Capítulo 17: Tive fome todos esses anos
por Fator X - Legado– Quantas vezes eu tenho de lhe dizer? Não quero comer nada! – peguei a bandeja do chão e a lancei, com todo seu conteúdo, até a escada.
Sabia que estavam ali, escondidos depois do patamar dos degraus, de modo que peguei o frasco de vinho que estava no chão fora de minha porta e o atirei também do outro lado do corredor. Entrei de novo em meu aposento e bati a porta, fechando o pestilo.
Cruzei a sala às escuras até o balcão aberto. Apoiei as costas contra a parede, deixei meu corpo cair no chão e o frio ar noturno pousou sobre mim. Meus olhos voltaram a se encher de lágrimas e não pude contê-las. Bem quando eu acreditava que não me tinha mais lágrimas para derramar, pensava em Gabrielle, lembrava perfeitamente da expressão de seu belo rosto quando a esbofeteei e começava a chorar novamente.
Assim passara o dia para mim. Agora a lua já estava no alto do céu, mas não acendi nem tochas nem velas. Deixei meus aposentos no mesmo estado de escuridão que sentia rodear meu coração. Estava me comportando como uma criança mimada ao jogar as bandejas que Sylla me deixava, mas a violência física parecia ser minha reação habitual, quando me chateava ou tinha medo. Por acaso não demonstrara antes, ao bater em Gabrielle?
Ouvi golpes em minha porta e reconheci a voz de Delia, que falava com Sylla.
– Tentei deixar a comida como disse, mas ela a jogou sobre os guardas. – a jovem voz de Sylla parecia preocupada e me fez lamentar ter-me comportado como uma criança petulante.
– Não se preocupe Sylla. Busque outra bandeja e suba até Gabrielle, eu me ocupo da Conquistadora. – respondeu Delia para minha donzela.
– Delia, ouviu o que dizem de Gabrielle? – perguntou Sylla.
– Se me dedicasse a escutar cada fofoca que passa por minha cozinha, pouca coisa conseguiria fazer com o meu dia. – respondeu Delia com aspereza e então pareceu reconsiderar sua rude resposta, porque o que disse a seguir foi mais suave, mais compreensivo. – Sim, ouvi o que dizem.
– Acredita nisso? – perguntou Sylla.
– Em absoluto. Pelos deuses, Gabrielle é honrada como ela só. Agora vá, traz um pouco de chá quente e um caldo e assegure-se que tome tudo. Senhora Conquistadora? – Delia começou a chamar à porta de novo.
Fiquei ali sentada sem mover-me, desejando que Hades me levasse para acabar de uma vez com tudo. Ouvi uma chave na fechadura metálica e não me surpreendi em absoluto que Delia tivesse encontrado uma chave de meu aposento. Continuei sentada no chão, observando enquanto Delia se movia ligeiramente através das sombras do quarto. Acendeu uma grande lâmpada de azeite que havia em um rincão da sala e foi movendo-se pela espaçosa área, acendendo uma lâmpada mais e várias velas. Levantei a cabeça ao sentir o odor da cera derretida – era um odor estranho e reconfortante que sempre me lembrava de casa, ainda que não a tivesse.
Descansei o queixo nos braços, e abracei as pernas contra o peito. Delia se aproximou e percebi o aspecto que deveria ter pela expressão de seus olhos. Tinha o cabelo feito um desastre e os olhos vermelhos e inchados, inflamados pelas longas horas de pranto. Aproximou-se mais, puxou uma cadeira da mesa e a colocou diante de mim.
Quando se sentou e passou uma mão terna por meu cabelo, afastando-o dos olhos, me joguei para trás. Não podia suportar a ternura, era algo que faria Gabrielle, e comecei a chorar de novo.
– Não seja amável comigo. – afastei-me um pouquinho mais, voltando o rosto para a varanda aberta.
– Então vocês brigaram. Bem, não é nada que não se possa resolver. – replicou Delia, com tom compreensivo.
– Não poderá se resolver nunca. – respondi taxativamente.
Acho que o tom ominoso de minha voz atingiu Delia, que começou a duvidar.
– Exatamente o que aconteceu aqui esta manhã? – perguntou.
– Bati nela. – respondi, tentando não me quebrar completamente diante da mulher mais velha.
– Oh, Xena. – Delia suspirou aflita, recostando-se na cadeira.
Olhei-a por fim nos olhos e não vi a rejeição que esperava. Vi uma compaixão que me surpreendeu e incomodou-me um pouco.
– Não me odeia? – perguntei, pois sabia o quanto Gabrielle era importante para Delia.
Dirigiu-me um desses sorrisos agridoces seus.
– Meu ódio faria que se sentisse pior pelo que fez?
Não pude responder por causa do nó que tinha na garganta e me limitei a negar com a cabeça.
– Então que sentido teria? – replicou com firmeza.
– Sinto-me traída. – comentei, sentindo bastante lástima por mim mesma.
– Você se sente traída? E como acha que se sente essa menina? Pelos deuses, é um milagre que continue em seu juízo, vivendo com você! Num momento diz que a ama, a enche de presentes e carinho. E depois, lhe nega a liberdade e a mantém como escrava. Não acha que ela pode ter interpretado como uma forma de traição?
– Sabia da rebelião dos escravos e não me disse! – gritei.
– Todo esse absurdo é por isso? Santos deuses, mulher! – Delia levantou-se da cadeira e se plantou diante de mim com as mãos no quadril.
– Mas Gabrielle admitiu. – respondi debilmente. – Disse que sabia.
– Xena, todo o mundo sabia… Santa Athena, até eu sabia!
– Teria que ter me dito quando ocorreria… Assim eu poderia ter feito algo. – contestei na defensiva.
