Aeleen pouco descansou naquela noite. Estando Elizabeth e John debilitados, ela ficou a maior parte da madrugada acordada, com sua preocupação vigilante, checando por sinais de febre ou de algum possível intruso no meio da noite.

Não se importava com as dores que sentia, sua preocupação maior no momento era diferente de algo físico. O sol brilhava lá fora, da rede em que se balançava levemente podia ver os pássaros acordando com seu gorjear, enquanto Elizabeth e John ressonavam ao lado. O que Lizzie pensava a seu respeito agora lhe preocupava mais do que qualquer coisa, temia que a amiga lhe achasse uma mentirosa, uma pessoa desonesta, afinal havia afirmado tão seguramente que não era uma bruxa, e agora tudo isso tinha acontecido. Não era como se tivesse alguma culpa. Não procurou aquilo, e não entendia ao certo o que se passara. Mas agora, dentro de si sentia uma estranha agitação, como se algum poder borbulhasse.

Levantou-se da rede e caminhou até a janela, se debruçando no batente e olhando para suas mãos. Agitou os dedos levemente e percebeu que a vegetação próxima se movimentou com uma brisa quase imperceptível. Olhou para algumas folhas e gravetos e estendeu a mão em direção a eles, se concentrando. Uma corrente leve de ar atingiu os objetos, e com mais algum esforço, ela os levantou, formando um bolo de folhas e pequenos pedaços de madeira no ar. Estendendo outra mão percebeu que podia manipular o amontoado de acordo com sua vontade, girá-lo.

-Bom dia Aeleen.

A voz lhe surpreendeu e interrompeu sua concentração e o amontoado foi ao chão se esparramando.

-Bom dia – virou-se para Elizabeth que saia da rede e se colocava de pé com dificuldade.

Aeleen caminhou até ela, ajudando-lhe.

-Como você está?

-Meu ombro dói, mas vou sobreviver. – disse com um leve sorriso.

Aeleen retribuiu o sorriso, mas logo o traço de preocupação voltou à sua expressão.

-Lizzie… Sobre o que você viu… Eu não sei o que… Eu não sei como te explicar isso.

Elizabeth lhe olhou seriamente.

-O que você fez, Aeleen?

-Eu não sei. Não é algo que tenha acontecido antes. Não é algo que eu tenha desejado. Mas olhando para trás agora, eu lembro de minha avó me dizendo que eu tinha mais força nas minhas mãos do que eu imaginava. Eu achava que ela estava apenas brincando, eu tinha 8 anos, era uma criança magra e não muito alta. Achava que ela dizia aquilo só para eu me sentir melhor, mas eu não… Eu não sou uma bruxa, eu não menti para você… Por favor, acredite nisso Lizzie. Eu não posso viver com a idéia de você achando que eu menti para você, eu…

-Acalme-se Aeleen – disse a morena segurando suas mãos. – Eu lhe disse uma vez que mesmo que você fosse uma bruxa, eu ainda assim teria te salvado naquele dia. Naquele dia eu fiz aquilo porque de alguma forma eu fui avisada por Pavati de que deveria fazê-lo, mas hoje eu tenho mais certeza ainda de que a coisa mais importante que fiz na minha vida foi te salvar.

Lágrimas começaram a brotar dos olhos verdes e Elizabeth lhe abraçou ternamente.

-Eu tenho medo de ser algo que eu lutei tanto para provar que eu não era.

-Você não é nada de ruim – resmungou com dificuldade a voz rouca de John que acabava de acordar. As duas se apressaram para o lado dele.

-Como se sente tio? – perguntou Elizabeth.

-Já tive dias melhores. Mas isso não importa agora. Vocês duas me escutem bem antes de fazerem qualquer bobagem. Aeleen não tem nada de mal dentro dela.

-Você estava desmaiado, não viu o que eu…

-Eu ainda estava consciente o suficiente para sentir o vento minha filha, mas tenho que dizer que até um morto sentiria tamanha era a sua fúria. Agora me entendam, quando digo que essa garota não tem nada de maligno, não estou dizendo que nada de especial tenha acontecido ali. Na verdade, ela tem poder. Um poder que está além da compreensão dela mesma, mas ainda assim existe.

– “Muita força nas mãos”  – balbuciou Aeleen relembrando das palavras de sua avó. – Ela costumava dizer que para alcançar a força, eu tinha que me livrar da vontade de revidar e achar a serenidade dentro de mim. Eu achava que ela só estava tentando evitar que eu me metesse em brigas.

