolidora em que se dispunha a agradecer por não deixar nossa cama tão cedo esta manhã.

******

Um par de marcas agradáveis depois me encontrava recebendo uma massagem nas costas bastante necessária. Comecei a rir por lembrar o que passou por minha mente.

– De repente tem cócegas? – perguntou Gabrielle ao ouvir minha risada.
– Estava me lembrando da primeira vez que me fez isto. Sabe como acabamos não?

Foi a vez de Gabrielle soltar um risinho, subindo o corpo até deitar-se em cima de minhas costas. Pelos deuses, que gosto me dava.

– Gostaria de uma repetição, minha senhora? – perguntou Gabrielle num tom provocante, sublinhando meu título, para fazer-me mais consciente desse fato.

Coloquei-me de barriga pra cima, rindo pelo entusiasmo de sua juventude e por descobrir-me considerando a idéia. Estreitei-a entre meus braços.

– Meu coração diz que sim, sem a menor dúvida, meu corpo, entretanto, diz que se tenho mais um orgasmo esta manhã, desmaiarei. Mas tomo nota desse oferecimento para mais tarde. – acrescentei com um sorriso.

Depois de beijá-la mais uma vez afastei-me relutantemente para levantar-me, mas a sensação desse pequeno corpo entre meus braços obrigou-me a deixar-me cair de novo sobre as almofadas. Ficamos deitadas um pouco, cada uma com seus próprios pensamentos, mas algo me dizia que ambas estávamos repassando mentalmente os acontecimentos do dia anterior.

– Gabrielle? – perguntei hesitante.
– Sim, Xena? – respondeu erguendo-se sobre um cotovelo para me olhar.

De repente, a boca secou. Estava inclinada sobre mim e sobre o ombro caía seu cabelo dourado, cujas mechas faziam cócegas em meu braço. Era uma visão e seu coração pertencia a mim, tal como lhe entregara o meu para que o guardasse.

– Pelos deuses, quanto a amo. – soltei repentinamente e no mesmo instante senti-me constrangida por minha pobre técnica na hora de expressar emoções.

Seu sorriso me disse mais que um pergaminho inteiro. Iluminava-a desde o interior e praticamente reluzia pela qualidade etérea do efeito. Lá estava eu, contemplando o rosto de uma mulher tão jovem que poderia ser minha filha que me olhava com uma expressão que desmentia sua idade. Comunicava-me tanto carinho e compaixão, apenas com esse sorriso, que por um momento fiquei sem voz.

– Tão linda! – disse por fim, erguendo a mão para acariciar seu rosto.

De repente me passou um pensamento escuro pela mente e senti a necessidade de aclarar qualquer incerteza.

– Gabrielle… O que disse a Demetri… Você sabe que só o disse para…

Ela levantou a mão e pos os dedos sobre meus lábios, para me calar.

– Eu sei – contestou com simplicidade.
– Tinha que sair, para afastá-la dele, tinha que converter-me… Converter-me em algo…
– Escuro? – disse Gabrielle, expressando o que para mim custava tanto.
– Sim, escuro. Gabrielle, eu não sei como explicar, mas me perco quando isso acontece. Tenho medo de ficar assim estando com você. Jamais a machucaria intencionalmente, mas tenho medo de chegar a fazê-lo algum dia. Não poderei viver comigo mesma se isso ocorrer. E quase aconteceu, pelos deuses, Gabrielle, se não tivesse se afastado de meu punhal tão rápido, poderia tê-lo cravado em você.

Observei as diversas emoções que cruzavam seu rosto. Perguntei-me se estava reexaminando tudo isto… Sua relação comigo. Gabrielle parecia debater-se com uma decisão desconhecida. Finalmente pareceu tomá-la e falou.

– Eu sabia. – afirmou em voz baixa.
– Sabia o que?
– Sabia que se viraria com o punhal… Eu o vi… Em um sonho. – terminou devagar.

Meu primeiro impulso foi rir da brincadeira da jovem, mas a expressão de Gabrielle indicava que não brincava, absolutamente. A expressão me disse que esperava… Bem, não sei o que, mas algo. Ela desceu os olhos e se fez um silêncio pesado entre nós, até que me dei conta. Gabrielle estava se arriscando muitíssimo ao revelar-me isto.

