Depois de alguns minutos de cavalgada chegaram até uma região costeira. À esquerda delas, na entrada para a mata, uma casa mais ou menos do tamanho da de Aeleen, porém bem menos arrumada se encontrava. A chaminé fumegante indicava atividade lá dentro. À frente delas, estava um imponente penhasco, e lá embaixo o mar agitado batia nas pedras. Um pouco mais à direita, havia um carreiro, e descendo sentido à direita, era possível chegar na praia de areia admiravelmente limpa, cheia de lindas conchas. Lá embaixo, um barco jazia na praia, e na área ao lado da casa, havia algum material de pesca, perto de alguns potes de cerâmica.

Lizzie desmontou do cavalo e ajudou Aeleen a descer também, amarrando em seguida o animal numa árvore perto dali, para então se dirigir à casa em seguida. Empurrou a porta dando passagem à sua convidada, que timidamente adentrou o recinto. Era uma casa pequena como a dela, quase com a mesma estrutura. Na frente de um fogão de pedras, estava um homem mais ou menos da altura de Lizzie, cabelos até os ombros, lábios finos e grandes olhos castanhos. Ele trajava uma camisa branca e uma calça marrom, de couro como a de Lizzie, porém mais rústica e mais surrada.

– Tio, essa é a Aeleen.

Aeleen no mesmo momento notou que Lizzie havia usado o pronome definido “A” antes de seu nome, então supôs que Elizabeth havia comentado com seu tio sobre o sonho que tivera.

O homem com um pouco de dificuldade levantou-se da cadeira onde repousava e caminhando arrastando uma perna até a porta, estendeu a mão para a garota loira.

-John Mabe. Seja bem-vinda à nossa casa, qualquer convidado de Lizzie, é meu convidado também.

Aeleen se apresentou, retribuindo o cumprimento e agradecendo.

O homem notou que ela olhou para sua perna e riu como quem não fazia muito caso.

-Armadilha para urso. Esses caçadores da cidade deixam espalhadas por todos os bosques…Faz 3 anos que uma me pegou de jeito. É uma sorte que eu ainda tenha a perna. – disse caminhando de volta e arrastando o passo para sua cadeira.

Elizabeth fez com que Aeleen entrasse e fechou a porta atrás delas.

-Sinto muito – disse Aeleen – mas mesmo depois desse tempo todo, ainda dói?

-Pois veja você, a geringonça me cravou nos nervos direitinho. Essa perna nunca será a mesma, é uma pena. Mas ao menos ainda a tenho.

-E o senhor não toma nada para a dor?

-Minha filha – riu o homem com uma risada de trovão, de bom humor – os médicos da cidade não querem atender um velho mestiço. E esse velho mestiço foi tolo demais quando jovem e achou que aprender a caçar e lutar era mais importante que saber sobre algumas plantas que pudessem fazer algum bem. Posso reconhecer umas duas ou três, para uma dor ou um resfriado, mas não entendo do uso de muitas delas. E essa minha teimosa sobrinha está indo pelo mesmo caminho.

Elizabeth revirou os olhos e riu.

-O senhor sabe que eu não tenho esse dom.

-Porque o senhor não tenta misturar algumas folhas de carvalho com arnica e fazer um cataplasma. Imagino que possa ajudar na nevralgia…

John coçou o queixo por alguns segundos ponderando e então falou calmamente.

-Isso pode fazer algum sentido. Eu já tentei a arnica, mas nunca folhas de carvalho. Para ser honesto, nem sabia que serviam para algo além de… Ficarem presas ao carvalho. Pode apostar que tentarei e te direi depois se serviu de algo.

Aeleen sorriu com simpatia. Havia simpatizado com o tio John já de início. Ela sentia que ele era um homem de bem, e seus traços lembravam Pavati. Além disso sua risada estrondosa tinha um som gostoso de se ouvir, tão espontânea, coisa que na cidade não existia, definitivamente.

Após a refeição, eles conversaram por algumas horas, Lizzie contou a seu tio como havia sido o salvamento de Aeleen e os homens que enfrentaram. John Mabe ria com deleite ao ouvir que sua sobrinha tinha chutado a bunda de mais que o dobro dela.