-Sim, sua avó estava certa. E se ela sabia disso, imagino eu que ela tenha sido uma mulher importante dentro da sua comunidade.

-Ela era uma sacerdotisa druida. – Suspirou Aeleen.

Elizabeth arregalou os olhos.

-E por que você nunca contou isso?

-Eu tinha medo de que vocês achassem que se tratava de algum tipo de bruxaria ou algo assim.

-Por tudo que é mais sagrado, que absurdo minha jovem, se fosse assim a minha tribo estaria cheia de bruxos. Shamans são os inspirados pelos espíritos, os organizadores do caos e não feiticeiros. Sua avó era uma pessoa muito sábia, eu posso te dizer. É uma pena que ela tenha partido cedo, ou ela seria sua guia agora. Você, minha jovem, é o que o meu povo chama de Irayah, um dos combatentes do caos. Eu suspeitei disso por semanas por lembrar de pequenos fragmentos de profecias que ouvi quando jovem, mas agora eu tenho a certeza.

-Mas tio… – começou Elizabeth.

-Deixe seu velho tio falar, você é muito nova para lembrar-se das antigas histórias Hopi.

-Mas eu sequer tenho sangue Hopi, isso não faz sentido – resmungou Aeleen.

-Eu disse que você é o que meu povo chama de Irayah, deve haver milhares de outros nomes em outros lugares do mundo. De tempos em tempos, quando a Ina Maka, a mãe terra entra em desequilíbrio por algum motivo, surge um combatente do caos. Esses são pessoas que tem o dom de dominar algum dos quatro elementos. Você é Irayah, a filha do vento, do ar. Svanis dominam o fogo, Avanish são os senhores da terra e Paruls aqueles que fluem com a água. Cada um dos quatro elementos tem seu poder e sua particularidade, mas devido às leis naturais, alguns conferem mais poder. Ser um filho do vento lhe concede um poder que está além da sua compreensão. O fogo depende do ar para existir, o ar está presente na água, e para as plantas brotarem na terra elas precisam de ar. Quando o ar se movimenta, ele pode ser brando e trazer um alívio num dia quente, ou pode ser devastador, e destruir tudo por onde passa. Ele trás ou afasta as nuvens que trazem a chuva. Ele carrega as sementes, ele molda as dunas, ele constrói e destrói ao mesmo tempo.

-E o que isso a torna, algum tipo de líder?

-Não minha filha, isso a torna uma guerreira feroz.. Eu acho que Aeleen ainda não se deu conta da intensidade do poder que ela tem dentro dela, mas o ar, quando manipulado tem a capacidade de parar quase qualquer coisa posta em curso. Aeleen pode deter flechas ou qualquer coisa atirada para ela apenas com sua vontade.

-Mas como eu nunca… Eu nunca fiz isso antes. Por que agora? Eu não sei combater nenhum caos, eu mal conseguia me defender das outras crianças quando era pequena, eu não sou nenhuma guerreira. – Disparou Aeleen a falar.

-Porque a natureza é sábia, minha jovem. E os bons espíritos e o Criador sabem o que fazem. Irayahs, Svanis, Avanishs e Paruls não podem usar seus poderes em proveito próprio. Se poderes dessa magnitude fossem despertados numa pessoa ambiciosa, haveria consequências catastróficas. O poder de um combatente do caos só é despertado pela primeira vez quando ele precisa proteger alguém que ame. Pra proteger sua tribo, seus entes, e suas almas irmãs.

Aeleen e Elizabeth se olharam, e a morena podia jurar que viu as bochechas da loira corarem. Por um momento esqueceu-se de todas as suas preocupações do momento e se sentiu a pessoa mais feliz do mundo.

-E é por isso que ele não iria ser ativado por causa do ódio que você sentia pelos homens do Reverendo, pela vontade de revidar a agressão deles. Quando você deixou de pensar em vencê-los e seu objetivo se tornou salvar Elizabeth, você por mero instinto fez o que precisava. Entenda minha jovem que eu sei dessas coisas porque são histórias contadas pelo meu povo. Eles sempre falavam de guerreiros do passado, e dos próximos que viriam, mas na minha existência eu nunca conheci nenhum. Se sua avó tivesse vivido, certamente ela a teria guiado nessa fase, é o que os sacerdotes, os xamãs e os pajés fazem. O nome não importa, mas sim a missão.

Aeleen fechou os olhos e massageou a testa por um momento, se dando conta do fardo que havia acabado de ser depositado em seus ombros.