Quando era jovem, os oráculos eram pessoas temidas, mas respeitadas, benditas pelos deuses, ou malditas, dependendo de como se visse sua situação. O mundo agora era um lugar diferente. Os deuses raramente se mostravam, embora eu ainda recebesse visitas regularmente dos mais desagradáveis deles. À medida que o mundo mudava, também mudavam seus habitantes. As pessoas já não eram tão abertas nem aceitavam facilmente o que não compreendiam, nem deixavam que o medo dominasse suas vidas. Devido a esse comportamento, as pessoas dotadas com a visão desapareceram até mesmo do oráculo de Delfos, pois foram assassinadas ou se isolaram voluntariamente e já não falavam de suas visões.

Até o dia de hoje lembro maravilhada da única vidente autêntica que conheci em minha vida. Chamava-se Beve e a conheci não muito depois que meu exército varreu Atenas na última etapa da vitoriosa conquista do Império Grego. Neguei-me a fazer de Atenas a capital de meu novo império devido ao que seus habitantes haviam feito à minha terra natal, durante a Guerra do Peloponeso. Ordenei que crucificassem Péricles e a maioria dos estadistas e derrubei e destruí muitos dos edifícios atenienses. Senti que meu destino chegava a seu lugar no dia em que vi destruída a arquitetura de mármore dos meus inimigos.

Atrius, que ouvira a mulher contar suas visões, trouxe Beve para minha tenda naquela noite. Suas predições lhe pareceram suficientemente reais para fazê-la merecedora de minha atenção. Enquanto estava sentada diante dela, com um sorriso divertido, produto do vinho, me disse coisas que me pareceram impossíveis e outras que simplesmente me parecia impossível que soubesse. Curiosamente, todas e cada uma das palavras que me disse essa mulher acabaram se cumprindo com o passar dos anos.

Senti uma tristeza imprópria de mim no dia em que soube que a apedrejaram junto com uma mulher chamada Hypatia. Acho que parte do motivo de sua morte desnecessária poderia ter sido que eram mulheres populares em uma sociedade dominada por homens, mas, sobretudo, estou convencida de que as assassinaram porque suas visões do futuro as faziam diferentes. Dava medo pensar, mas na sociedade atual ser diferente provocava o medo, então o incômodo e por fim a raiva e costumava despertar as paixões da turba.

– Você é um oráculo? – perguntei para Gabrielle, que continuava esperando pacientemente algum comentário.
– Oh, não, apenas tenho… Sonhos, às vezes, e às vezes as coisas acabam acontecendo como em meus sonhos, mas nem sempre. – respondeu.

Beijei sua testa.

– Estaria tudo bem se fosse vidente. Sabe disso, não?
– Obrigada, Xena. – a jovem soltou um profundo suspiro de alívio ao ouvir minha resposta. – Sei a opinião das pessoas sobre estas coisas. Quando era pequena, contei para minha mãe um sonho que tive e que se tornou realidade. Disse-me que não voltasse a falar disso nunca mais. Depois que me venderam como escrava, quando tinhas estas visões, sempre me calava, por medo que me considerassem sacerdotisa de Hécate.
– Gabrielle, não tem por que calar estas coisas. Eu sempre a escutarei e ninguém mais tem que saber. – lhe sorri.
– Alegro-me muito que diga isso, Xena. Quando era adolescente, vi como os homens de uma aldeia de Ambracia enforcavam uma mulher por causa de suas visões. Sempre tive muito medo de contar a alguém meu segredo, até agora. – terminou, olhando-me nos olhos. Vi o amor e a confiança nesse olhar e meu coração se encheu de dor pelas estações de sofrimento que teve de suportar esta mulher encantadora.
– As pessoas podem ter às vezes uma visão muito estreita. Querem saber somente do que sempre aconteceu até o momento, o que sempre existiu. A mudança lhes dá medo, Gabrielle, qualquer coisa diferente, os assusta. – comentei.
– Isso se aplica ainda mais aos escravos, Xena.

Observei o rosto da jovem, mas Gabrielle não me disse isso por maldade ou para me repreender. Era evidente que ela aceitava melhor nossa relação escrava/ama, talvez estivesse mais resignada diante do que considerava o destino que eu. E aqui estava – a primeira menção que fazíamos ao tema que pendia pesadamente entre nós. O que poderia dizer com sinceridade que não fosse uma mentira? Pois isso era algo que não queria fazer. No entanto, não me pedira a liberdade, não é?

– Você sabe Gabrielle… Que eu… Que eu não a considero assim… Uma escrava. – disse, tentando transmitir o que sentia.
– E, no entanto… Eu sou. – contestou Gabrielle baixinho, sem o menor vislumbre de rancor ou raiva na voz. Estava simplesmente declarando um fato.

