Senti a presença de outra pessoa no quarto antes que a pesada tapeçaria se afastasse da janela principal e o sol da primeira hora da manhã me fizesse estremecer, ainda que continuasse com os olhos fechados. Sylla se moveu pela habitação, preparando as coisas para minha manhã. Como minha donzela pessoal, fazia suas tarefas com o devido silêncio respeitoso. Tanto se tivesse dormido toda a noite como se tivesse desmaiado no chão antes do amanhecer, Sylla me despertava todas as manhãs ao sair o sol. Normalmente eu já estava acordada, quase sempre já trabalhando em meu escritório bem antes dela entrar em meus aposentos.

Sylla geralmente deixava a luz da manhã entrar no quarto e logo começava a acender as lamparinas ou velas adicionais. Recolhia a roupa que deixara jogada por aí ao despir à noite, se ocupava de me preparar o banho e então me trazia a refeição matinal. E não era diferente quando viajava. Sua rotina nunca variava e sei que agradecia que meu temperamento tivesse se suavizado ao longo dos anos. Antes levava sua boa dose de xingamentos e insultos de minha parte, mas em manhãs como esta, quando tinha essa ressaca que queria morrer, sei que a tendência era voltar a ser como aquela antiga Xena.

O curioso era que Sylla nunca me contestava, nunca saía da habitação chorando um mar de lágrimas, e ainda mais assombroso era o fato de que não recolhia suas coisas e ia embora. Era uma empregada, não uma de minhas escravas, o qual, já por si só, era bastante raro. Entrou no castelo quando seu pai morreu, um leal soldado de meu exército que tinha certo prestígio no campo de batalha. O dia em que Delia me perguntou se a menina podia trabalhar para mim, fiz o que sempre fazia então, há umas dez estações. Torci os lábios e encolhi os ombros como se tanto fizesse.

Agora, Delia era outra história. Pergunto-me porque era a única que podia sair livre disso. Posso dizer com franqueza que até aquela época, se alguém, exceto minha cozinheira Delia, me tivesse feito essa mesma pergunta, teria a agarrado e a tomado ali diante de meus homens, e então deixaria que trabalhasse para mim. Por quê? Apenas porque podia, suponho.

Delia é o mais parecido a uma amiga que jamais tive em toda minha vida. Era esposa do capitão de maior confiança que já tive. Galien era mais que um soldado, era um mentor e um confidente, talvez a única figura paterna que aceitei em minha vida. Quando agonizava no campo de batalha na Galia, o segurei e vi como sangrava até a morte, sabendo que pouca coisa podia fazer para salvá-lo. Disse-lhe que qualquer desejo que tivesse se estivesse em meu poder, lhe concederia. Extraiu de mim naquele dia a promessa de que cuidaria para que sua esposa estivesse sempre amparada. Quando voltei dessa campanha, Delia entrou no castelo.

É a única pessoa em toda a Grécia que parece não ter medo de mim. Discute comigo, me dá broncas e no geral me trata como a criança malcriada que sou quase todo o tempo, e eu a quero por isso. Acabou entediada de não fazer nada no castelo e quando começou a cozinhar para mim, pus o cozinheiro anterior na rua a patadas. Era uma deusa culinária e meus banquetes no palácio de Corinto se converteram na inveja de todo meu império.

Ergui-me sobre um cotovelo e abri lentamente os olhos, o que não fez senão aumentar minha dor de cabeça. Fiquei olhando um momento enquanto Sylla se dedicava a seus afazeres matutinos. Olhei a escrava que compartilhava minha cama. Tinha o rosto mais relaxado ao dormir e não consegui evitar estender a mão e roçar seus lábios com a ponta dos dedos. Suas pálpebras se abriram imediatamente, revelando uns assustados olhos verdes.

– Minha senhora. – exclamou Gabrielle e praticamente se jogou da cama para adotar sua postura de joelhos no chão.