-O desequilíbrio que eu tenho que corrigir é o que está acontecendo na cidade, não é?

-Possivelmente sim. E talvez haja outros que você ainda não conhece.

-Mas não faz sentido, eu nasci há 20 anos, há 20 anos isso não acontecia, e claramente desde criança minha avó sabia o que eu era, então…como a natureza iria saber que 20 anos mais tarde haveria um desequilíbrio?

-Parece que algumas linhas estão traçadas muito antes do que a gente pensa. Agora vocês duas me tragam um copo de leite e um pão, e me deixem descansar.

-Você tem certeza de que está bem tio?

-Tão bem quanto quem apanhou de um urso pardo, mas me sinto vivo. Acho que passei pelas mãos de uma boa curandeira. Vocês têm muita coisa pra conversar e eu não posso fazer mais nada. Afinal não fui eu quem despertou os poderes de uma Irayah. Então me arranjem algo pra comer e vão resolver o que vocês têm que resolver, logo, vão.

Aeleen e Elizabeth saíram da cabana e caminharam sem rumo definido, em silêncio. Acabaram parando na entrada do bosque, entre uma clareira rodeada de taigas e com muitas folhas amarelas que forravam o chão.

-Então… Proteger alguém que ama, é? Afinal, você conseguiu…- comentou a morena, meio hesitante.

-Por Deus, Lizzie, você tinha alguma dúvida?

-Eu…não, Aeleen, não é isso. Nós já havíamos falado sobre isso, mas lá no fundo eu sempre pensava que…eu não sei, você é uma garota da civilização, talvez eventualmente quisesse se fixar com um marido, ter um lar e filhos…e eu…continuaria sendo a garota nativa que não se encaixa nesse padrão. Digo, eu não te reprovaria por querer isso, é o que todos esperam e…

A cabeça de Aeleen estava pesada pela falta de dormir, e todas aquelas preocupações de Elizabeth, embora fossem compreensíveis, lhe pareciam tão sem fundamento que ela não conseguia encontrar palavras corretas para desfazer o que a morena pensava. Então simplesmente preferiu fazer o que era mais sensato no momento. Puxou o rosto da morena e lhe beijou, sabendo que esse era o meio mais eficaz de fazê-la se calar naquela hora.

-Você sabe que tudo que você disse agora é um monte de bobagens, não? – disse após seus lábios se desgrudarem.

-É?

-Sabe que eu não quero nenhum casamento como a civilização manda, ou coisa do tipo, eu quero você.

-…

-Então a menos que não seja recíproco, tire essas idéias da cabeça e devolva a minha Lizzie forte e segura de si.

Lizzie apenas lhe envolveu com seus braços fortes de maneira protetora, embora tivesse plena consciência de que aquela garota que aparentava ser tão frágil não precisava de proteção em absoluto.

-E agora? – perguntou com o queixo encostado na cabeça aninhada de Aeleen.

-Bom, alguém me deu esses poderes por uma razão…Então suponho que vou ter que fazer o que precisa ser feito.

-Falar com o reverendo? Fazer um furacão levá-lo embora? Derrubar algumas árvores sobre o telhado da paróquia?

-Ou tudo isso junto. – riu Aeleen- Mas tem algo que me preocupa mais agora, Lizzie. A criança: Seu sobrinho ou sua sobrinha.

-Eu sei – suspirou Elizabeth com pesar. – Eles estão convencidos de que aquela criança inocente é um rebento do mau. Não consigo entender se isso é completo fanatismo ou completa ignorância. Talvez se eu conseguisse falar com Marguerite longe de Joseph, ela desse ouvidos e mudasse a maneira de pensar.

-Ela sabe que vocês são… Irmãs?

-Sabe, mas não é algo que admita. Na verdade, ambos negam até a morte. Mas os documentos comprovam isso. O maior medo deles é que um dia eu apareça clamando ser reconhecida como parte da família e queira parte da riqueza que o pai del… o nosso pai deixou. Mas eu nunca quis nada disso.

-Então faremos o seguinte: Vamos até a cidade, e enquanto eu falo com o reverendo e vejo como vou arrumar essa bagunça, você fala com Marguerite longe dele.

-Mas o que você vai fazer?

-Eu não sei Lizzie. Talvez falar com ele, derrubar o palanque de enforcamentos…talvez arrebentar as portas do calabouço e soltar todas…, mas algo eu preciso fazer. Espero que meu instinto me guie como aconteceu da primeira vez. Mas eu só farei qualquer coisa se souber que Marguerite está segura. Não podemos arriscar essa criança.