Blowing with the wind of change

            Elizabeth e Aeleen se dirigiram juntas ao centro de Salem. Desta vez não usavam disfarces, mas também não estava em seus planos chegar fazendo algum tipo de alarde. Chegaram em silêncio, a morena carregando a espada por precaução, combinando que a ela tentaria localizar Marguerite e falar com ela enquanto Aeleen resolveria a questão com o Reverendo Joseph. Como ela faria isso, no entanto, não tinha idéia.

            Antes de entrarem na praça de Salem Aeleen parou procurando algo pelo chão. Era fim de tarde e o sol já não estava muito claro. Não havia quase ninguém nas ruas.

            -O que foi? – perguntou Elizabeth confusa.

            -Preciso fazer um teste. – disse pegando uma pedra do solo. Estendeu-a para a morena, resoluta – Jogue contra mim, com força.

            -Não! Eu não vou fazer isso.

            -Eu preciso saber se vou conseguir pará-la. Faça, Lizzie.

            A morena resmungou algo e se afastou ficando a uns 10 passos de Aeleen e atirando a pedra com força. A loira ergueu a mão e uma espécie de escudo invisível se projetou fazendo a pedra causar um baque surdo e cair ao chão.

            – Bom, isso é bom. Agora avance sobre mim. Tente me golpear.

            -Aeleen!

            -Lizzie, eu PRECISO saber se vou conseguir me defender.

            Soltando uma mistura de suspiro e bufo a morena se aproximou e então tomou impulso e avançou para cima da outra garota, obviamente com intenção de parar antes que a atitude deixasse de ser segura, mas de repente seu corpo foi atingido por uma onda invisível que lhe impediu de prosseguir.

            Lizzie soltou um sorriso satisfeita.

            -Isso tira suas dúvidas?

            -Sim, agora eu posso ir.

            Se abraçaram e compartilharam um beijo rápido para então seguirem por ruelas diferentes. Aeleen se dirigiu até a casa paroquial onde imaginava que se encontrava Joseph, enquanto Elizabeth se esgueirou pelas construções até chegar ao casarão onde Joseph e Marguerite moravam. As luzes da casa estavam acesas, indicando a presença dos criados no interior. Foi para os fundos da casa e procurou a janela do quarto de Marguerite. Escalou as pedras da parede e pulou para dentro silenciosamente. O quarto estava na penumbra, Marguerite estava adormecida em sua cama e após avistá-la algo chamou mais a atenção de Lizzie. Havia um berço no quarto, e nele ressonava uma linda e serena criança. Ela se aproximou do berço e parou, contemplando aquele ser tão inocente que não fazia idéia do horror que acontecia lá fora.

            Lizzie estava distraída demais para perceber que a mulher que estava na cama não mais ressonava, mas havia despertado e de repente pulou se interpondo entre o berço e a intrusa. Seus olhos tinham uma certa raiva desesperada, embora ela estivesse visivelmente fraca e cambaleante.

            -O que você faz aqui!? Eu vou…

            -Espere. Não fale alto, eu vim em paz. Marguerite, eu sei que você tem uma fé cega no seu irmão, mas você precisa acreditar. Essa criança corre perigo.

            -Posso ver isso, com você invadindo meu quarto – respondeu a mulher amargamente.

            -Me escute e eu prometo que sairei sem protestar.

            -Se você tentar qualquer coisa, eu chamo os serviçais.

            -Você sabe que eles não poderiam me deter. Mas eu não estou aqui para causar confusão. Acredite você ou não, essa criança tem sido motivo de minha preocupação nos últimos meses.

            -Vai querer que eu acredite que a salvadora de bruxas está preocupada com meu filho?

            -Eu não salvei nenhuma bruxa.

            -Todos sabem que foi você Elizabeth. Wilhelm contou a todos.

            -Sim, eu salvei Aeleen. Mas você melhor do que ninguém sabe que ela não é uma bruxa. E eu gostaria de poder dizer que sinto te informar que o pai de seu filho está morto.

            Nesse momento a cor abandonou as faces da outra mulher. O desespero transpareceu em seus olhos.

            -Você…

            -Não, não eu. Mas foi numa batalha contra mim e minha família. Ele atirou no meu tio, e apenas recebeu o castigo por isso.

            -Sua família…os Índios…Eu…

            -Você não entenderia – disse Elizabeth balançando sua cabeça. – Você pode não acreditar que me preocupo com seu filho, mas a verdade incontestável é que essa criança tem meu sangue também. E mesmo que não tivesse, qualquer ser inocente como ela, devia ter direito à proteção. E essa criança não está protegida, Marguerite, você sabe que ela é odiada pelo Reverendo e seus homens. Agora eu te pergunto, você vai deixar que seu filho corra o risco de ser machucado por alguns fanáticos, ou vai ser forte e protegê-lo?

