Soube que estava muito próxima da senilidade quando me dei conta de que a tagarelice de uma menina que não tinha nem cinco verões de idade me parecia divertido. Fiquei sentada em um banco enquanto as duas meninas subiam e baixavam de meu colo, até que começaram a brigar para ver qual delas se sentava em tão precioso lugar. Levantei as duas de uma só vez e coloquei cada uma em cima de uma coxa. Pareceram se conformar com a decisão e a vais velha se pôs a falar.

Foi então que comecei a olhar a minha volta, impaciente, devo confessar, em busca de Gabrielle. A menina mais nova, de talvez três verões de idade, escolheu esse momento para se apoiar em meu peito. Senti uma investida vigorosa de algo parecido ao pânico quando se aconchegou contra mim, bocejou e acabou adormecendo sem mais. Agora não podia me mover. A menina maior continuava falando sobre o azul do céu, a bonequinha de pano que tinha nas mãos e meu longo cabelo escuro. Como disse, soube que estava perdendo a cabeça porque em algum momento, me recostei contra a parede externa da casa e fiquei escutando, fascinada, suas divagações.

– Posso… Posso ficar com elas, Senhora Conquistadora. – balbuciou Petra, nervoso, ao ver suas irmãs tão comodamente instaladas em cima de mim.

Sabia o que o menino sentia. Era medo, de mim e do que eu era. Suas irmãs eram muito pequenas para saber e me mostravam uma adoração incondicional. Este menino, no entanto, me conhecia, e a mera idéia fez que uma parte de mim quisesse abaixar a cabeça envergonhada. Acho que, sobretudo, tinha medo que eu perdesse a paciência com as meninas. Gostaria de saber quando me vira perder o controle se vivia no palácio. Como podia lhe dizer que sentia mais terror diante destas doces coisinhas do que elas jamais poderiam sentir de mim?

– Deixe-as Petra. – respondi e lhe fiz um gesto para que se sentasse ao meu lado no banco. – Quero que me conte algumas coisas sobre a vida aqui, rapaz.

Queria saber o que realmente acontecia de verdade por aqui e por que se condições de vida dentro dos muros de meu palácio eram tão intoleráveis. Sabia que não obteria melhor resposta que as de alguém que vivia ali e que ademais parecia bastante honesto. Certo, roubara comida, mas acho que neste caso o fim justificava os meios. Havia tentado trabalhar para trazer um soldo para a família, mas os soldados o haviam rechaçado. Sabia que um menino como Petra sabia muitas coisas sobre o lugar onde vivia. Os meninos costumam ter as orelhas grandes, ainda que as pessoas não lhes preste muita atenção. Queria nomes e tinha a impressão de que Petra conhecia todos.

Olhava para o menino enquanto falava e, ao longo da conversa, seus olhos não paravam de pousar na empunhadura de minha espada. A cabeça de leão prateada com seus olhos de safira lançava raios de luz quando o sol se refletia no metal. Havia encarregado que me fizessem esta empunhadura quando prometi a mim mesma mudar meu jeito de ser. Desde então se passaram cinco estações. Certo, progredia devagar, mas a cabeça de leão da empunhadura de minha espada era uma lembrança silenciosa para mim.

Era uma lembrança de uma época em que pensei que podia ser ao mesmo tempo uma guerreira e provedora de justiça. Comecei quando Cortese atacou meu povoado, quando fugi de lá cheia de culpa ao pensar que era responsável pela morte de meu amado irmão. Converti-me em guerreira com um único ideal – defender meu país de todo aquele que tentasse roubá-lo. Persas, romanos, gauleses… Todos eles lamentaram terem tentado. Eu fiz com que lamentassem ter colocado os pés em solo grego. Foi então que ganhei o título que me outorgou o povoado – a Leoa de Amphipolis.

Não sei por que escolheram esse título. Por meu feroz orgulho, pela coragem que demonstrei, por minha energia implacável como guerreira? Foi na época anterior a minha decisão de me jogar ao mar, antes de César, antes de Chin, antes de me converter em uma mulher cheia de ânsia de poder e vingança. César… Ri por dentro. Estava morto e enterrado, assassinado por seu próprio Senado fazia já dez estações. De modo que adotei o símbolo do leão, para me lembrar do que fui… E do que pretendia ser novamente.

