O último pergaminho.

“Você tem que me levar com você e me ensinar tudo que você sabe…”.

“Fazem tantos anos…minha memória se tornou mais fraca e vivemos tantas coisas que fica difícil medi-las pelo tempo. Talvez a única exatidão esteja naquela velha sacola de couro cheia de pergaminhos contando a história de uma vida. Eu não posso mais empunhar armas e nem lutar, meus dias agora são uma rotina solitária a não ser quando os netos dos filhos de Sarah vêm me visitar. Quantas gerações se passaram? Tantos anos…tantas lutas…O par de sais cobertos de ferrugem estão agora aposentados em cima da lareira, juntos da espada que você usava e do chakram, e sua armadura guardada num baú onde tenho mantido as coisas que considero mais preciosas desde que senti o peso da idade e resolvi sair da estrada e vir para Amphipolis, restaurar e cuidar da sua velha casa.

Sei que essa não era sua vontade quando você enterrou suas armas e sua armadura, mas eu precisava de um pouco mais que uma urna com cinzas. Eu precisava de algo que me mantivesse perto de você, e talvez fosse a única forma de fazer isso e manter-me firme quando todo o chão sob meus pés havia desabado.

 Mesmo após tanto tempo, eu ainda me lembro daquela manhã em Potédia, quando você me salvou de me tornar uma escrava. A temível destruidora de nações, da qual eu, e todos os aldeões tínhamos ouvido tantas histórias, acabara nos dando uma chance de liberdade. No momento que olhei em seus olhos azuis no meio daquela batalha, pude ver um traço de tristeza, dor, mas não maldade. Para mim ali não havia nada de temível, mas exatamente o contrário. O olhar de alguém que cuida, que protege, mesmo sem saber.

E então, eu abandonei tudo o que parecia ser meu destino. A vida simples e campestre que era suposta para uma garota como eu. Há décadas, que cada noite em que eu repouso minha cabeça no travesseiro à noite, eu fico imaginando como seriam as coisas, se naquele dia eu não tivesse reunido coragem o suficiente para deixar tudo pra trás e seguir você. Ou se você não tivesse me deixado seguir ao seu lado. Eu imagino que você por inúmeras vezes fez as mesmas perguntas, pois por inúmeras vezes eu vi em seus olhos a culpa que você sentia. A culpa…o fardo que você carregou por tantos anos. Não somente das aldeias que saqueou, dos navios que tomou, mas a culpa por ter me tornado o que eu fui…o que eu sou.

Eu vi essa culpa, quando acordei no templo Tessálio e vi seus olhos cheios de lágrimas, quando encontramos Callisto pela segunda vez…eu pude ver a agonia que você sentiu enquanto estávamos naquela fortaleza, e a horda nos atacava…E quando toda a história do Dahak aconteceu. Você se culpava dia após dia, por ter me levado com você, mas eu podia ver em seus olhos que o amor que sentíamos conseguia acalentar esses pensamentos intrusos.

O amor…descoberto aos poucos a cada gesto e que nos mudou tão drasticamente nos anos que estivemos juntas. Esse sentimento que demorei para entender, mas que entendi tão plenamente quando estive perto de te perder e me arrependi de não ter lhe dito tudo que precisava. Sei que enquanto eu trazia seu corpo para Amphipolis você podia escutar meus pensamentos, e pelos deuses, sempre fui eternamente grata à Autolycus por me ajudar a ter uma segunda chance para dizer o quando você significava para mim. Me lembro bem daquela noite, depois que tudo se resolveu. Nenhuma de nós sabia ao certo o que dizer, e mesmo você sempre tão segura de si sentia-se sem palavras sentada naquele acampamento olhando para as chamas da fogueira.

-Obrigada – eu disse buscando seu olhar enquanto você mexia o fogo com um pedaço de madeira.
-Pelo que?
-Por não me deixar.
-Eu não poderia fazer isso, não depois de ouvir os seus pensamentos. E sentir a sua dor. Mas talvez…se você ficasse e reinasse pelas amazonas…
-Não, não poderia ser assim – eu interrompi. Eu não deixaria você dizer aquilo, jamais. – Meu lugar é ao seu lado.
-Talvez seja um pouco egoísta de se dizer isso, mas confesso que eu não gostaria que você ficasse com elas.
-Eu sei – sorri. É claro que eu sabia. Agora eu sabia. – Não foi coisa do Autolycus, não é? – reuni coragem para perguntar buscando seu olhar.
-O que? – era óbvio que você sabia a que eu estava me referindo mas você preferiu fugir dos meus olhos e de repente, eu me senti desencorajada para continuar. Talvez fosse melhor deixar as coisas como estavam, era uma bela noite estrelada, eu estava imensamente feliz por ter você novamente ao meu lado, supostamente não precisava de mais nada.
-Nada. Deixa pra lá.- como deixar para lá? Eu sabia que precisava lhe perguntar, eu não dormiria naquela noite se não fizesse isso, e duvido que conseguiria reunir coragem numa outra ocasião.
-Fale Gabrielle – você murmurou casualmente, pegando seu chakram ao lado e começando a poli-lo.
– Quando você estava no corpo do Autolycus…e mandou eu fechar os olhos e pensar em você. Não foi ele, foi você, não foi?
-Você está se referindo ao… – você começou, incerta.
Você ficou em silêncio, e esse silêncio me matava. Eu queria ouvir sua resposta, embora interiormente já a soubesse, queria escutar da sua boca. Mas você fugia do meu olhar e não dizia nada. Eu devia respeitar se você não queria falar sobre o assunto, seria melhor assim.
-Eu acho que preciso dormir – eu disse estendendo as peles ao chão e me deitando nelas, olhando para o outro lado do acampamento.
-Gabrielle – você chamou e eu me virei, e pela primeira vez naquela noite você olhou diretamente em meus olhos. – Sim, fui eu.
Naquela noite, adormecida em seus braços, e descobri que não precisava de mais nada para ser feliz e eu dormi, esquecendo tudo que foi passado nos últimos dias.