            A expressão nos olhos da outra mulher, que outrora fora tirânica, agora era de uma total falta de esperança e desolação.

            -Como…?

            -Você pode vir comigo, e eu prometo que terá proteção. Acharemos um lugar para que você estabeleça moradia, mas o mais importante agora é salvar esse bebê.

            -Eu não posso. – Sussurrava Margerite fracamente, enquanto tomava o bebê nos braços e lhe embalava. Lágrimas escorreram de seus olhos. – Eu sinto muito, meu pequeno, mas eu não posso. – Olhou para Lizzie novamente. – Como eu posso saber que você não quer apenas machucar meu filho?

            -O que eu ganharia com isso? Se eu quisesse fazer mal ao bebê, teria feito enquanto você dormia, Marguerite.

            A mulher balançou a cabeça repetidamente, passando obviamente por algum conflito interior.

            De repente virou-se para Lizzie, resoluta e lhe entregou a criança nos braços.

            -Por favor.

            Lizzie arregalou os olhos não entendendo nada.

            -Joseph disse que ele é mau. Que ele é um fruto do demônio. Que não é puro. Mas eu não sou isso. Eu… – balançou a cabeça, como quem tentava retomar uma linha de pensamento perdida. – Ele vai matar a criança. Minha criança. Ele nasceu de sete meses, Joseph vai esperar completar 9 e matá-lo no ritual. Vai afogá-lo no batismo para purificar a mim e a vila. Ele disse que é a vontade do Criador, que temos que obedecer a vontade do Criador.

            O estômago de Elizabeth revirava diante de tais absurdos.

            -Mas então eu percebi…. Pela primeira vez, irmãzinha – ao ouvir essa palavra, Lizzie percebeu que Marguerite estava com o juízo afetado – que… O Criador ficou louco. E eu não vou deixá-lo matar meu filho. Eu não vou deixar o Criador matar meu filho. Wilhelm ia protegê-lo, ia achar um modo de a gente fugir, mas agora ele não pode.

            -Não Marguerite, o Criador não quer pegar seu filho. Joseph é quem quer.

            -Não! O irmãozinho Joe nunca mente para mim. Eu sei que ele não faz por mal. O irmãozinho Joe só quer purificar a vila. Só quer mandar o demônio embora.

            -Não há demônio, Marguerite.  – disse Lizzie com o tom de voz indulgente – Venha comigo, ele é seu filho.

            -Mas eu não…

            -Venha… – disse tomando a mulher pela mão, enquanto segurava a criança no outro braço.

            Após convencê-la, ambas saíram do quarto se esgueirando pelos corredores da casa, fugindo da visão dos criados, e carregando o bebê numa cesta. Quando conseguiram atravessar o longo corredor e sair para a varanda, dois enormes capangas de Joseph se alarmaram percebendo a presença intrusa ali. Lizzie entregou a cesta com a criança nos braços de Marguerite e se colocou na frente dela. Os homens tentaram segurá-la pelos braços, mas ela os golpeou rapidamente com algumas cotoveladas, socos e chutes. Ambos ficaram para trás, derrubados ao chão. Andaram apressadas, se escondendo pelos becos mal iluminados para fugir dos olhares das poucas pessoas que ainda andavam por ali. Elizabeth parou repentinamente antes de entrar na rua principal que levava à praça. Escutou uma agitação vinda de lá, e sabia bem a que isso se devia.

            -Soltem a menina – Elizabeth ouviu a voz macia, porém firme de Aeleen dizer.

            -Essa bruxa ainda ousa dar ordens aos homens de Deus. Prendam-na.

            Aeleen havia chegado na casa paroquial durante um dos famosos interrogatórios de Salem, um igual ao que ela havia passado, portanto sabia das humilhações sofridas no mesmo. A vítima essa vez era uma menina de aproximadamente de 15 anos, rodeada de testemunhas falsas que afirmavam barbaridades a seu respeito. Provavelmente mais um caso de rivalidade por algum rapaz de Salem, como a maior parte dos casos era alimentada por intrigas fúteis.

            -A mulher das ervas… O que a mulher das ervas está fazendo aqui?

            -Shh. Ela só quer impedir que mais gente se machuque. Agora fique em silêncio Marguerite, eles não podem saber que estamos aqui.

Aeleen olhou firmemente para os dois homens que avançavam para cima dela.

-Se é verdade que sou uma bruxa, vocês acham que vão conseguir me prender?

-Quem está dando voz de prisão em meu nome? Isso vai contra as leis do povoado – ouviu-se o resmungo do magistrado que saia da sua casa vestido uma espécie de robe sobre seu ridículo pijama, mas sem esquecer da peruca de fios brancos que ostentava.