Depois de um tempo pensei que já havia obtido suficiente informação do menino. Já suspeitava quem se dedicara a roubar o dinheiro que pertencia a esta pobre comunidade de trabalhadores. Quando Petra confirmou inocentemente minhas suspeitas senti que parte da velha Xena voltava a ferver em meu sangue.

– Guarda! – gritei a um dos guardas do palácio que continuavam ali perto. – Vá ao palácio e traga-me o curador, Kuros, o capitão Atrius e o construtor chefe. Traga-os imediatamente. – bufei ao guarda.

Respirei fundo – duas vezes – para tentar acalmar a besta que hoje em dia mantinha encerrada. Preocupava-me e até me assustava um pouquinho que o monstro pudesse erguer-se tão facilmente depois de todo o esforço que fizera para manter o demônio longe. Fechei os olhos com força e senti o calor de meu próprio sangue que começava a arder. Desta vez não era a sede de sangue, mas uma justa indignação o que estimulava a besta. Fiquei ali sentada, com os olhos fechados, sabendo que roubar dinheiro de minha casa poderia trazer consigo a morte do culpado. Roubar meu dinheiro… Podia decidir pela crucificação.

********

– Minha senhora?

A suave voz de Gabrielle me fez virar a cabeça e abrir os olhos de imediato. Quando concentrei minha atenção sobre ela, vi que minha pequena escrava se encolhia de medo. Sabia perfeitamente com que cara ficava quando a besta se movia tão perto da superfície, como estava permitindo agora. Sabia por que a havia visto milhares de vezes, refletida nos rostos dos homens justo antes de arrebatar-lhes a vida. Nesse instante, no que durou apenas uma batida de coração, antes que meu olhar se suavizasse e minha íris passasse do frio gélido ao cálido azul, Gabrielle viu a besta que se agitava debaixo da superfície.

– Tudo bem. – disse, lhe oferecendo a mão.

Não queria que Gabrielle visse o mostro. Já era suficiente que soubesse o que havia feito naqueles dias do passado. Não queria que agora o visse em mim jamais. Isso me parecia muito importante e ainda não sabia o por que. Que estupidez, não? Acreditar que uma mulher que passara a metade de sua vida como escrava, que se dedicava exclusivamente a dar prazer a seu amo, fosse inocente. Podia ser esperta em sua especialidade, mas na menina existia uma vulnerabilidade indefinida e eu não queria ser aquela que destruiu isso.

Gabrielle pousou sua mão na minha e gozei uns instantes da sensação. O alvoroço que se ouvia na rua lateral me avisou de que já chegavam os homens que mandara buscar.

– Gabrielle, leva as crianças para dentro. – disse, levantando-me e depositando a mais nova nos braços de minha escrava. A menina maior acordou sobressaltada e Gabrielle pegou sua mão para levá-la.
– Petra. – chamou Gabrielle.
– Não. Deixa o menino. – disse, concentrando-me nos homens que vinham até nós.
– Minha senhora?

Ouvi o tom de medo na voz inquisitiva de Gabrielle e me virei e lhe sorri rapidamente.

– Tudo bem, pequena, agora vá. – disse, roçando sua face com as costas dos dedos.

Desapareceu no interior da pequena choça e fiquei ali quieta um momento, contemplando a porta pela que havia entrado. Tinha que fazer algo por esta preciosa escrava minha, algo para lhe demonstrar o muito que começava a significar para mim.

– Senhora Conquistadora. – disse Atrius, tirando-me de meu devaneio.
– Capitão… Temos aqui um problema que quero resolver. – não me importava expressá-lo dessa forma. Atrius estava comigo o tempo suficiente para reconhecer o tom de minha voz que acompanhava essa ordem.
– Kuros, aí dentro tem uma mulher – apontei para a choça – Precisa de cuidados médicos. Gab… Minha escrava a está atendendo, mas temos que transladá-la para o palácio para que possa receber atendimento adequado.
– É claro, Senhora Conquistadora. – disse o pequeno homem e correu para dentro da casa. Kuros estava entregue a suas artes curativas e eu sabia que a mulher melhoraria sob seus cuidados.
– Sagoris. – fiz um gesto para meu construtor chefe para que se aproximasse. – Quero que percorra toda esta fileira de casas, se é que se podem chamar assim, e que volte logo. Nesse tempo quero que tenha uma idéia na cabeça de como vamos reparar ou reconstruir este desastre. – ordenei.
– S-sim, Senhora Conquistadora. – balbuciou o homem já velho, tirando uma pena e um pequeno pergaminho da bolsa que levava ao cinto. Começou a andar, aparecendo às portas e anotando coisas em seu pergaminho.