– Estou certa de que Gabrielle não tinha nem idéia de que aconteceria de verdade.
– O que…? – fiquei sem voz pelo espanto.
– Xena, Carra planeja uma rebelião dos escravos todos os dias. Gabrielle a trazia para a cozinha e eu as ouvia falar e também os cozinheiros, as ajudantes de cozinha, pelos deuses, a metade dos guardas do palácio já a ouviram planejar esta insensatez! Ninguém levava a sério. Acho que Gabrielle tinha tão pouca idéia como eu do que aconteceria realmente esta manhã.
Delia ficou plantada diante de mim e senti que toda a ira que guardava em meu interior simplesmente se desvanecia. Fiquei frágil e confusa. Simplesmente não entendia como era possível que tudo saísse tão mal nesta manhã.
– Mas ela admitiu – disse quase para mim mesma. – Por que não explicou?
– Você realmente perguntou a ela, Xena, você a interrogou? Deu por suposta sua inocência ou sua culpa? Quando a olhou era com expressão compreensiva para com a mulher que ama, ou com expressão dura e crítica? – perguntou Delia.
Não precisei responder às perguntas de Delia – ela conhecia as respostas tão bem como eu, estavam escritas em meu rosto.
– Deuses, o que eu fiz? – murmurei, afundando o rosto nas mãos. – O que vou fazer?
– O que quer fazer, Xena? – perguntou.
– Morrer. – respondi rapidamente, sem o menor vestígio de humor.
– E como segunda opção? – contestou Delia imediatamente.
– Como resolvo as coisas com ela, Delia? – perguntei com o que até para mim soou como um fiozinho de voz.
– Pode fazer duas coisas, para começar.
Olhei-a nos olhos e soube o que diria antes que proferisse uma palavra – dois de meus maiores temores de uma só vez.
– Tenho de desculpar-me e pedir que me perdoe. – respondi.
– Essa é uma. – Delia sentou-se de novo na cadeira. – Se ama esta jovem tanto quanto eu acredito, precisa fazê-la uma mulher livre.
Ficamos em silêncio uns instantes enquanto eu tentava imaginar-me fazendo ambas as coisas.
– Acha que me perdoará se libertá-la?
– Xena – Delia moveu a cabeça ligeiramente – Com pessoas amadas não se regateia. Você dá e às vezes, recebe…
– E às vezes não – terminei, apoiando a testa nos braços.
– Sim, esse é o risco que corremos quando entregamos o coração. Ocorre o mesmo com a amizade. Quando deu para Gabrielle o material para escrever e a mesa, o deu pensando que assim ela poderia gostar de você?
– Não – levantei a cabeça indignada. – Claro que não!
– É claro que não. Fez sem outro motivo senão fazê-la feliz. Isso é o que fazemos quando amamos as pessoas, Xena. Tem que dar a esta linda águia a liberdade, Xena, esta criatura magnífica precisa saber o que é a liberdade. Só assim quando regressar para você saberá que é verdadeiramente sua.
– Nunca disse isso antes. – murmurei.
– O que?
– Isso de desculpar-me… Nunca disse a ninguém que… Sentia. – respondi escondendo o rosto atrás do braço, totalmente envergonhada que uma mulher de minha idade tivesse que pedir conselho sobre essas coisas.
– Nunca? – Delia parecia surpresa e eu fiz um gesto negativo com a cabeça. – Pois vai lhe custar mais que qualquer outra coisa em sua vida. – afirmou.
– Obrigada. – repliquei com uma boa dose de sarcasmo. – Sinto-me muito melhor. – fiz uma pausa antes de falar de novo. – Não sei se posso. – acrescentei.
– Pode e o fará. – respondeu, levantando-se da cadeira e colocando-se ao meu lado.
– Como sabe?
– Porque a conheço. – respondeu, puxando meu cotovelo. – Venha, não obrigue minha velha coluna a levantá-la. Deuses, menina, olhe como é grandona. – acrescentou quando me levantei.
Eu estava assombrada. Parecia tão claro para Delia o que devia fazer. Sentia-me ainda mais surpresa pelo fato de que uma mulher que tinha apenas dez, talvez quinze verões a mais que eu, me chamar de menina. Mas assim era Delia, e dei graças aos deuses por conceder-me uma amiga como ela.
– A primeira coisa que fará é se colocar de molho na banheira e lavar o rosto e o cabelo. Vou preparar uma coisa para que coloque no rosto, para tirar um pouco toda essa irritação e inchaço… Tem um aspecto igual ao do próprio Hades.
– Com certeza lhe agradece a comparação. – repliquei enquanto ela me empurrava para a sala de banho.
– Depois do banho, relaxará com uma xícara de chá quente e então colocará algo no estômago.
– Vomitarei se comer algo! – gritei da outra sala.
– Pois vomite… Meteremos um pouco mais quando terminar.
Submergi meu corpo na água quente sem colocar mais da que havia nos baldes que esquentavam junto ao fogo. A água fresca aliviava o ardor da pele e molhei o rosto com o reconfortante líquido. Ouvi Delia quando abriu a porta para Sylla.
– Ela bebeu o chá, mas não consegui que comesse nada. – disse minha donzela, suponho que se referindo à tentativa de fazer com que Gabrielle comesse.
– Desça e prepara algo leve para a Conquistadora, e depressa. – ordenou Delia.
– Delia… Gabrielle tem um hematoma no rosto.
– Sylla, não quero que comente absolutamente nada sobre isso, compreendido? Você e eu somos as únicas que sabem. Se ouvir o menor rumor a esse respeito, saberei que foi você e me ocuparei que passe as próximas vinte estações esfregando urinol. Entendido?