-Ora magistrado, vossa senhoria não é lei o suficiente para esse povoado, todos sabem que seus dias aqui estão contados – esbravejou Joseph.

-Cuide com suas palavras meu caro Reverendo, eu não quero ter indisposições com um homem da religião. – Retrucou o magistrado severamente.

-Imprestáveis o que vocês estão esperando para pegá-la?

Os homens deixaram a hesitação de lado a partiram para cima de Aeleen. Ela levantou a mão e sem esforço algum os repeliu. Ambos caíram sentados no chão de pedras da praça.

-É uma feiticeira – gritou um deles, arregalando os olhos.

O outro determinado levantou-se e pegou um machado correndo em direção à garota loira. Enquanto seus cabelos começavam a se esvoaçar, com um gesto, quase definido como gracioso, Aeleen estendeu a mão direita fazendo com que não fosse mais possível ele avançar. Com a outra mão e um mero movimento fez o vento arrancar o machado das mãos do homem, e então esfregando as palmas e em seguida as estendendo novamente fez o soldado ser arremessado longe para cair em cima de um monte de feno. Os cabelos e vestes das pessoas perto dali se agitavam com o movimento do ar, as folhas das árvores próximas começavam a dançar, e o vento assoviava. Era o que os demais ouviam. Mas o que Aeleen ouvia era inúmeros sussurros de ancestrais que lhe instigavam. Pavati, sua avó, sua mãe, e tantos outros desconhecidos que haviam habitado aquelas terras agora lhe sussurravam através do vento, lhe dando a força para prosseguir.

Elizabeth ainda à espreita no beco suprimiu um gritinho abafado de Marguerite.

-Ela não é uma feiticeira, ela só vai impedir que ele machuque mais gente, Marguerite. Ele quer me ajudar a salvar seu bebê. Você se lembra? Por causa do bom coração dela que se recusou a te dar as ervas é que seu filho está vivo hoje.

Marguerite se acalmou e continuou observando de olhos arregalados.

-Eu não vim até aqui para machucar ninguém – continuou Aeleen – estou apenas lhes dizendo para soltarem a garota. Não haverá mais condenações por bruxaria em Salem.

-Garota? O que?… Estava havendo um interrogatório na minha ausência? Reverendo Joseph Stokes, você passou dos limites! – bradou o magistrado com as veias de sua têmpora saltando de raiva.

-Limites nessa cidade deixaram de existir a tempos. A ordem nessa cidade vai ser restaurada pelo clero, o Bispo já está providenciando isso. Muito brevemente você será apenas um velho imprestável aposentado. Essa garota e a outra bruxa da costa serão enforcadas amanhã mesmo.

Aeleen deu às costas a confusão e fitou o palanque de enforcamentos ali perto. Fez um gesto brusco com o braço e uma rajada de vento atingiu o palanque. Repetiu o gesto, e agora pôde-se ouvir a madeira estalando. Uma terceira vez e a estrutura começou a se partir e balançar, para então ir se desmontando até cair.

-PRENDAM-NA! – berrou Joseph cheio de fúria, mas os dois homens que haviam avançado anteriormente recuaram, percebendo com o que estavam lidando. Aeleen começava a perder sua paciência, querendo por fim a aquilo logo.

-Não haverá mais enforcamentos em Salem. Primeiro foi essa maldita forca que tirou a vida de tanta gente, mas se o que digo não for feito, os próximos serão vocês – disse olhando para o Reverendo e para o Magistrado.

-Ninguém vai atender a ordens de uma bruxa!

-Eu não sou bruxa, eu sou a filha do vento. Eu posso dobrá-lo a minha vontade, fazê-lo derrubar uma forca, ou uma árvore, ou uma casa. Eu posso chamar ou afastar a chuva, trazer ou levar as sementes embora e eu posso destruir você Reverendo Joseph, porque o ar, o meu elemento, está todo à sua volta. Mas eu não tenho esse poder para esse propósito. Eu não quero mais destruição, eu quero reconstrução.

-E o que você pretende fazer se a menina for condenada?

-Eu lutarei e impedirei a execução dela. E da próxima. E de quantas for necessário. Mas antes de tudo isso, eu eliminarei o causador de todo problema – disse olhando nos olhos do reverendo.

-O que estão esperando seus imprestáveis? – berrou novamente o homem possesso.

-Você não dá ordens para meus soldados, fiquem onde estão! – berrou o magistrado, sem perceber que os homens não faziam muita questão de em fato, avançarem.

            -Ora cale a boca seu velho idiota – disse Joseph arrancando um mosquete de um dos soldados e começando a carregá-lo. – Se não existe nenhum homem o suficiente para encarar uma vagabunda nefasta eu mesmo o faço e acabo com essa bruxa.