Atrius parecia risonho, mas nunca me senti obrigada a chamar a atenção de meu companheiro de batalhas com respeito a esses olhares. Não me olhava assim para se dar ar de soberbo – pelo contrário, me parecia que essas expressões aplaudiam a forma em que havia mudado ao longo dessas estações. Atrius era um terror como guerreiro e me sentia à vontade tendo ao meu lado em combate, mas tinha uma personalidade amável que era o oposto absoluto assim que saía do campo de batalha. Várias vezes eu me perguntei como o fazia, mas isso sempre explicava os olhares risonhos que a mim dirigia.

– O menino precisa de um emprego. – disse simplesmente. – Temos lugar para mais um no pavilhão de mensageiros?
– Sim, Senhora Conquistadora. Eu mesmo me encarrego dele. – Atrius pousou o olhar no menino com um desses sorrisos divertidos.

O pavilhão de mensageiros não era na realidade mais que uma pequena sala dentro do palácio onde os pajens e os mensageiros passavam o dia. Sua única tarefa era levar e entregar mensagens de qualquer pessoa, desde a cozinheira para mim. Empregávamos meninos para esta tarefa porque eram velozes e pequenos e podiam colar-se entre as pernas das pessoas, se necessário, para chegar a seu destino rapidamente. Assim os soldados e guardas ficavam livres para se dedicarem às tarefas para as quais estavam treinados, que não era serem meninos de recados.

– Vai trabalhar vigorosamente ao serviço da Conquistadora, menino? – perguntou Atrius para Petra.
– Sim, capitão. – contestou Petra e só pude me conter ao ver a cara de Atrius. O menino ouvira a maneira que Atrius se dirigiu a mim e estava imitando o soldado.

Perguntei a Petra quem era seu pai e, ao ouvir o nome olhei para Atrius. Meu capitão encolheu levemente os ombros diante do nome e tive que confessar a mim mesma que rara vez me incomodava em aprender os nomes dos soldados que entravam em combate comigo ou por mim. Coloquei-me atrás do rapaz, que parecia ter a esperança de que reconhecêssemos o nome de seu pai.

– O pai de Petra caiu em Queronea. – afirmei.

Os olhos de Atrius se nublaram e assentiu com a cabeça. Essa havia sido uma batalha sangrenta, muito mais que muitas das que lutei ao longo das estações. Apenas recentemente me interei de que estavam levantando uma estátua de mármore de um leão no lugar, com vista sobre o túmulo dos mortos macedônios.

– Pois seu pai foi, com certeza, um valente soldado. – disse Atrius ao menino. – Fica comigo, menino, e lhe mostrarei onde tem que ir.

Então, olhei risonha para meu capitão, com o mesmo tipo de expressão com que olhava ele para mim nas últimas estações. A expressão que dizia – “Devemos estar amolecendo.” Um menino necessita de um pai, isso sem dúvida, e não me ocorria melhor mentor para Petra que Atrius.

– Petra, farei que levem sua mãe e suas irmãs para o palácio. Atrius lhe ensinará onde ficarão depois que terminar de ensinar-lhe seus deveres. Compreende?
– Sim, Senhora Conquistadora. – contestou o menino e mordi a bochecha para não sorrir.
– Pois que assim seja, Atrius. – ordenei. Meu capitão se inclinou levemente e se deu a volta e Petra o imitou e seguiu saltitante o capitão.

Quando já haviam se distanciado um pouco, Petra voltou correndo até mim.

– Se esqueceu de algo, rapaz?
– Disto, Senhora Conquistadora. – replicou Petra. Entregou-me a maça que Gabrielle lhe havia dado, colocando-a sobre minha mão aberta. – Por favor, Senhora Conquistadora. Diga a sua rainha que agradeço.