Minha jovem amante, ao contrário de mim, aceitava com resignação a realidade de que estava apaixonada e era amada por uma mulher que era sua dona, uma mulher que, na hora da verdade, era sua ama. Não havia muito mais que pudéssemos dizer depois dessa frase singela. Passaria o resto de meus dias neste reino mortal maldizendo meu egoísmo e as consequências que ele provocaria.

*******

Gabrielle e eu desfrutávamos de nossos dias, para não falar de nossas noites juntas. Continuava sendo um modelo de cortesia em público, mas em particular era cada vez mais aberta e propensa ao riso e até a zombar de mim. Continuava derrotando-me constantemente quando jogávamos os Homens do Rei e meu orgulho me impedia perguntar como era capaz de fazer uma coisa assim com tal categoria. Quando por fim aceitei a contragosto que a mente de Gabrielle era mais hábil para este jogo que a minha, lhe perguntei como desenvolvia sua estratégia. O que me surpreendeu bastante foi que me ganhava sempre não porque sabia o que faria nos seis movimentos seguintes, mas porque sabia o que eu faria. Estudava a mim, no tabuleiro. Em termos bem simples, disse que minha arrogância fazia que meus movimentos fossem previsíveis, quando meu rei corria perigo. O mais irônico é que esta mesma habilidade era o que havia me permitido conquistar a Grécia. Eu era capaz de interpretar e prever o que fariam as pessoas, assim como Gabrielle parecia ser capaz de fazer. Apenas que, em algum ponto do caminho, eu havia perdido o contato com as pessoas e, portanto, a capacidade de chegar a conhecê-las.

Desfrutava de sua crescente amizade com Anya, Sylla e Delia. Eu não fazia ou dizia nada para limitar as relações que estava formando. Sabia que as amizades eram importantes para a jovem, que eram uma experiência nova e, segundo descobri rapidamente, as novas experiências encantavam minha Gabrielle. Sua vida como escrava lhe deixara pouco tempo, e menos ainda o desejo de fazer amigos. Eu calava minhas opiniões e esperava que fosse bastante esperta para saber que deveria ter cuidado com as pessoas que queriam fazer amizade com ela. Sempre haveria gente disposta a lhe fazer mal ou até utilizá-la para chegar a mim.

Entretanto, Gabrielle se dava relativamente bem ao julgar o caráter das pessoas. Por isso, nem me ocorria perguntar-lhe com quem exatamente passava tanto tempo. Estava aprendendo a confiar e isso me surpreendia, pelo simples fato de que era algo muito novo para mim. Entretanto, nunca gostei de sua amizade com Carra.

Carra era uma escrava, mas isso tinha pouco a ver com minha antipatia por ela. Foi capturada quando era muito jovem, como parte dos despojos de guerra depois de uma das numerosas batalhas de meu exército e eu, nas longínquas terras do norte. Deuses, que país! A terra era formosa durante talvez duas ou três luas ao ano e depois se tornava fria e gelada. A neve, que até então eu só vira nos cumes das montanhas, cobria o território inteiro durante os invernos. Sem dúvida a deusa de seus habitantes sofria um destino igual ao de Perséfone, mas o deus que a raptava não deveria ser tão afável quanto Hades, pois não lhe permitia regressar à terra durante meia temporada. Foi uma campanha brutal e os homens e mulheres que compunham seus exércitos eram pessoas enormes e robustas, a quem o frio gélido não parecia afetar. Suas armas eram mais fortes e maiores, mas suas estratégias de combate eram lamentáveis. Foi a única razão que me conduziu por fim à vitória. Saí daquele país sem acrescentá-lo aos meus domínios cada vez mais extensos. Levei os escravos, provisões e um riquíssimo espólio, mas deixei aquela terra inóspita, jurando não regressar jamais se pudesse evitar.

Carra tinha uma expressão nos olhos que transmitia não apenas a dor que sofria, mas também a dor que gostaria de causar. Não era uma expressão nova para mim – eu mesma passei a maior parte de minha vida com esse olhar ardente nos olhos azuis. Era uma sede de vingança. No entanto, Gabrielle via uma pessoa necessitada de amizade e a mim custava cada dia um pouco mais – devo admitir – negar algo para minha pequena.

Carra era uma mulher alta e forte, de cabelos escuros e eu atribuía meus sentimentos mais ao ciúme que a outra coisa. Era sua maneira de olhar para Gabrielle o que eu não gostava, mas me calava, pois não queria parecer uma amante ciumenta. Talvez se tivesse manifestado minha preocupação Gabrielle teria ficado mais atenta, não confiaria tanto. Se tivesse quebrado meu silêncio, é possível que Gabrielle não tivesse sofrido tanto, não apenas por culpa de Carra, mas também por minha.