            No beco Marguerite se sobressaltava novamente murmurando.

            -Não, ele não pode, ela tem que ajudar a salvar meu filho, ele não pode matá-la. Alguém tem que dizer a ele que ela não é bruxa, por favor, Elizabeth, a gente tem que fazê-lo parar.

            -Shh.Ela sabe se defender, silêncio Marguerite. – disse Elizabeth olhando fixamente para a loira que começava a erguer sua mão no ar.

            -Não, isso não pode acontecer.

            Quando Joseph Stokes apontou a arma deliberadamente para a jovem Aeleen, Marguerite num sobressalto colocou a cesta com o bebê nas mãos de Elizabeth e correu em direção à praça, ignorando a tentativa desesperada de sua meia irmã que com cesta em mãos não podia lhe segurar.

            -Espere Joseph, espere! – gritou se interpondo entre Aeleen e o Reverendo, mas era tarde demais, o gatilho já tinha sido puxado. O estouro foi ouvido e a bala atingiu o peito de Marguerite. Um fio de sangue lhe escorreu pelo canto do lábio e ela caiu de joelhos olhando nos olhos do irmão que agora estava de olhos arregalados tremendo diante de tal visão.

            -Ela…Não é…é…bruxa. – A mulher tossiu sangue e então caiu ao chão de vez.

            -NÃOOOOOOOOOO. MARGUERITE!

A confusão que se sucedeu foi completa. Joseph largou a arma e se jogou ao chão ao corpo da irmã, o magistrado gritou para que os seus homens o prendessem, Elizabeth ainda em choque correu para o lado de Aeleen com a cesta em seus braços. As pessoas do povoado, assustadas pelo estrondo começaram a sair de suas casas carregando lampiões para olharem surpresas para a imagem do Reverendo debruçado sobre o corpo de Marguerite sendo puxado pelo soldado que o tentava prender. O arrastou para longe do corpo e outro tentou captar a pulsação de Marguerite, mas apenas fez um sinal negativo com a cabeça.

            -Meu Deus – foram as primeiras palavras que saíram da boca de Aeleen depois do tiro. Ela se encontrava aturdida. Jamais poderia prever isso, e a barreira de ar que criara em volta de si mesma para se proteger do tiro não se estendia até o local onde Marguerite tinha se precipitado.

            -Este homem está sendo preso por assassinato e desrespeito à autoridade – gritou o magistrado – agora voltem para suas casas. E vocês soltem a garota condenada – gritou para os soldados que libertaram uma menina assustada que correu para os braços de sua mãe.

            Quando a multidão se dispersou ele se voltou para Aeleen e Elizabeth e as olhou por alguns minutos, tentando decidir o que diria.

            -Não existem bruxas em Salem – disse por fim. – O palanque derrubado fala por si próprio. Com a lei de volta em minhas mãos, ninguém mais será acusado. Todas as acusações relacionadas à bruxaria são anuladas agora. Eu não sei quem você é, ou o que você é Aeleen O’Rilley, mas eu não vou fazer nada a respeito disso. Essa era uma guerra pessoal dos irmãos Stokes e acabou agora. Eu não sou seu inimigo.

            Aeleen assentiu, ainda engolindo seco com o choque do que havia acontecido. Tinha certeza que o magistrado estava agindo por medo. Medo dela.

            -O que farão com o corpo? – perguntou Elizabeth.

            – A única família conhecida dela era o irmão. Ele está preso. Então faremos um funeral comum e sepultaremos no cemitério do povoado.

            Elizabeth engoliu seco.

            -E o reverendo?

            -Ele não será executado. Chega de mortes em Salem. Cumprirá uma pena que ainda definiremos e depois será libertado. Mas não é necessário nem esperar as palavras do Bispo para saber que esse homem nunca mais voltará a pregar.  Agora eu preciso que você me entregue essa pobre criança. Ela será deixada com as religiosas igreja, já que não tem família.

            -NÃO! – disse Lizzie em sobressalto, soando mais alarmada do que pretendia. – Eu cuidarei dessa criança.

            -Você não é da família, eu não posso permitir isso.

            Elizabeth suspirou cansada, descontente por desenterrar o passado.

            -Meu nome é Elizabeth Mabe Stokes. Marguerite e Joseph são meios meios-irmãos. Esse bebê tem o meu sangue também. Lhe provarei isso com os documentos.

            -Certo – disse o magistrado ainda receoso.

            -E também reivindico o direito de eu mesma dar um funeral à Marguerite.

            -Você está certa disso? Dados os acontecimentos dos meses anteriores…

            -Estou certa disso.