-Parece que você aprendeu algumas coisas comigo, não é? – dizia ele orgulhoso, fazendo com que Aeleen descobrisse onde a outra garota havia aprendido a lutar.

Quando a conversa cessou, John retirou-se para seu pequeno quartinho, e se jogando numa rede, caiu no sono em seguida.

O quarto de Lizzie tinha um catre simples, o qual ela destinou à sua hóspede, retirando de algum lugar uma rede a amarrando-a em ganchos na parede, sobre a qual ela mesma se acomodou.

Devido ao calor, ela não fechou a janela, o que possibilitava que raios de luar invadissem o quarto. Aeleen estava deitada olhando para o teto, e a alguma distância dela, num embalo quase imperceptível, estava Lizzie.

-Você acha que estamos seguras aqui?

-Bem mais seguras do que em qualquer outro lugar – respondeu Lizzie confiante.

-Eles podem seguir o rastro.

-Não, Willhelm não fará isso.

-Foi um ato de misericórdia você deixá-lo vivo. Mas me pergunto por que ele?

Elizabeth ficou em silencio por alguns minutos e então respondeu.

-Eu não fiz por ele. Fiz pela criança. O filho que Marguerite carrega, pertence a aquele traste. Mas como a criança não tem culpa, antes crescer com um pai traste do que crescer sem pai.

Aeleen sussurrou qualquer coisa concordando.

-Posso lhe perguntar algo, Aeleen?

-Sim.

-Por que eles te acusaram?

-Por causa das minhas ervas. – respondeu calmamente.

-Sim. Essa é a versão que todos conhecem. Mas eu quero saber o outro motivo.

Aeleen suspirou pensando na promessa que tinha feito à Marguerite, sobre não contar a ninguém. Não importava mais. Já tinha quebrado de qualquer forma.

-Porque eu me recusei a indicar uma erva abortiva para Marguerite Stokes.

Elizabeth engoliu em seco, e uma ruga de preocupação se formou em sua testa. Suspirando frustrada, encerrou a conversa.

-Certo. Tenha um boa noite, Aeleen O’Riley.

Manhã seguinte…

Lizzie desceu da rede, espreguiçando-se e olhando pela janela. O sol já estava em pleno vigor lá fora, indicando o dia quente que seria, e a cama ao lado estava vazia. Um centro de preocupação começou a lhe incomodar o estomago, mas ela saiu rapidamente do quarto para cozinha, onde viu uma torta de amoras já começada em cima da mesa. Saiu da cabana olhando para os lados, e viu Aeleen sentada numa pedra a alguns metros do penhasco olhando para o mar. A preocupação sumira.

Gritou um “hey” para chamar a atenção da garota e então caminhou até ela, sentando-se ao lado.

-Bom dia. – disse a loira serenamente.

-Bom dia. Acordou cedo.

-Sim, acordei cedo, conversei muito com seu tio, e colhi algumas amoras para fazer uma torta. Depois ele foi para a cidade vender algumas coisas.

-O velho tio Mabe sempre tentando negociar suas artes. Espero que ele consiga algo hoje.

-É do artesanato que faz que vocês tiram o sustento?

-Em parte. Ele ganha um pouco de dinheiro com as cerâmicas e com o artesanato. Às vezes vendemos algumas pérolas que achamos na praia… às vezes conseguimos alguma comida caçando ou colhendo o milho, como agora. Às vezes de outras formas também…Enfim, a gente se vira.

-Não é muito diferente de como eu vivo. – Concordou Aeleen.

A jovem loira tinha ido até ali para pensar enquanto olhava para o mar. Embora não demonstrasse isso exatamente, estava preocupada em ser algum tipo de foragida, preocupada porque achava que uma vida de fugas muitas vezes poderia ser pior do que a ausência de uma vida em absoluto. Agora podia entender melhor como os nativos americanos, ou mesmo seus mestiços viviam, sendo sempre olhados com certo desprezo por uma parte da população que chegava do velho mundo tomando seu território e suas riquezas naturais. Aquilo não era justo de nenhuma maneira, e ainda assim havia povos que não eram capazes de levantar uma arma contra qualquer invasor, como era o caso da pacífica tribo Hopi, da qual Pavati, Lizzie e John Mabe descendiam.