– Sim Delia.
Ouvi como a porta se fechava e Delia entrou um pouco depois.
– Toma, põe isto nos olhos por um tempo. – disse.
– Delia, me faria um favor? – perguntei. Quando assentiu, continuei – Quer ver como está Gabrielle? Para assegurar-se de que não está muito machucada.
– Isso você mesma pode fazer, quando sair do banho. – respondeu.
– Eu sei… Quero dizer, o farei. Vou fazê-lo, mas antes tenho que ir ao cárcere. Tenho que falar com Carra.
– Antes de falar com Gabrielle? – perguntou Delia confusa.
– Sim, é importante. Preciso saber por que Carra me fez acreditar deliberadamente que Gabrielle havia me traído. Quero ouvir de seus lábios. – expliquei.
– Muito bem. Pois irei ver se Gabrielle está bem. Quer que faça algo mais por você, Xena? – perguntou Delia.
– Não. – mas a chamei quando já havia se virado para sair. – Delia? – se virou de novo para mim. – Eu… Sinto ser… Tão idiota a maior parte do tempo.
Como desculpa, pode ser que faltasse um pouco de finesse, mas no fim das contas, era minha primeira tentativa.
– Vê? Foi tão difícil? – perguntou.
– Sim. – dirigi a ela minha melhor imitação de sorriso, dada as circunstâncias.
Delia sorriu. Deu-me uma palmadinha no ombro e se virou mais uma vez para sair.
– Continue assim… Com a prática fica mais fácil.
*****
Por ser uma prisão, este não era o pior lugar que já havia visto em minha vida. Havia masmorras debaixo do palácio, celas que foram cavadas na dura rocha da base do castelo. As covas úmidas e escuras ainda eram usadas em raras ocasiões, mas há algumas estações ordenei que construíssem um novo edifício para usá-lo como prisão. Era uma estrutura baixa de pedra situada do outro lado do quartel dos soldados. Ainda que as condições distassem muito de serem hospitaleiras, a imundície e os ratos não eram como das velhas masmorras.
Ninguém me deteve quando entrei no edifício. Estou certa de que meu rosto não convidava para uma conversa social e depois, tinha a sensação de que, ainda que houvesse me arrumado, continuava com um aspecto digno do Tártaro. Assim que abriram as portas exteriores e as pesadas portas internas, perguntei ao carcereiro em que cela estava Carra. Pareceu surpreender-se um pouco e depois assustar-se. Disse que devido ao barulho incessante que armou, gritando obscenidades, colocaram-na na última cela do edifício, no final do corredor escuro e sinuoso. O homem continuava olhando-me cara a cara. Segundo me lembrava, era a mesma expressão estranha com que havia me olhado o guarda que abrira as portas internas. Não conseguia ver nada fora do normal que me fizesse merecedora desses olhares raros, de modo que avancei devagar pelo lúgubre corredor, passando diante das celas vazias, até que cheguei quase ao fim do edifício. Ouvi vozes, mas a escuridão me mantinha oculta. Ao espreitar pela quina, já sabia quem veria debaixo da luz da tocha pendurada no alto da parede. Poderia reconhecer essa voz até adormecida, ainda que estivesse rouca, como estava agora, obviamente depois de marcas inteiras de pranto.
Gabrielle estava sentada em um banco, bem defronte à cela onde estava encerrada Carra. A alta mulher estava apoiada nas barras e, neste momento, gostei menos ainda de seu jeito de olhar para Gabrielle. Mas não repetiria meu erro anterior. Sim, meu primeiro instinto foi lançar-me sobre essas duas e obrigar Gabrielle a confessar sua traição, mas agora, já não tinha vontade de fazer algo assim. Pelos deuses, isso me surpreendeu mais que a qualquer outro.
Gabrielle tinha razão a meu respeito – era porque não confiava nela, na seriedade de seu amor por mim, por isso nunca a libertara de sua escravidão. Eu que pensava que confiava nela até o extremo de colocar minha vida em suas mãos, quando a verdade é que confiar-lhe minha vida era muito fácil – nunca dei muito valor a minha própria vida. Mas a vida de Gabrielle era um tema totalmente distinto. Ela valia tudo e, quando percebi que podia ser a única alma capaz de iluminar os recônditos escuros de meu coração com sua luz especial, compreendi tudo – por que tratava Gabrielle como a tratava e, ainda mais importante, porque não lhe dava a liberdade. Assombrava-me e envergonhava-me de ter tal adoração enquanto estava metida em uma banheira cheia de água cada vez mais fria.
Agora, enquanto meus olhos doloridos contemplavam sua pequena figura, cujos ombros estavam encurvados como sinal inconfundível de seus próprios sentimentos de tristeza e perda, tenho vergonha de ter obrigado Gabrielle a escolher entre sua amante e sua amiga. Tudo se resumia a isso, em seu sentido mais refinado. Gabrielle nunca teve amigos até agora, nem experimentara toda a gama de emoções que podem surgir ao entregar o coração para outra pessoa. O certo era que eu a colocara em uma situação em que não podia almejar a liberdade e não lhe dei nenhum dos recursos necessários para enfrentar os problemas que pudessem surgir. Pensei unicamente em mim mesma, em como Gabrielle estava mudando a minha vida. Nem me ocorreu pensar em como as mudanças que estavam se produzindo em sua vida afetariam a jovem.
Apoiei-me na parede, oculta completamente nas profundas sombras, escutando o que falavam. Sim, suponho que era errado, mas temia que esta fosse a única maneira de averiguar os pensamentos e sentimentos de minha jovem amante. Com certeza eu era a última pessoa a quem desejava confiá-los. Enquanto escutava, meu coração voltou a se quebrar. Nem passara pela minha mente que Gabrielle sentisse como se uma amiga e uma amante a traíram em um único dia.