O menino se afastou correndo a toda velocidade e fiquei contemplando a fruta que tinha a mão. No entanto, meus pensamentos estavam de verdade em suas palavras. Minha rainha, disse referindo-se a Gabrielle. Perguntei-me se teria uma desilusão se soubesse que era somente minha escrava. Somente minha escrava! Não tardaria nada em descobrir o quanto essa idéia era absolutamente ridícula.

Sagoris regressou finalmente, balançando a cabeça. Tive o pressentimento de que a notícia não seria boa.

– Senhora Conquistadora, estas estruturas não apenas são inseguras, mas pelos deuses, não posso crer que haja seres humanos vivendo nelas! As condições são espantosas. Só há uma maneira de solucioná-lo, mas temo que não vá gostar de minha idéia. – disse-me o ancião.
– Teremos que demoli-las e começar de novo. – respondi, com as mãos no quadril, olhando à minha volta.

Sagoris ficou me olhando. Podia ver a surpresa em seu rosto pelo rabo do olho e então ouvi a descrença em sua voz.

– S-sim, Senhora Conquistadora, efetivamente.
– Quem era responsável pelos fundos do tesouro quando se construíram esses edifícios? – perguntei, bastante certa da resposta.
– Faz quase dez estações, Senhora Conquistadora… Acho que… Sim, foi seu administrador, Demetri.

Outro cravo para seu caixão, Demetri.

– Sagoris, que problemas você prevê para a reconstrução? – perguntei ao construtor.
– Bem, as pessoas terão que se alojarem em outro lugar. Acho que durante as cinco ou seis luas que demoraria em realizar a obra, poderiam viver em tendas nos campos de treinamento. Há muitos jovens dispostos a ganhar uns dinares trabalhando na construção, assim que não creio que a tarefa será impossível absolutamente.
– Me alegro de ouvi-lo dizer isso, Sagoris. Teremos que arrasar esta abominação e reconstruir. Não quero que se reconstrua com os mesmos materiais de péssima qualidade e quero que cada casa tenha dois quartos. O recompensarei com cem talentos de prata assim que tiver terminado. – disse ao surpreso homem.
– Obrigado, Senhora Conquistadora. – respondeu o homem entusiasmado.
– Uma coisa mais, Sagoris. – disse ao homem grisalho. – Diga ao capitão Atrius que aloje os soldados nas tendas. O quartel pode ser limpo para que os habitantes desta aldeia usem. Não quero que as mulheres e crianças vivam em tendas. E depois, aos meus soldados se paga muito bem para que sofram. – disse com um sorriso divertido e o ancião começou a rir comigo. Hoje o surpreendi. Começava a me entrar uma curiosa sensação de satisfação por poder fazer isso com as pessoas.

Nesse exato instante, Kuros e Gabrielle saíram da choupana e Kuros me explicou rapidamente que, ainda que a mulher não estivesse mortalmente enferma, as condições do lugar a impediriam de recuperar a saúde. Disse-lhe que desejava que a transladassem ao palácio e deixei meu curador responsável por organizar uns aposentos. Disse-lhe para pedir a Delia para ajudá-lo com qualquer outra coisa.

O homenzinho se afastou para tomar as providências necessárias e Gabrielle ficou em silêncio ao meu lado.

– Disseram-me para lhe dar isto. – pus a maçã em sua pequena mão. – Gabrielle. – disse hesitante – Quero que saiba que estou muito satisfeita com você. A maneira como agiu hoje me diz que há mais em você, minha pequena, do que parece aos olhos. Gosto disso. – elogiei a jovem.

Gabrielle abaixou a cabeça, mas não antes que eu visse de novo um âmago desse peculiar sorriso. De repente, me lembrei do que tinha intenção de fazer quando começou o dia. Só que agora suspeitava de que o comandante de minha frota poderia não ser o único dentro do esquema de ilegalidades. Para averiguá-lo, teria de me converter na antiga Conquistadora. Teria que me comportar como se ainda fosse uma mulher cujos apetites sexuais se acalmavam com a violência e as perversões lascivas. Não tinha o menor desejo que Gabrielle me visse assim. Poderia lhe dizer que era uma farsa e tenho certeza de que entenderia, mas algo em meu interior, uma vozinha minúscula, me rogava que não obrigasse a jovem a me ver desse modo. Atuar dessa forma, com minha Gabrielle tão perto, tão disponível… Digamos apenas que não estava tão redimida ainda e isso era o que mais me assustava.