-Sabe, isso não pode durar para sempre

Aeleen voltou os olhos para a morena, prestando atenção no que ela dizia.

-É tão errado o que eles estão fazendo com esse povoado. Será que ninguém enxerga? Mas é como se o povo deixasse essas coisas ruins que o reverendo diz entrar nas cabeças deles e acham que aquilo está certo, mesmo quando atos como esse atentam contra a vida. Ele diz ser um homem que serve o Criador. Mas o Criador sobre o qual eu aprendi não aprovaria que gente inocente fosse morta.

-Eu acho que o grande problema dessa gente é o medo, Lizzie. O medo distorce a fé das pessoas. O medo é a própria fé distorcida, ambos são forças espirituais. Aquelas pessoas temem tanto o inferno, que não percebem que muitas vezes o inferno não é aquilo que está do outro lado, mas sim o que elas estão vivendo.

-E você não teme o inferno?

Aeleen riu timidamente, e olhou para o chão refletindo. Lizzie continou.

-…não que eu ache que você teria motivos para isso, mas…

– Ninguém é santo, Lizzie. E muito menos eu seria. Mas eu não sou daqui, e eu não vim da Inglaterra ou da Espanha como a maioria das pessoas daqui. Não me entenda mal, eu tenho esse lado espiritual e acredito num Criador. Eu só não acho que as coisas sejam exatamente como aquela gente diz. Se o Criador é tão bom, por que ele castigaria os filhos que erram de forma permanente em vez de dar-lhes uma chance de aprender a fazer o certo?

-Você me disse que veio da Irlanda, eu lembro disso. Mas lá as pessoas não são…puritanas, presas a esses dogmas como o Reverendo.

-Algumas comunidades sim. E eu não diria presas exatamente. Cada um tem uma devoção que melhor lhe sustenta, e acredite que confusões por causa de religião existem em todos os lugares, lá também. Mas desde que eu nasci eu convivi com minha vó e minha mãe me falando sobre o respeito à natureza. Para o nosso povo, a natureza é sagrada, e sendo a vida parte inerente dela, a vida passa a ser sagrada também. Isso vem se passando de geração pra geração há milhares de anos em algumas partes da Irlanda, numa tentativa de não deixar a cultura Celta ser esquecida devido ao fato de ela não ter sido relatada na escrita. A minha avó era uma sh… – pausou hesitante – … uma pessoa muito sábia.

Lizzie olhou para Aeleen rapidamente quando ouviu a última frase.

-O que sua avó era?

-Ela… ela tinha alguns conhecimentos Druida que me passou. Na maioria sobre plantas, curas. Isso é tudo. Minha mãe nunca deu muita atenção pra isso e como meu pai não pertencia à mesma comunidade religiosa que elas, ele não dava a mínima pra qualquer coisa relacionada aos Druidas, porque ele era protestante. Por isso resolveram sair de lá e vir para o “Novo Mundo”, logo depois que minha avó morreu. A Fé do povo é meio dividida por lá…como os puritanos e os quakers por aqui, suponho.

-Pensei que você tivesse aprendido o que sabe com Pavati.

-Em parte sim. Eu tinha 9 anos quando minha avó morreu, ela tinha me ensinado muita coisa, mas nem perto de tudo que ela sabia. Quando Pavati começou a cuidar de mim, ela viu que eu tinha o dom, e quis passar o conhecimento dela para mim. Disse que eu precisava cultivar esse… Dom, porque poderia ajudar as pessoas com ele.

-Ela tinha razão. É algo muito precioso, e apesar da minha origem o valorizar muito, não é algo que eu tenha. Talvez seja porque nunca fui ligada à tribo.

-Por que sua mãe e seu tio saíram de lá?