– Mas por que Carra? – ouvi que dizia a voz tensa de Gabrielle.
– Por quê? – ressoou a voz mais profunda da prisioneira. – Olhe a sua volta Gabrielle. Caso tenha se esquecido, sou escrava… Somos escravas. A diferença é que eu não tenho uma ama que me vista com roupa bonita, me dê de comer em abundância e me dê presentes valiosos.
– Xena não é assim. – rebateu Gabrielle.
– Xena? Quer dizer a Conquistadora, não? Você se comporta como se ela não fosse sua ama… Como se significasse algo para você. – continuou Carra.
– Assim é – Gabrielle ergueu a cabeça bruscamente e meus olhos se encheram de lágrimas ao ver o fogo que começava a arder nesses olhos verdes. – E porque não seria assim? – Gabrielle se colocara de pé agora, enfrentava sua amiga. – Importo para… Eu… – Gabrielle conteve um soluço. – Ela me ama. – terminou, levantando o queixo num gesto desafiador.
– Oh, não me diga. – ronronou Carra. – E disse eu te amo ao lhe dar esse bofetão?
Gabrielle levou a mão até sua face, apalpando a contusão com os dedos. Afastou-se da luz e não pude mais ver seu rosto. Mas não precisava vê-la para saber que tinha os olhos cheios de lágrimas. Não podia negar o que acontecera, e nem tentou. Meu próprio pranto começou novamente quando a vi se voltar outra vez para Carra, tentando explicar com um fiozinho de voz.
– Sentiu-se traída. – disse Gabrielle suavemente, com os olhos cravados na escuridão.
Perguntei-me se estava lembrando o momento enquanto que eu via repetido uma e outra vez em minha mente.
– Ela sentiu-se traída? Pelos deuses, Gabrielle, depois de tudo o que fez por ela, de como a serve, que direito ela tem de sentir-se a vítima? – gritou Carra para a loirinha.
– Todo o direito. – sussurrou a voz de Gabrielle. – Tinha direito… Não de me bater, mas de sentir o que sentia. Eu a traí.
– Você não a traiu, eu fiz que acreditasse que sabia mais do que sabia. Eu fiz que acreditasse que estávamos nos relacionando. – disse Carra sem emoção.
– O que? – Gabrielle tinha no rosto a completa confusão. – Carra… Por que fez uma coisa dessas? Pensei que fosse minha amiga.
– Continua sem entender, não é? Você é uma escrava, Gabrielle. Ela é sua dona! Que acha que diria se lhe dissesse que não quer dormir com ela quando ela a deseja? Acha que diria que a ama e que está tudo bem? De modo algum! Forçaria e a violaria para demonstrar quem é a ama e quem é a escrava!
– Isso não é verdade! – gritou Gabrielle. – Xena nunca me trataria assim.
– Já fez outras vezes, o que tem você de especial? – respondeu Carra maliciosamente.
O rosto de Gabrielle era uma máscara de dor. Nunca lhe contei as coisas que fiz, minha maneira de tratar as mulheres que levava para a cama antes dela. Às vezes pensava que soubesse, mas nunca me perguntou nada. Sua expressão neste momento me disse que se suspeitava que os rumores fossem verdadeiros, nunca quis acreditar neles. Uma vez mais, deixei-a indefesa diante de ataques como o de Carra.
– A mim não faria. – replicou Gabrielle.
– Sim, faria! Estava mais que disposta em acreditar que a traíra.
– É você quem não entende. – Gabrielle avançou um passo. – Claro que a traí! Teria que ter lhe contado sobre suas conversas, e não porque sou sua escrava, mas porque sou sua amante! Não lhe disse nada porque não acreditei. Não acreditei que estivesse mudada. Não confiei nela quando me dizia que estava tentando ser diferente. Percebi que podia ser boa, mas também via a escuridão dentro dela e tinha medo. Tinha medo do que faria com você… Com meus amigos. – Gabrielle secou as lágrimas e passeou de um lado a outro diante da cela. – E é assim que você me paga. – voltou os olhos, tristes e solitários, para Carra. – Fez que acreditasse deliberadamente que traí Xena, que lhe fui infiel com você. Sabe por que isto me machuca tanto? Porque, com efeito, menti para a mulher que amo porque não confiava nela e ao que parece, é a única em quem posso confiar realmente. Com todos os seus defeitos, e sim, me machucou, mas tem sido mais uma amiga para mim do que você nunca poderia ter sido, Carra.
– E, no entanto, continua sendo sua escrava. – contestou a prisioneira.
– E ainda que continue sendo toda minha vida, jamais conhecerei um amor maior. – respondeu Gabrielle.
Gabrielle se virou para sair e precisei de toda minha força de vontade para não correr até ela e estreitá-la em meus braços. Pelos deuses, não podia crer que uma mulher como essa me amasse. Entretanto será que ainda me amava? Ainda que tivesse que dedicar a ela o resto de minha vida, tentaria todos os dias resolver as coisas com ela. Demonstraria-lhe que podia mudar, para que nunca voltasse a duvidar. Retrocedi um pouco mais, ocultando-me nas sombras, mas senti uma acometida de raiva pelo que ouvi em seguida.
– Enquanto continuar sendo sua escrava – disse Carra para Gabrielle – Sempre será conhecida como a puta da Conquistadora.
Gabrielle continuou andando, mas ao passar por mim, ouvi o leve sussurro que escapou de seus lábios.
– Eu sei. – disse.