Bem, não era isso exatamente o que eu tinha em mente, mas foi difícil não sorrir para a jovem escrava. Estava nua e não parecia perturbada pelo fato de que Sylla se movesse a sua volta.

– Bom dia, Senhora Conquistadora. – disse minha donzela. – Já estão aqui os jovens com a água para seu banho. – os olhos de Sylla indicaram o corpo nu de Gabrielle e não sei se a preocupação de minha donzela era por Gabrielle ou pelos jovens da cozinha.

Um sentimento passou por mim rapidamente e percebi que não me agradaria que alguém visse Gabrielle nua, a não ser eu.

– Gabrielle, volte para a cama. Sylla acha que vai pegar um resfriado aí embaixo. – disse rindo.
Gabrielle se meteu de novo debaixo dos lençóis que eu segurava no alto e fiz um gesto a Sylla, que deixou entrar vários jovens carregados com baldes de água para a grande banheira que usaria para meu banho. Tiveram que fazer várias viagens, mas nenhum desviou o olhar, nenhum, exceto um jovem. A tentação de ver a Conquistadora na cama deve de tê-lo superado, e ergueu os olhos e os pousou não em mim, mas em minha escrava. Tive um flash de uma época anterior de minha vida e vi a mim mesma levantando-me da cama e destripando o menino com minha espada.

Em vez disso, um rosnado grave saiu retumbando de meu peito e vi Gabrielle com o canto do olho. Olhou-me rapidamente, estou certa de que se perguntando de onde saía esse ruído. Quando estava furiosa, podia soar como o rosnado de um cachorro e quando estava excitada, como o ronronar de uma pantera. Nesse exato instante, soava tudo menos satisfeito ou sedutor.

– Se quer viver mais um dia, rapaz, é melhor que pouse esses olhos em outro lugar. – soltei.
Sylla viu o problema iminente e se apressou a intervir antes que a coisa avançasse.
– Andem, rapazes… Ao trabalho. Já há água suficiente, fora todos daqui. – Sylla tirou os rapazes do quarto e os enviou pela escada de serviço.

Deitei a cabeça no travesseiro justo no momento em que alguém começou a bater na porta principal da habitação exterior.

– Pelas pelotas de Ares! Será que ninguém sabe a que hora fui dormir essa noite? – gritei, fazendo que a cabeça doesse ainda mais.
– É seu capitão, Senhora Conquistadora. – me informou Sylla.
– Está bem, está bem. – fiz um gesto a Sylla para que deixasse Atrius entrar.
– Senhora Conquistadora – disse Atrius em voz baixa, o que fez com que subisse pontos, tendo em conta como estava minha cabeça. Os perdeu, no entanto, por sua expressão risonha ao ver Gabrielle ainda em minha cama.
– Atrius, tem algum motivo para me incomodar antes de ter tido sequer a oportunidade de me banhar?
– Perdoa o cedo da hora, Senhora Conquistadora, mas disse que desejava regressar a Corinto assim que os problemas aqui estivessem resolvidos. Parece-lhe bem hoje?

Pensei nisso um momento. Agora estava desejosa de voltar para casa e me perguntei se teria algo que ver com a jovem que estava em minha cama.

– Sim… Hoje está bem, parece que o bom tempo vai nos acompanhar. Podemos estar prontos para o meio da manhã?
– Sim, Senhora Conquistadora. – replicou Atrius.

Assenti fazendo-lhe um gesto para que se retirasse e empurrei os travesseiros até a cabeceira da cama. Sentei-me ali e olhei para Gabrielle, que estava deitada com as mãos cruzadas sobre o estômago. Pensei em aproveitar-me da bonita escrava, mas pensei melhor ao dar-me conta de que daqui a poucas marcas meu exército estaria pronto para marchar de volta a Corinto.