-Porque são filhos de um homem branco. E o avô dela era o shaman da tribo, um velho amargurado e conservador para o qual era vergonha ter uma neta mestiça do homem branco. Ele apenas a tolerava lá. Mas quando ela engravidou de um homem branco, foi o fim para ele. Ele tinha a esperança de que pudesse de alguma forma restaurar a linhagem se a fizesse casar com um dos guerreiros da tribo, mas ela frustrou os planos dele. Meu tio saiu porque era muito apegado à minha mãe, e não pode suportar a ide ia de abandonar a irmã e compactuar com o avô. Sabe, os Hopi são um povo totalmente pacífico em sua natureza, mas acho que em todo povo aparece uma semente ruim às vezes.

Aeleen acenou num sinal de compreensão.

Após a conversa, Lizzie se levantou dizendo que precisava descer até o rio há uns dois quilômetros dali para pegar algo para o almoço. Aeleen lhe acompanhou por entre as árvores, conversando sobre coisas triviais durante o trajeto. Ambas riam de uma maneira tão espontânea, que pareciam se conhecer a vida toda e não há menos de 24 horas. Enquanto Lizzie esperava os peixes morderem a isca, Aeleen avidamente escaneava a área com seus olhos treinados, procurando sempre algumas folhas que pudessem lhe servir em seus chás enquanto Lizzie perguntava zombando para que serviam aqueles  “matos”. Depois de um momento de dispersão, ao voltar sua atenção para a margem do rio, viu que ali estavam dois peixes médios já pescados, enquanto a água agitava-se furiosamente devido às braçadas de Elizabeth. Ela sorriu balançando a cabeça, e após rapidamente tirar o vestido, pulou no rio também. Sentia a necessidade de um banho desde o dia anterior, e sentir a água naturalmente morna em contato com sua pele, era como se lavar do horror sofrido nas ultimas horas. Enquanto na água, brincaram tal qual duas crianças, pregando peças, jogando água e puxando o pé uma da outra…e por esses simples momentos, Aeleen se deu conta de que sentia algo que já não experimentava desde a morte de Pavati. Ela estava feliz. Havia pessoas na cidade querendo a morte dela, uma víbora conspirando por vingança, mas nesse momento não importava. O mais importante naquela hora era ganhar a aposta que fizera com Lizzie sobre quem chegaria na pequena cascata antes. Ela perdera, mas não era como se importasse.

-Não é justo – exclamou rindo – olhe o seu tamanho e a força dos seus braços.

-Ora, todo mundo tem força. Ela só precisa ser despertada – disse Lizzie lhe espirrando água no rosto.

Algum tempo depois estavam vestidas, com seus cabelos molhados escorrendo pelas costas andando pelo bosque de volta à casa de John Mabe. Aeleen passava os dedos entre suas mexas de cabelo numa tentativa de tirar o excesso de água e desembaraçá-lo, enquanto o cabelo de Lizzie parecia simplesmente perfeito sem o mínimo esforço. Era tão liso quanto o de seu tio, ou o de Pavati.

-Talvez se eu mudasse algo no meu cabelo ficasse mais difícil deles me reconhecerem – ponderou.

-Claro. Difícil seria esconder o resto da sua cara irlandesa. – Riu Lizzie – mas sim, talvez ajudasse em algo.

-Tem alguma sugestão?

-Você ficaria bem com qualquer cabelo, Aeleen. Desde que não resolva usar um moicano, claro. Eles são muito estressados…- disse rindo do seu comentário – Mas talvez uma trança resolva em algo.  – Disse não muito certa.

-Pensei em algo que diferenciasse mais, talvez se eu o cortasse curto, fizesse alguma diferença significativa.

-Seria uma pena, um cabelo tão bonito como esse, mas se é o que te agrada…

-Poderia me ajudar com isso?

-Claro – disse abrindo a porta da cabana e adentrando. Lá, enquanto Lizzie preparava os peixes, Aeleen preparava uma pomada para o Tio John, com as folhas colhidas no passeio.

Naquele dia, almoçaram tranqüilos e com a sensação rara de que a vida é boa, e boas pessoas existem.