******
Só tinha um pensamento enquanto esperava em silêncio que Gabrielle saísse da prisão. Respirei fundo para me acalmar, sentindo que a besta me puxava, exigindo, depois pedindo e por fim rogando que a libertasse. Fui até a cela e fiquei ali plantada. Carra olhou-me com uma expressão de puro ódio nos olhos. Quase… Quase fiz. Fechei os olhos, colocando a imagem de Gabrielle em primeiro plano em minha mente.
Deveria ter um aspecto estranho, com os olhos fechados e, por fim, o vislumbre de um sorriso nos lábios. A besta suplicava agora, e ainda que me faltasse um fio de cabelo para abrir a porta da cela e fazer Carra pagar a mágoa e o sofrimento de Gabrielle por suas insinuações e suas mentiras, consegui me conter. Afugentei meu demônio, não sei como, e finalmente abri os olhos para ver Carra.
– Então você veio para fazer o que não teve coragem de fazer esta manhã? – disse zombando.
– Essa era a minha intenção. – contestei com calma. Acho que o tom de minha voz desconcertou Carra. – Carra, vim a esta cela com toda a intenção de causar-lhe uma grande dor. Queria fazê-la sofrer tal como sua traição fez Gabrielle sofrer. Ela a tinha por amiga e você não pensou em ninguém salvo em si mesma e em como poderia usá-la para alcançar seus propósitos. Eu queria arrancar seu coração por isso, mas percebi que sou igualmente culpada. Cometi os mesmos crimes, mas agora quero o perdão. Como posso oferecer menos a outra pessoa?
Virei e comecei a andar pelo sombrio corredor, sem esperar ouvir sua voz ao sair.
– O amor a fez fraca, Conquistadora. – espetou.
Sorri e estou certa de que pensou que estava louca.
– Se engana Carra. Pela primeira vez em minha vida, tenho a força suficiente para ajoelhar-me e pedir o que desejo de verdade. O amor não me fez fraca… Fez-me forte.
******
Estava parada no corredor, de frente para sua porta, com a sensação de estar ali há bastante tempo. Minha mente retrocedeu até Micenas e as duas temporadas completas que passei lutando contra os persas até que, com o Golfo nas costas, se renderam e abandonaram o solo grego. Em algumas ocasiões visitava a cidade, a sudoeste de minha capital, Corinto, e quando passava pelo Portão dos Leões ao entrar em Micenas, lembrava da brutalidade daquela campanha.
Esse portão monumental, construído em minha honra, era um bloco de pedra calcária de dez metros de altura esculpido com duas leoas flanqueando uma coluna. O bloco se sustém graças a um imenso umbral de pedra maciça, que se estende ao longo da entrada da cidade. Cada vez que entro na cidade, lembro-me de apenas uma coisa. Essa campanha, com suas numerosas batalhas, foi de longe a coisa mais difícil que já tinha feito em toda minha vida.
Minha mente retornou ao presente e percebo que quando cruzar a porta de Gabrielle para falar com ela, será como se passasse por debaixo dessas criaturas entalhadas em minha honra. Sabia que minhas percepções ficariam alteradas para sempre no momento de erguer a mão para bater à porta. Agora compreendo que há muitíssimas coisas mais poderosas que a guerra e inúmeras pessoas mais fortes que os guerreiros. Chamei suavemente à porta de madeira, fortalecida ao saber que esta seria, distintamente, a coisa mais difícil que já fiz em minha vida.
Ela abriu a porta e ficamos nos olhando. Seus olhos estavam tão vermelhos e inchados pelas marcas passando chorando como os meus.
– Posso entrar Gabrielle? – perguntei insegura.
Pareceu sobressaltar-se, como se minha civilidade a surpreendesse.
– É claro, minha senhora. – abriu mais a porta.
Tentei dissimular a mágoa ao ouvir que usava meu título em vez de meu nome. Ao menos não estava me chamando de Conquistadora. Ficamos em sua sala exterior, junto à mesa, onde faltavam evidentemente os habituais pergaminhos e a pena. Percebi que provavelmente não estava de bom humor para escrever. Ela não disse uma palavra e eu sabia que não cabia a ela. Era minha responsabilidade corrigir isto, ou ao menos tomar a iniciativa. Movi os pés, nervosa, olhando-a pelo rabo do olho e então olhando de novo minhas botas.
– Tenho de lhe dizer uma coisa, Gabrielle… Podemos… Podemos passar para seu quarto, onde estaremos… Mm, mais cômodas? – consegui balbuciar.
Gabrielle não disse sim nem não, simplesmente se virou e entrou primeiro no quarto.
– Por favor. – pus uma mão delicada em seu ombro. – Sente-se.
Sentou-se imediatamente na beirada da cama. Comecei a dar voltas e no instante em que percebi o que estava fazendo, parei. Gabrielle olhou-me e, pela primeira vez, não soube interpretar o que via em seus olhos. Ali de pé, erguida sobre ela, engoli saliva com dificuldade uma ou duas vezes. Pus-me diante dela e me ajoelhei. Agora era ela que me olhava de cima e isso me pareceu mais apropriado, pois era eu que tinha de suplicar-lhe o perdão, não o contrário.
Levantei o olhar para observar seu rosto e me fixei na contusão ligeiramente arroxeada que se destacava sobre a pele rosada de sua face. Ergui a mão e com a ponta dos dedos toquei levemente a área machucada, apenas roçando sua pele com a minha. Depois de todas as lágrimas que havia derramado, minha própria reação me surpreendeu. Saltaram-me as lágrimas dos olhos e caíram deixando um sulco úmido por meu rosto. Senti que minha respiração falhava, enquanto engolia um soluço. Pelos deuses, não queria chorar e parecer tão patética, mas ajoelhada diante da pequena mulher, não parecia ter forças suficiente para controlar o pranto.