Meus dias começaram a ficar totalmente dominados pelo julgamento contra Kassandros e seus homens. Poderia tê-los declarados culpados sem mais – no fim das contas, todos confessaram, e de muita boa vontade, devo dizer, uma vez que lhes mostraram o corpo sem vida de Demetri. Mas pensei em submetê-los a julgamento pelo tráfico de escravos, a um julgamento justo e imparcial, não a uma farsa legal, e usar o julgamento como precedente para banir e proibir a escravidão no Império Grego.

Tinha de prepará-lo com cuidado. Não queria uma rebelião por causa desse tema, de modo que passava longas horas com meus conselheiros, enviando mensagens por todo o Império a homens e mulheres que possuíam altos cargos e poder e que sabia que me eram leais. Passou uma lua inteira até que finalmente recebi as respostas que necessitava. Com excessão de uns poucos contrários à idéia, mas que ainda assim me apoiariam, a maioria dos que tinham algum tipo de poder no território estavam de acordo com minhas intenções.

Não seria uma tarefa fácil. Havia aqueles que realmente acreditavam que o destino convertia algumas pessoas em escravos porque não eram capazes de cuidar de si mesmos, porque não eram tão inteligentes nem tão capazes como seus amos. Era por isto que não contara a ninguém meu plano, salvo meus conselheiros e às pessoas-chave do império. Sequer Gabrielle me ouvira pronunciar uma palavra sobre o plano.

Achava que seria verdadeiramente o presente definitivo para ela se pudesse proclamar não apenas sua liberdade, mas também o fim da escravidão em todo o reino. Preparei-me o melhor que pude para a possibilidade de que Gabrielle eventualmente quisesse me deixar. Era uma mulher jovem e tinha toda a vida pela frente. Eu, pelo contrário, estava chegando ao final da minha viagem e enfim percebia que meu amor por Gabrielle não me permitiria encerrá-la em uma jaula como um animal de estimação.

Foi algo que Delia me disse que me indicou o caminho a seguir. A mulher mais velha me dava na cara todos os dias com respeito à liberdade de Gabrielle. Assim que expressei todos os meus medos, lembrou-me a águia dourada que ainda vivia nas montanhas e nos bosques que circundavam meu palácio.

Um tiro de arco fortuito abateu o animal umas quinze estações atrás. Tínhamos saído para caçar e a enorme sombra que caiu sobre nós espantou os cavalos e deu um susto horrível em um jovem arqueiro. Sua flecha se desviou, mas alcançou a asa da ave, e ela caiu do céu. Com a intenção de poupar seu sofrimento, desci do cavalo, mas percebi que com alguns cuiddos, era possível que a ferida não resultasse mortal.

Assim começou uma viagem para a jovem ave e para mim mesma. Considerava-me uma boa falcoeira e iniciei o condicionamento necessário para preparar a ave para o treinamento, mas esta águia não se deixaria treinar tão facilmente. Suas feridas se curaram, mas obedecia somente metade de minhas ordens e o resto do tempo me ignorava. Depois de uma temporada completa, vi que a ave se parecia muito comigo. Assim me comportaria se estivesse cativa, não? Nasci livre e jamais poderia esquecer esse fato, nem submeter-me completamente a alguém. Por causa desta revelação, levei um dia a águia e triste por perder um animal tão magnífico, eu retirei seu capuz, desatei as peias das garras e por fim tirei a correia e ela não sabia muito bem como comportar-se. Parecia uma criança prestes a mergulhar pela primeira vez na parte profunda de uma lagoa.

Por fim a lancei ao ar e ela levantou vôo. Ficou dando voltas longo tempo, aproximando-se para ver se lhe dava a isca como quando a treinava. Depois de um tempo se afastou para longe. Fiquei ali bastante tempo, pois quem sabe, mas agora ela era livre e capaz de escolher por sua conta. Nesse momento de minha vida, esse pensamento profundo fez a diferença em mim, ainda que passassem muitas estações até que voltasse a aproveitar esse pensamento novamente.

No dia em que falei com Delia sobre Gabrielle, a mulher mais velha me lembrou o que ocorreu no dia seguinte, uma fria manhã de outono. O grito da enorme ave me tirou do castelo, com a luva bem vestida na mão. Quando levantei o braço, a águia desceu graciosamente até ela e os músculos de meu braço se tensionaram para aguentar o peso da ave, cujas asas tinham uma envergadura próxima da longitude total do meu corpo. Ficou ali pousada olhando-me e aceitou alguns pedaços de carne de minha mão – era perdiz, seu favorito. A águia voou de novo, mas girou em torno do castelo uma vez, como para dizer que sabia que estava em casa. Delia disse que estava me dizendo que seu coração sempre estaria aqui e que, portanto, sempre regressaria.