– Parece que voltaremos para casa hoje, Sylla. Temo que Gabrielle não esteja equipada para uma viagem. Leve-a ao mercado e compre o que necessite até que regressemos ao palácio. Tem algo que possa lhe emprestar por enquanto? Não quero que nenhum dos soldados a veja com a túnica.
– Sim, Senhora Conquistadora. – respondeu Sylla.
– Gabrielle, vá com Sylla e, pelos deuses do Olimpo, abre a boca ou ela acabará vestindo-a como a uma virgem de Hestia.

Sorri para as duas com humor, mas somente Sylla sorriu, balançando a cabeça diante de meus modos. Gabrielle parecia um pouco aturdida e confusa por tudo que havia ocorrido nas últimas doze marcas. Foi atrás de Sylla, vestida com a bata que vestira à noite, com o rosto tão impassível e inexpressivo como sempre. Perguntei-me quanto tempo fazia que essa menina não sorria.

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Quando já estava lavada e pronta para viajar, Sylla trouxe novamente Gabrielle para o cômodo onde estava arrumado o desjejum. Minha donzela ficou esperando que a atendesse enquanto eu usava meu anel para selar uma mensagem que deveria ser enviada com antecedência para Corinto. Por alguma razão, a mim parecia importante que as habitações que havia no palácio do outro lado do corredor de frente às minhas estivessem preparadas para a chegada de Gabrielle. Ri de mim mesma. Deuses, alguém poderia achar que levava minha rainha para o palácio. Curiosamente, era exatamente assim que me sentia.

Como de costume, Gabrielle se ajoelhou, com a cabeça inclinada, esperando pacientemente. Quando levantei o olhar, quase não a reconheci. Parecia mais magra com a roupa que envolvia sua pequena figura e pensei que nossa primeira tarefa deveria ser alimentar a jovem adequadamente.

– Muito bem. Bom trabalho, Sylla.
– Obrigada, Senhora Conquistadora. – respondeu minha donzela com um leve sorriso.

Meus elogios não eram frequentes, mas estava aprendendo que obtinha melhores resultados, tanto do serviço contratado como de meus escravos, se de vez em quando deixava sair um pequeno elogio. Não vinha naturalmente, isso de tratar as pessoas com compaixão. Não entendia porque, mas por outro lado, nunca havia parado para analisar minha vida até recentemente. Por que a grosseria e a ira ciumenta são emoções tão naturais para mim? Repasso minha vida e vejo apenas uma bruma de escuridão que me envolve incapaz de ser penetrada pela luz. Há alguns dias me pergunto se existe uma luz suficientemente brilhante para dissipar este tipo de escuridão. Normalmente penso nisso mais ou menos ao mesmo tempo em que me pergunto se tentar ser uma soberana mais bondosa a estas alturas do jogo terá algum valor para quando me encontrar com Hades. Alguém poderia superar um passado como o meu?

– Sylla, nós partiremos logo. Enviarei um de meus guardas para buscá-la. Quero que vá com Kuros, no carro do curador. Gabrielle montará comigo. – terminei, despedindo a jovem. Os olhos de Sylla se arregalaram quando lhe disse que minha escrava iria a cavalo, mas fechou a boca e saiu da habitação.

Gabrielle movera apenas um músculo durante todo esse tempo.

– Gabrielle, tem fome? – perguntei.
– Não necessito de muita coisa, minha senhora. – respondeu.

Todas as respostas que dava eram pensadas para parecerem ambíguas em todos os sentidos. É um dos métodos com os quais havia conservado o favor de seus amos. Agora eu duvidava que pudesse responder a uma pergunta direta sem insistir um pouco.

– Olhe para mim, menina.

Gabrielle levantou devagar a cabeça, para não desobedecer, mas percebi que era difícil para ela olhar-me nos olhos.

– Você está com fome? – perguntei de novo, vocalizando bem cada palavra.

Assentiu com a cabeça, baixando os olhos ao mesmo tempo.

– Sim, minha senhora. – contestou com um tom bastante inseguro.
– Então vem aqui e come.