– Gabrielle… Eu… Eu sinto muito… Por todos os deuses, sinto muitíssimo! – disse chorando, e acho que foi minha reação a causa de sua expressão um pouco assustada. Fui balbuciando o resto e mais tarde recordaria muito pouco do que havia dito. – Juro Gabrielle que nunca farei isso de novo… Nunca. Enfiarei minha própria espada em mim antes de permitir que sofra novamente pela minha mão. Eu sei que certamente não pode, mas me perguntava se poderia encontrar em seu coração… Talvez não agora, mas quem sabe algum dia, quando tenha tempo de pensar um pouco mais… Se talvez pudesse…
Gabrielle ainda não havia falado, mas ergueu meu rosto com uma de suas pequenas mãos. Tinha o semblante franzido com o que parecia uma mistura de confusão e preocupação. Segurou-me o rosto com as duas mãos e meus olhos se fecharam quando acariciou minhas bochechas molhadas com os polegares.
– Sinto que eu seja tão sem jeito com estas coisas… Nunca disse a ninguém que sinto muito. Bem – abri os olhos e tentei sorrir – Na verdade pratiquei antes com Delia.
– Praticou? – disse Gabrielle, falando pela primeira vez. – Nunca disse até agora… Jamais?
Neguei com a cabeça.
– Nunca quis… Nunca pensei que precisava fazer. Sempre pensei que deveria ser todos os demais, os que se inclinassem diante de mim, por que eu era mais forte; e que se dissesse que sentia, seria como dizer que havia me equivocado. Não podia admitir que errasse. Pensava que reconhecer estar errada seria admitir que fosse fraca.
– Oh, Xena, é nisso que acredita? Que dizer que sente muito significa que é fraca? – perguntou Gabrielle com tristeza.
Percebi rapidamente que usara meu nome, mas não quis ter esperanças ainda.
– Achava, mas não mais.
– O que a fez mudar de opinião? – perguntou.
– Você. Não esperava amá-la tanto, Gabrielle. – recuperei forças pela maneira com que Gabrielle acariciava distraída minha face com o polegar enquanto eu falava. – Nunca pensei que somente uma pessoa pudesse ter tanta influência em minha vida. Sinto muitíssimo tê-la magoado, Gabrielle, não apenas por esbofeteá-la, mas também por não confiar em você. Faria qualquer coisa para voltar no tempo e desfazer o que fiz, mas sei que é impossível. Farei o que for para compensá-la com o que seja.
Ergui as mãos e as pousei sobre as dela, as segurei e levei cada uma aos lábios para beijá-las com ternura.
– Qualquer coisa que eu tenha, pequena, ou qualquer coisa que tenha o poder de fazer, qualquer presente que eu possa lhe dar… Tem apenas de pedir e será seu. Não faço isso para que me perdoe. Não estranharia se jamais possa fazê-lo e sequer tem de continuar comigo se não quiser. – baixei os olhos, fechando-os com força ao pensar no que estava lhe oferecendo. – Quero apenas compensá-la, Gabrielle… Ajeitar as coisas. Peça e qualquer coisa que houver no Império Grego será seu. – terminei.
– Qualquer coisa? – perguntou suavemente.
Balancei a cabeça. Fiquei olhando-a quando se levantou e se colocou diante da varanda, por onde entrava a lua, que banhou seu rosto com a luz prateada.
– Não tem que me dar nada em absoluto, Xena.
– Pode ser que não, mas é algo que quero fazer, não que tenho de fazer. – respondi.
Virou-se e meu estômago deu uma pequena volta ao ver essa luz cálida arder de novo em seus olhos.
– Pois deveria saber que a perdôo, até mesmo sem o presente.
Não pude conter o sorriso que se apoderou de todo meu rosto. Foi uma reação tão espontânea que a jovem que estava diante de mim sorriu.
– Pois assim o presente será muito mais especial – afirmei.
– Primeiro quero saber… Se você me perdoa. – os olhos de Gabrielle se nublaram nesse instante, ao que parece abrumados pela tristeza.
– Gabrielle, não. – levantei-me e me pus ao seu lado. – Por favor, você não tem nada para lamentar.
– Não acho que isso seja verdade. Está tomando para si toda a culpa e é verdade, você me bateu, mas… Também é verdade que eu não confiava em você, Xena. Não pensava que fosse tão diferente da Conquistadora sobre a que li nos pergaminhos e tinha medo do que pudesse fazer, de como reagiria se lhe falasse do plano de Carra.
Gabrielle desceu o olhar e retorceu as mãos.
– Quando a chamei de Senhora Conquistadora… O fiz porque sabia que a magoaria e queria que sofresse como eu. – terminou.
– Gabrielle, me parece desnecessário, mas se assim sente-se melhor, claro que a perdôo por isso. Por favor, não fique tão triste, é normal querer atacar e machucar quando sente que alguém foi injusto com você – expliquei.
– Não deveria ser assim, quando se trata de alguém a quem ama. – murmurou baixinho.
Afastei-me dela, com a cabeça baixa, e me detive diante da varanda aberta. O ar noturno estava bastante frio, mas gostava de sentir a brisa no rosto.
– Tenho medo, Xena. – declarou Gabrielle simplesmente.
Virei-me para olhá-la, confusa. Ainda não compreendia o que significava para mim?
– Gabrielle, do que tem medo… De mim?
– Não de você… Eu… Xena, que será de mim quando não mais me desejar? – soltou de supetão, com os olhos cheios de lágrimas.