Construímos para ela um refúgio adequado fora dos muros do castelo e ela ia e vinha quando queria. Foi a lembraça dessa época o que me fez tomar uma decisão sobre Gabrielle. Uma noite, já tarde, enquanto dormíamos juntas na cama, decidi deixar Gabrielle voar livre. Sabia, no entanto, que ao contrário da águia que ainda procurava minha mão enluvada, era possível que minha pequena escrava escolhesse não voltar. Também compreendi que embora pudesse lidar com a perda dessa magnífica criatura em minha vida, as coisas não ficariam tão bem para mim se Gabrielle se fosse. Se fosse, sabia que em minha vida jamais voltaria a ter alegria, e se ficasse, jamais voltaria a experimentar maior felicidade.

*******

O julgamento durou mais tempo do que eu esperava. Terminava meus dias completamente esgotada por ter de escutar e emitir sentenças sobre as questões que os magistrados não paravam de argumentar. É claro, uma vez que este era o caso que utilizaria como precedente para colocar em vigor minha nova lei, tinha que recorrer uma e outra vez a minha biblioteca em busca de pergaminhos de referência. Quando um dia esgotei o limite de minha paciência, mandei um mensageiro encontrar Gabrielle, dizendo-lhe para que procurasse dois pergaminhos específicos e me enviasse. Fiquei surpresa ao ver que não apenas encontrou os pergaminhos, como que havia levado a metade do tempo que eu levaria. A jovem acabou sendo imprescindível na hora de procurar material de referência e não demorei em descobrir que à noite passava a limpo em pergaminhos os apontamentos que eu fazia durante o julgamento, para que pudesse lê-los com mais facilidade no dia seguinte. O irônico sobre o envolvimento de Gabrielle era que, ainda que suas habilidades tivessem vindo bem no Grande Salão, onde estava conduzindo o julgamento, aos escravos não era permitido entrar na sala exceto se estivessem diretamente implicados no julgamento.

Por isso, não é de surpreender que estivesse um pouco alheia a mudança que foi se produzindo no comportamento de Gabrielle. Nos últimos dias notei que estava mais calada que de costume, mas sorria tirando a importância de minha preocupação. Se minha mente não estivesse tão concentrada neste maldito julgamento, é possível que tivesse descoberto a verdade antes que todo o palácio submergisse no caos.

Levantei-me uma manhã mais cedo inclusive que o habitual e passei um tempo em meu escritório com os pergaminhos que Gabrielle havia transcrito para mim na noite anterior. Sorri ao me dar conta de que por uma vez fora eu quem havia adormecido, esperando que Gabrielle viesse para a cama. Ficara acordada até tarde, copiando minhas anotações à luz da vela, e as deixara no meio da minha mesa, para que eu as visse logo pela manhã.

Quando o sol ainda não havia saído, ouviram-se gritos, não apenas pelo palácio, mas também no pátio. Peguei as armas e saí no corredor e quase me choquei com um jovem soldado.

– Que Hades está acontecendo? – gritei.
– Os escravos, Senhora Conquistadora… Alguns estão amotinados e uns poucos conseguiram escapar do palácio.
– Quantos são alguns poucos? – perguntei rapidademente.
– Vinte e cinco… Talvez cinquenta. – respondeu nervoso e agitado.

Meia dúzia de escravos era um alvoroço, cinquenta… Bem, cinquenta era uma rebelião. Pelas bolas de Ares! Por que agora? Estava tão perto, isto poderia colocar tudo a perder. Agarrei o jovem pela camisa e o lancei com um empurrão na direção oposta.

– Vá buscar o capitão Atrius…
– Sim, Senhora Conquistadora. – ouvi a voz familiar que já estava atrás de mim.

Virei-me e vi Atrius acompanhado de seis membros da guarda real e Delia.

– Aqui, aqui e aqui. – o capitão indicou as entradas de nossos aposentos, colocando os guardas em cada ponto.
– Vim para ficar com Gabrielle. – limitou-se a dizer Delia e soube que não tinha sentido parar para discutir.

Atrius, Delia e eu entramos na sala exterior e abri a porta do quarto onde encontrei Gabrielle vestindo a túnica.

– Ouvi gritos – disse Gabrielle preocupada.
– Está tudo bem, amor. Ao que parece alguns escravos iniciaram uma pequena rebelião…
– Oh, não! – exclamou Gabrielle.