Ela ergueu o olhar e então voltou a abaixar a cabeça, mas não sem que eu percebesse mais confusão em seus olhos. Acho que pensava que iria lhe passar a comida com a mão ou que colocaria um prato no chão. Eu já havia treinado algumas escravas corporais para que comessem apenas de minha mão, reforçando a idéia de que apenas eu a possuía. Não tinha a menor intenção de voltar a tratar uma escrava dessa maneira, nunca mais.

Levantei-me da cadeira e me agachei sobre um joelho diante dela. Levantei seu queixo com delicadeza e percebi, por sua maneira de afastar os olhos de mim, que esperava que lhe desse um tapa com a mão. Usei-a, em troca, para afastar o cabelo loiro de seu rosto. Acariciei sua face com o polegar durante uns segundos, como se fosse um potrinho assustado que tivesse afastando do lado de sua mãe pela primeira vez.

– Tudo bem. – disse e me levantei, levando-a comigo. – Quando eu comer será na mesa, e é aí que desejo que coma também. Sente-se. – a coloquei na cadeira que havia de frente para a minha e coloquei duas travessas diante dela. – Coma tudo o que quiser do que há aqui, Gabrielle. Entende?
– Sim, minha senhora. – respondeu.

Virei e fui à outra mesa pequena do outro lado da sala, fingindo que estava muito ocupada servindo-me de uma pequena taça de vinho. Na realidade queria ver se a jovem comeria os alimentos que colocara à sua frente. Servi também uma taça de água, voltei com as duas coisas e coloquei a água à sua frente, ficando com o vinho. Raramente permitia que os escravos bebessem álcool.

Gabrielle mordeu timidamente um figo partido e mordiscou a fruta longo tempo. Sentei frente a ela e tirei meia dúzia de pergaminhos de uma caixa, colocando-os na mesa ao meu lado. Pus-me a ler os pergaminhos, em sua maioria petições e solicitações mais aborrecidos que o Tártaro, mas fingi estar absorta e não prestando atenção à jovem que estava diante de mim. Minha visão periférica é excelente e enquanto lia, observava Gabrielle.

Quando se deu conta de que o que falei da comida era sério, se pôs a comer de verdade e pensei que a jovem deveria estar morrendo de fome. Fez desaparecer uma travessa inteira de comida e quando ia pela metade da outra, pareceu ficar sem energia. Pegou a taça de água e a bebeu inteira com apenas alguns goles.

– Gabrielle – disse em tom casual, sem afastar os olhos do pergaminho que estava lendo. – Se ainda tem sede, pode pegar água da jarra que está na mesinha.

Fingi novamente que não me importava o que fizesse depois de ter lhe dado permissão, mas a observei discretamente dentro de meu campo de visão. Olhou para a jarra e então para mim de novo. Era evidente que a jovem queria outra taça de água, então porque não levantava e a pegava? Rodeava a taça com as mãos apertadas e vi que tinha os nós dos dedos brancos pelo que pude apenas interpretar como medo. Finalmente se levantou e se serviu de água, sem deixar de me olhar o tempo todo. Serviu-se de três taças e as bebeu inteiras antes de voltar para sua cadeira. Teria começado a rir pelo que fazia se não tivesse me entristecido profundamente.

Gabrielle era o vivo retrato da escrava derrotada. Não precisava ter cicatrizes nas costas para saber o que era castigo, especialmente como escrava corporal. Imagina uma bofetada no rosto, não forte o bastante como para provocar uma contusão ou cortar a pele, ou um chute na canela, suficiente para fazê-la tropeçar e arranhar as mãos, ou até mesmo a privação de alimentos durante dias seguidos. Essas eram as formas em que se castigava uma escrava cujo corpo deveria se manter intocado. Os amos anteriores tinham brincado com essa menina, fazendo-a passar por privações até conseguir que se comportasse como um cachorro surrado? Davam-lhe permissão para depois puni-la assim que obedecia?

É claro que sim. Era o que eu costumava fazer, sem nenhum motivo além de que me divertia.

Nota