– O quê? – fiquei sem fala. Por acaso fiz algo para que acreditasse que essa era minha intenção?
De repente, Gabrielle estava soluçando.
– O que será de mim quando não mais a interessar, que acontecerá se me vender para outro amo? Para que sirvo agora? – continuou chorando e pude apenas ficar ali, enraizada no lugar, enquanto o pranto da jovem macerava meu coração. – Você me ensinou a não conformar-me, a defender-me, inclusive a acreditar que valho algo! Quando tiver outro amo, desobedecerei a uma ordem ou olharei como não devo. Já não posso ocultar quem sou e certamente me darão uma surra ou me matarão por isso!
Todo o corpo de Gabrielle tremia e eu não sabia se era de medo ou de raiva. Pelos deuses, tão pouco clara tenho sido com a jovem sobre minhas intenções? Certo, nunca falei de nosso futuro juntas, não? O que parecia uma linha de ação tão clara ficou sem ser dito entre nós.
– Gabrielle, venha cá. – supliquei, abrindo os braços e aceitando com prazer a sensação de seu pequeno corpo envolta cuidadosamente entre eles. Estreitei-a com mais força, tentando que de algum modo sua dor transpassava meu próprio corpo. – Amor meu, sinto muitíssimo nunca ter-lhe dito isto antes. Gabrielle, nunca tive a menor intenção de afastá-la de mim de maneira alguma. Amo você e quero que fiquemos sempre juntas. Perdoe-me por não ter deixado claro. Pensei tantas coisas, mas disse muito poucas.
Beijei sua testa e senti que seu pequeno corpo ia parando de tremer. Encostei meu rosto na suavidade sedosa de seu cabelo dourado, aspirando seu aroma maravilhoso. Afastei-me um pouco para olhar em seu rosto e agora foi a minha vez de secar suas lágrimas.
– Diga-me Gabrielle, que presente eu posso lhe dar para tentar remediar todo o sofrimento que lhe causei?
– A liberdade. – respondeu, com os olhos verdes cravados com franqueza nos meus.
Eu sabia, é claro, que essa seria sua resposta. Se não o fosse, tinha a intenção de concedê-la de todo jeito.
– Pois que assim seja. A partir deste mesmo instante, é uma mulher livre, Gabrielle. – disse baixinho, ainda que meu coração se sentisse aflito.
– É sério?
– Sim, totalmente. – afastei-me dela e sentei-me na beirada da cama, no lugar que ela ocupara anteriormente.
– Assim tão fácil? – Gabrielle parecia perplexa.
A situação era muito grave, mas não pude evitar começar a rir ao ver seu espanto.
– Na verdade, demorará uns dias para ser oficial, mas para todos os efeitos, é livre, Gabrielle.
O sorriso que iluminou seu rosto… Deuses, oxalá pudesse capturá-lo. Sua expressão maravilhada e reverente… A guardei em minha memória, para o dia em que se fosse e apenas me restassem as lembranças.
Gabrielle regressou para diante da varanda aberta. Devia de estar embargada por um sentimento de novidade e poder. Via em seu rosto e sua expressão me cobriu de um prazer indescritível, ao saber que era eu quem fizera tudo realidade para ela.
– Sou livre… Não sou escrava. – disse para si mesma, contemplando o céu noturno. Voltou-se bruscamente e olhou-me diretamente nos olhos. – E se você me pedir que compartilhe seu leito e eu me negar, que aconteceria?
– Me entristeceria muito, acho. – contestei, com um sorriso amargo – Mas é livre e, portanto, tem a liberdade de compartilhar seu leito com quem quiser.
– Poderia sair… Deixar o palácio, agora mesmo, sem olhar para trás? – perguntou, virando-se para olhar as luzes de Corinto.
– Sim, Gabrielle – respondi, ainda que meu coração estivesse parando em meu peito. – Poderia ir embora daqui… De mim, o mais rápido que puder. De fato. – continuei com tristeza – Não estranharia nada se o fizesse.
Abaixei a cabeça e fiquei contemplando o chão, esperando ouvir o som seco da porta. Para minha surpresa senti a terna suavidade da mão de Gabrielle acariciando meu rosto e afastando meu cabelo dos olhos.
– Diria às pessoas? – perguntou Gabrielle suavemente.
– Que se foi? – perguntei, olhando-a confusa.
– Não, sua boba – disse rindo – Que já não sou sua escrava.
– Bem – disse, sem saber muito bem por onde começar. – Teria que dizer a algumas pessoas. Estou certa de que Delia quererá saber para onde está indo e teria que lhe preparar uns documentos para que possa viajar.
– Xena, do que está falando? – Gabrielle enrugou a testa, bastante desconcertada.
– Pois, aah… Mm… Gabrielle, do que você está falando? – lhe perguntei, percebendo de repente que falávamos de coisas diferentes.
– Que diria para as pessoas… Sabe? Que sou livre, para que possa andar por todo o palácio e entrar na biblioteca de Corinto sem que me prendam. Xena, a que acha que me referia? – Gabrielle me olhava como se tivesse enlouquecido.
– Achava… Quero dizer, se você quiser… Gabrielle, está dizendo que ficaria comigo… Aqui?
– Mas teria que dizer para as pessoas. Não quero que pensem que continuo sendo escrava. – a loirinha ergueu-se diante de mim, com uma expressão levemente desafiante nos olhos verdes.
– Gabrielle – disse, levantando-me de um salto e quase a derrubando no chão. – A faria minha rainha! – exclamei.
Começou a rir ao ouvir isso e rodeou minha cintura com os braços.
– Não quero ser rainha, Xena, apenas sua esposa.