Estreitei seu corpo trêmulo entre meus braços.

– Shhh, não é tão grave. Tenho que descer, Gabrielle, mas Delia está na outra sala, veio para lhe fazer companhia, e há guardas em todas as portas de nossos aposentos. Não se preocupe. – beijei-a na testa. – Farei o possível para que ninguém saia ferido.

Abracei-a e saí pela porta à sala exterior, enquanto Gabrielle me seguia amarrando a túnica. Normalmente não esquecia que havia outras pessoas na sala, mas quando abri a porta para sair, gritou:

– Xena.

Virei-me e vi tanto medo em seu rosto que voltei para estreitá-la de novo entre meus braços. Beijei-a mais uma vez.

– Não passará nada pequena. – disse e a empurrei para Delia. Saí da sala e me virei para olhar a jovem escrava que tinha o rosto banhado em lágrimas.

********

Duas marcas. Dentro das rebeliões de escravos, esta provavelmente foi a mais curta da história. Não estavam muito organizados e não tinham armas. Alguns guardas sofreram uma soberana surra, mas salvo uns poucos cortes e contusões, não houve baixa em nenhum dos lados. Fui taxativa ao ordenar que nenhum escravo sofresse dano algum. Sei como funcionam os soldados e por isso me assegurei de que todos os homens e mulheres que formavam os seis pelotões soubessem de minha ordem.

Sentei-me cansada na poltrona do Grande Salão que substituía o trono. Uma jovem me trouxe uma caneca de chá quente e fiquei sentada, a sós e em silêncio, enquanto o sol aparecia. Enquanto o carro de Apolo puxava o ardente astro pelo céu, observei como se afastavam as sombras do chão, até que toda a sala estava banhada em sua luz brilhante. Detrás de mim se ouviu o ruído de pisadas e maldições e soube que a traziam para que pronunciasse sua sentença. Os escravos, ao contrário das pessoas livres, não tinham direito a julgamento. Ou eram culpados ou não, e neste caso, por uma parte me alegrava e por outra maldizia a mim mesma pelo que estava prestes a fazer. Enfim, saí de meu transe, levantei o olhar e vi Atrius e mais quatro guardas sujeitando a prisioneira acorrentada diante de mim. Não me surpreendeu absolutamente que a cabeça da rebelião dos escravos fosse Carra, a amiga de Gabrielle.

Tinha um olho inchado e vários cortes pequenos pelo corpo, mas nada de que não pudesse se recuperar. Empurraram-na para que se ajoelhasse diante de mim e cuspiu em minhas botas.

– Pode achar que é minha dona, mas não é! – bufou.

Respirei fundo, tentando fazer que as palavras da mulher não me afetassem. Como posso condenar ou castigar os escravos agora que tenho Gabrielle? Senti que cada decisão que tomasse teria um impacto emocional na relação que havia entre a loirinha e eu.

– Bem, que farei com você agora, Carra? – perguntei com seriedade.

Acho que meu tom de voz a deixou confusa. Franziu o semblante e continuou olhando-me furiosa.

– Já não se pode confiar em você como escrava dentro deste palácio, mas poucas pessoas estarão dispostas a aceitar uma mulher, especialmente a quem incita os demais a sublevar-se. Deixa-me com poucas opções.
– Pois vá, crucifica-me! – espetou. – Sei que morre para fazê-lo. Mas aposto que não terá tanta pressa em cravar seu brinquedinho numa cruz.
– O que quer dizer com isso? – perguntei, achando que se referia a Gabrielle.

Então começou a rir e olhou-me com ar desafiante.

– Então não se lembra, Conquistadora? Sua preciosa Gabrielle também é escrava. Se os escravos se amotinam, acha realmente que sua escrava pessoal não sabia?

O comentário me pegou totalmente desprevenida. Sequer havia considerado que Gabrielle pudesse saber. De repente, lembrei-me da reação de terror da jovem ao ouvir a notícia. Não me pareceu surpresa… Apenas assustada.

– Agora está pensando, não Conquistadora? Já pensou sobre que outras coisas sua puta e eu temos feito juntas?

Levantei-me devagar de minha poltrona. Ergui-me por cima da mulher, ainda de joelhos, lembrando como havia ordenado que tirassem as correntes de Kassandros para fazê-lo pagar por seus comentários sobre Gabrielle. Abri a boca para falar e percebi que esta escrava estava prestes a me vencer. Estava prestes a me fazer perder o controle juntamente com a concentração. Teria que ter sido imune as suas canalhices infantis, mas por um momento deixei que me superasse.