– Gabrielle, continuarei só até o cais. Não creio que estará segura se vier comigo. Tenho que me ocupar de alguém e, bem, pode ter problemas.

Ao ouvir a palavra problemas, Gabrielle ergueu a cabeça de imediato e enrugou a testa com ar preocupado.

– Estará segura, minha senhora?

Essa pequena pergunta me deixou sem fala. Gabrielle certamente teve para comigo muitos detalhes amáveis desde que entrou a meu serviço. Eram pequenas coisas que raras vezes uma escrava pensava, mas essa demonstração de preocupação e interesse parecia absolutamente espontânea e genuína.

– Preocupada comigo, pequena? – brinquei com a jovem.
– Eu… É que… Minha senhora, é que… – balbuciou Gabrielle, abaixando a cabeça.
Isto era muito impróprio das típicas respostas de minha escrava. Gabrielle costumava ter uma resposta para tudo, uma resposta paciente, premeditada e, às vezes, profunda. Agora esta corada, não como a experiente escrava corporal que era, mas como uma estudante virginal. Não pude conter o riso que escapou.

Quando levantou de novo o olhar, sua expressão era de alívio, suponho que por causa de minha risada. Aproximei-me mais dela, impondo-me sobre sua pequena figura.

– Gabrielle, de verdade acha que não sou capaz de cuidar de mim mesma? – sussurrei.
– Não, é claro que não minha senhora. – contestou imediatamente.

Comecei a rir outra vez e pensei que fazia muito isso ultimamente.

– Aonde gostaria de ir, Gabrielle? – fiz um gesto a um de meus guardas, o que havia buscado as coisas que Gabrielle necessitava. – Pode ir aonde quiser, mas o guarda fica com você. Compreendido?
– Sim, minha senhora. Acho… Acho que gostaria de ir aos estábulos para dar uma guloseima a Tenorio. – disse, mostrando-me a maçã, de novo com esse sorriso meio de lado.

Sorri e estou certa de que meu guarda pensou que parecia uma idiota. É claro, como desejava conservar todos os seus membros presos firmemente ao corpo, não disse nada.

Arrebatei velozmente a maçã da mão da surpreendida menina e a lancei pelo ar um par de vezes. Gabrielle fez então algo que parou meus movimentos de chofre até meu pensamento. Não foi uma risada longa nem muito sonora, mas foi como música para meus ouvidos e como um bálsamo para minha alma. Foi a coisa mais refrescante que já ouvira em minha vida e nós duas ficamos quietas, olhando-nos. Bem, eu olhei para Gabrielle e ela me correspondeu com essa atitude nervosa na que tentava, mas não conseguia me olhar diretamente nos olhos. Nós sabíamos que, de alguma forma, por insignificante que fosse, havíamos cruzado hoje uma linha traçada na areia. Na realidade, a sensação era de que a havíamos apagado e traçado uma nova.

Gabrielle abaixou de novo a cabeça e pela expressão estranha de seus olhos, acho que talvez ela mesma se perguntasse por que se sentia assim. Dei instruções ao guarda que acompanhasse Gabrielle e ele se virou e se afastou uns passos. Garoto esperto, eu pensei, porque parecia que queria nos dar certa intimidade. Deixei a maçã de novo nas mãos de minha escrava e me inclinei até ela, descendo a voz para que somente ela ouvisse.

– Tenorio gostará da guloseima. Tem os mesmos gostos que sua dona. – disse.

Gabrielle contestou de uma forma que somente poderia descrever como coquete. Pelos deuses, se não fosse porque não me parecesse possível, teria jurado que minha jovem escrava estava flertando comigo!

– E quais seriam minha senhora?

Inclinou a cabeça para um lado e eu tive o cuidado de lhe sussurrar a resposta ao ouvido.

– As maçãs maduras… E as loiras pequenas.

Abaixou ainda mais a cabeça, mas vi o sorriso que tentava ocultar.

– Outro sorriso para mim, Gabrielle? – perguntei enquanto começava a me distanciar dela. – Sou sem dúvida uma Conquistadora de muita sorte.

Nota