Fiquei totalmente sem fala e levantei Gabrielle em meus braços, beijando-a com todo o meu ser. Acho que nunca antes conheci tamanha felicidade. Poucas marcas atrás eu queria matar tomada pela raiva e pelo ódio e agora contemplava esse momento como fora de mim, como se observasse uma desconhecida. Tudo isto se devia a Gabrielle. Tanto se minha amante admitia como se não, havia algo nela, algo único e abençoado pelos deuses. Jurei, para mim e para minha futura esposa, que estaria para sempre ao seu lado, apoiando-a.
– Olha Xena… Vê aquela estrela? – Gabrielle me levou até a varanda.
– Mmm, é nova. Não sei quando a vi pela primeira vez, mas é bem nova e brilhante. – disse, colocando-me atrás dela e rodeando-a com os braços. Senti o calor do corpo de Gabrielle contra meu peito e a beijei na cabeça.
– Você acredita que é verdade que os deuses lançam diamantes ao céu para criar as estrelas? – perguntou com inocência.
– Acho que é uma explicação tão boa quanto qualquer outra. – repliquei.
– Eu a vi pela primeira vez quando vínhamos para Corinto. Sabe a parte alta de sua tenda, onde os postes se cruzam no centro e há uma abertura na lona, para meter ali o poste central? Uma noite vi essa nova estrela pela abertura da tenda. Estava deitada ao seu lado, pensando no estranho que era que desejasse isso de mim. Nunca dormira com nenhum de meus amos anteriores – não uma noite inteira. Essa noite, adormeci e tive um sonho.
Gabrielle olhou-me e sua expressão me disse que pensava se poderia tratar-se de uma de suas visões. Sorri e a beijei com ternura, incentivando-a a falar com franqueza.
– Diga-me meu amor… Era esse tipo de sonho? – perguntei.
– Acho que não saberei até que aconteça. Quer saber o que sonhei?
– Conte-me, por favor. – sussurrei.
– Eu estava deitada na cama de nosso quarto e você estava de pé ao meu lado. Ajoelhou-se junto à cama e Delia colocou um bebê em seus braços. Quando a vi, você tinha os olhos cheios de lágrimas e, por cima de seu ombro esquerdo, vi a estrela através da janela. Delia disse que sua filha seria algum dia uma governante tão maravilhosa quanto sua mãe.
– Isso é tudo? – perguntei, querendo saber de repente todo tipo de coisas.
– Sim – respondeu Gabrielle. – Que acha disso, Xena?
– É do que gostaria, Gabrielle… Filhos?
– Seus filhos. – contestou taxativamente.
Comecei a rir e a estreitei mais.
– Gostaria também, mas temo que me falte o equipamento necessário para produzir os resultados desejados.
Gabrielle se virou em meus braços para olhar-me de frente.
– Talvez se eu fizer uma oferenda todo dia para Athena, ela nos abençoe. – disse muito séria, com olhos esperançados.
– Podemos tentar sem dúvida, amor. Faz muitas estações que não falo com ela, mas verei o que tem a dizer. – repliquei.
– Tem falado com a deusa… E ela fala com você? – perguntou Gabrielle, boquiaberta de espanto.
– Sim. – comecei a rir ao ver o rosto de Gabrielle. – Não quero assustá-la e não é que já estive no Olimpo nem nada no estilo, mas alguns dos deuses me visitam de vez em quando. Exceto Ares, porque temos um acordo. Ele não me chateia e em troca, eu não lhe dou uma surra diante dos mortais. – terminei.
Ao falar dos deuses, sobretudo de meu antigo mentor, o deus da guerra, lembrei quanto tempo fazia que não pisava no templo de Athena. Antes da queda de Atenas, a batalha final de minha campanha para apropriar-me do Império Grego, eu passei minha lealdade de Ares para Athena. Ainda que os dois dominassem o Olimpo com respeito à guerra e aos guerreiros, Ares perpetuava o caos e a destruição, enquanto que Athena era a patrona do aspecto disciplinado da guerra. Às vésperas de minha maior campanha, tomei uma decisão – dei as costas para Ares e sua brutalidade. Renunciei à loucura e ao desperdício de suas táticas, finquei meus joelhos e recebi as bênçãos de Athena como sua eleita. A partir daquele dia, fui fiel à gloriosa estratégia bélica de Athena.
Um beijo nos lábios devolveu-me ao presente e sorri pela deliciosa sensação.
– Amo você, Xena. Sinto tê-la magoado. – disse Gabrielle suavemente.
– Amo você, Gabrielle. Prometo, farei tudo o que estiver em minhas mãos para não magoá-la nunca mais.
Ficamos assim um tempo, contemplando nossa estrela, como começou a chamá-la Gabrielle, e falando de nosso futuro. Eu nunca fui de falar muito, mas jurei a mim mesma que Gabrielle nunca mais voltaria a por em dúvida meu amor por ela devido ao meu silêncio.
Por fim, regressamos a nossos aposentos, de mãos dadas. Estou certa de que ouvi um claro suspiro de alívio por parte da guarda do palácio. Assim funcionariam as coisas entre Gabrielle e eu, muitas estações depois. Nas raras ocasiões em que discutíamos, o palácio inteiro segurava a respiração, até que fazíamos as pazes e a vida podia continuar no seu ritmo habitual.
Essa noite me deitei na cama com Gabrielle em meus braços, em cujo belo rosto havia uma expressão de paz e contentamento. Sorri antes de unir-me a ela em sonho. No dia seguinte, Kassandros e os demais seriam considerados culpados ou inocentes e então eu pronunciaria a sentença. A corte levaria a surpresa de sua vida. Sorri de novo e fui adormecendo para reunir-me com minha amante nos domínios de Morpheus.