Voltei a cair na poltrona e em seu rosto voltou a aparecer essa expressão confusa. Foi quando deixei que a idéia que rondava por meu cérebro, essa incômoda semente de meia verdade que esta escrava plantara em minha mente sobre Gabrielle, se apoderasse de mim. A idéia não demorou em germinar e, como a raiz de uma planta tenaz agarrou-se em meu consciente.

– Leve-a daqui. – ordenei com os dentes cerrados.

Os guardas olharam para Atrius.

– Seu castigo, Senhora Conquistadora?
– Ouviu-me ordenar um castigo? – gritei a pleno pulmão. – Mete-a numa cela e afaste-a de minha vista!

Quando a levaram arrastada da sala e fiquei uma vez mais em silêncio, desci o olhar e vi que minhas unhas deixaram marcas nos braços de madeira de minha poltrona. Fiquei aí sentada bastante tempo, a princípio sem pensar em nada, e por fim pensando muitas coisas diferentes, todas elas envolvendo Gabrielle. Acho que passou muito tempo até que ouvi um ruído a meu lado e percebi que era Atrius. Como sempre, sabia por intuição quando devia me deixar em paz e quanto demoraria a superar minha ira inicial.

– Senhora Conquistadora? – perguntou respeitosamente.
– Sim? – contestei em voz baixa.
– Acho que devo ser eu quem lhe fale deste assunto… Por duas razões. – disse Atrius formalmente.
– E o que tem a dizer? – neguei-me a olhá-lo nos olhos.
– Ela não é a única que disse isso, Senhora Conquistadora. – disse Atrius por fim com voz cansada. – Outros dois que capturamos disseram o mesmo. Os escravos do palácio estão falando e quando anoitecer, já que os rumores voam por aqui, todos saberão.

Soltei um profundo suspiro, tentando reduzir a raiva que sentia em meu interior a um nível controlável. Subia por minha garganta como bile e minha cabeça começou a latejar pelo esforço de contê-la. Levantei-me e fui a uma das janelas para olhar para fora. Fazia um dia maravilhoso – custava perceber que meu amor e meus sonhos estavam se fazendo em pedaços dentro de mim.

– Atrius?
– Sim Senhora Conquistadora.
– Quais eram? Disse que havia duas razões pelas quais teria que ser você quem me falasse. – perguntei, buscando uma explicação.
– Porque sabia que a tentação de matar ao mensageiro seria muito grande. Tinha a esperança de que, depois de vinte estações, me saísse melhor. – disse com um sorriso irônico. – A outra razão é que eu realmente gosto dessa menina. Acho que se Gabrielle soubesse, deve ter tido um bom motivo para não revelá-lo. – respondeu meu capitão.
– Acha realmente isso, Atrius? – perguntei.
– Sim, Senhora Conquistadora, realmente acho.

Afastei-me da janela e passei ao seu lado para sair da sala. Não sei se ouviu o que disse quando passei ao seu lado.

– Fico feliz… Não sei se acho isso.

********

Fiquei diante do balcão aberto da sala exterior, contemplando a paisagem, mas sem nada ver realmente. Enviei um guarda para trazer Gabrielle assim que entrei no aposento e vi que não estava. Não demorou muito até que ouvi o ruído da porta ao abrir-se. Mas não entrou o suficiente, porque não estava preparada absolutamente para fazer isto. Eu perguntaria e ela responderia e assim acabaria tudo. Como permiti abrir-me até o ponto de sofrer esta dor? Meu ego maltratado e meu coração ferido faziam com que me sentisse doente e penalizada por mim mesma. Esse sentimento estava sendo rapidamente substituída pela raiva. Gabrielle fizera sua escolha – teria que viver com as consequências. Como uma criança sem a menor capacidade de raciocinar eu via a situação debaixo de uma só luz. Sabia apenas que Gabrielle escolhera seus amigos escravos acima de mim, e quando me virei com os braços cruzados sobre o peito e pousando meu olhar iracundo sobre ela, percebeu que eu sabia.

Observei como sua expressão passava da preocupação amorosa ao medo e por fim à resignação.

– Minha senhora. – abaixou a cabeça num gesto submisso.

Uma parte de mim esperava que fosse por arrependimento, mas essa pequena parte fazia-se cada vez menor. Sentia essa antiga ira borbulhando debaixo da superfície, à espera de poder erguer-se e engolir-me inteira. A besta passeava como uma pantera em uma jaula de ferro.

Cerrei a mandíbula com força, erguendo a cabeça para olhar ao teto, enquanto respirava fundo várias vezes.

– Gabrielle, eu ouvi algo muito preocupante e quero que o confirme ou o negue. – disse com um tom grave e ominoso que estou certa de que nunca até então me ouvira usar, pelo menos não dirigido a ela. – Sabia da rebelião dos escravos, antes que ocorresse? – perguntei com a voz firme e controlada.
– Houve feridos? – perguntou apressadamente.
– Sabia? – perguntei novamente, entredentes.

Gabrielle levantou o olhar e vi que seus olhos enchiam-se de lágrimas, que se derramaram escorrendo por sua face. Em circunstâncias normais, isso teria feito que meu coração se partisse, mas agora sentia apenas raiva. Estou certa de que era evidente, até para Gabrielle, que a Xena a quem amava estava sendo pisoteada e superada pela Conquistadora.

– Sim. – respondeu baixinho, abaixando a cabeça de novo.
– E tanto se importa com Carra, mais que comigo, que não quis me avisar?
– Não. – Gabrielle levantou a cabeça de chofre. – Xena, eu a amo…

Limitei-me a levantar uma sobrancelha ao ouvir isso enquanto ela tentava continuar.

– Não sabia o que fazer… Não podia… Não podia contar. Ela… Tinha que lhe demonstrar que… Que era sua amiga.

Dei-lhe as costas rapidamente e golpeei a mesa com os punhos.

– Gabrielle, sabe o que fez? Trabalho dia e noite para preparar um julgamento que me possibilite aprovar umas leis para acabar com a escravidão, e acontece isto! – fui erguendo a voz à medida que falava e sabia que se me virasse, Gabrielle estaria olhando-me bastante surpresa. – Agora, como digo às pessoas que os escravos não são diferentes deles, que não querem lhes fazer nenhum mal, depois de uma coisa dessas? – voltei a golpear a mesa com o punho até que fiquei insensível, sentindo que a fúria se aproximava cada vez mais da superfície.

Quando me virei, Gabrielle ficou olhando para alguém a quem mal podia reconhecer. Vi em seu rosto.

– Não sabia o que fazer. – exclamou. – Queria que tivesse uma amiga… Demonstrar-lhe que podia confiar em mim. – terminou.
– Confiar? Eu confiava em você! – gritei. – Não acredita que eu tivesse mudado, não é? Achava que a Conquistadora cairia como uma tromba e cravaria esses escravos numas cruzes, não é?

Foi quando me olhou com uma expressão de infinita tristeza. Não precisava que respondesse, vi a verdade refletida em seus olhos. Diminui a distância que nos separava, sentindo todo o meu corpo trêmulo de raiva.

– Tem razão – respondeu – Mas minha falta de confiança em você não é mais do que você ainda sente sobre mim, Xena.
– Confiei em você minha vida! – gritei.
– Mas não a liberdade!

Deu sua resposta com tanta calma, com tanta suavidade, que parecia uma mulher já condenada, como realmente era. Não consegui mais conter o demônio que levava dentro. A besta gritava para que liberasse a fúria branca ao vermelho vivo que era a verdade de meus atos. Sentiria-me culpada durante cada segundo de cada dia pelo que fiz a seguir.

Já não controlava meu corpo e fiquei olhando-me como se estivesse fora de mim quando meu braço saiu disparado e golpeou o rosto de Gabrielle. O remorso atravessou-me no mesmo instante e queimou-me como um metal incendido, assim que vi a mão em movimento, mas já não tinha controle suficiente para detê-la.

Não foi um soco e acho que tentei refrear-me suficientemente para que fosse apenas um bofetão, mas a ação já estava feita. Gabrielle ficou ali, negando-se firmemente a cair de joelhos. A expressão de seus olhos parecia zombar de mim, dizendo-me que sabia que algum dia bateria nela.

Respirando com dificuldade, afastei-me bruscamente dela, com o peito como um fole enquanto tentava recuperar o alento e os olhos fixos na mão que segurava diante de mim. Pude apenas ficar lá olhando minha mão direita – cinco estações de controle jogadas no lixo em um piscar de olhos. Não lembro quanto tempo fiquei assim, olhando minha mão, mas sabia que não poderia sequer olhar em seus olhos. O peso do que fiz caía pesadamente sobre mim e continuei contemplando essa mão, como em transe. Finalmente dobrando os dedos para fechar o punho, bufei:

– Saia!

Antes de ouvir a porta se fechar, Gabrielle derramou sal na ferida aberta ao pronunciar as palavras mais cruéis que nunca a ouvira dizer.

– Sim, Senhora Conquistadora.

Nota