Nós passamos pelo Tártaro e pelos Campos Elísios em terra, nós passamos pelo céu e pelo inferno – dessa vez literalmente, de qualquer modo – e nós superamos tudo. Nós fizemos escolhas, fizemos sacrifícios, entramos em batalhas titânicas, superamos o desconhecido, perdemos amigos para o tempo. Nós desafiamos a morte (e a própria Morte) e pusemos o Olimpo abaixo.
Foi um ano difícil aquele da sua gravidez. Tivemos pouco tempo para verdadeiramente sentar e respirar, eu tive que fazer escolhas, tive que por um momento deixar inteiramente de ser uma barda e me tornar uma guerreira, e de repente se passou um quarto de século e acordamos num mundo transformado…Pergunto-me o que teria acontecido se isso não tivesse ocorrido.

As pessoas ainda adorariam um panteão de deuses Olímpicos e não o Deus sobre o qual Eli pregou? Os países nórdicos ainda estariam sendo aterrorizados por Grindl? Talvez as amazonas tivessem sido dizimadas por Morloch ou Belerofonte, porque duvido que viveríamos tanto para impedi-los, eu não teria que fazer escolhas tão duras quando estivemos em Helicon, e Calígula tivesse tornado Roma um inferno na terra. E jamais teríamos chegado até o Japão, em Higuchi…

Mas os Destinos deviam saber o que faziam, eu suponho. Ou pelo menos souberam, até eu tacar fogo no tear delas e fazer com que cada um tivesse que “tecer” o seu próprio destino como nós fazíamos.
Por tantas vezes eu me questionei, se ainda havia alguma luz dentro de mim, depois de tantas batalhas, tantas escolhas árduas e tantas mortes. Mas eu percebi que a luz não deveria estar dentro de mim, e sim ao meu lado. Você foi e você é a minha luz, por mais que você não conseguisse enxergar isso.
A verdade é que restou pouco da garotinha de Potédia, o pouco que resta hoje está em minha mente e em meus pergaminhos. Talvez não tenha restado muito da barda também…depois que eu saí…que nós saímos… de Higuchi, eu nunca mais escrevi da forma como costumava fazer. Eu continuo contando histórias, é verdade, os netos dos filhos de Sarah adoram ouví-las, mas a poesia e o tom épico da minha escrita se foram com você, embora eu saiba que você não se foi realmente. Não era o que você disse?

“Mesmo na morte, eu nunca vou lhe deixar”.

Eu sabia que não quebraria a promessa, mas embora você tenha aparecido para mim até hoje, eu sinto falta de muitas coisas. Eu sinto falta de sentir seu cheiro, de seus braços em volta de mim, sinto falta seus beijos, do calor do seu corpo e do modo como tocava a minha pele. Até das pequenas coisas que fazia e me irritava, como quando usou minha blusa para amarrar um brutamontes e de todas as peças que me pregava a cada aniversário que eu fazia. Todas essas pequenas coisas eram o que faziam você ser você.

Sinto falta dos momentos em que você deixava de ser uma guerreira e se tornava apenas a Xena. A minha Xena. Aquela que não estava com todos os sentidos ligados a qualquer indício de batalha, mas que estava rindo com pequenas brincadeiras, que estava adivinhando desenhos nas estrelas comigo, ou simplesmente escutando o crepitar do fogo deitada ao meu lado.

Mas a minha escolha, foi entender a sua escolha. E eu fico feliz que mesmo décadas depois, você ainda esteja ao meu lado, que você ainda venha até a mim e que você tenha permanecido ao meu lado todo esse tempo, me dando força para vencer cada batalha em prol do Bem Supremo, embora por muitas vezes todos tenham achado que eu estava louca, falando “sozinha” por aí. Nunca ninguém conseguiu te ver ou sentir sua presença como eu faço…acho que deve ser por causa da coisa de almas gêmeas, ou alguma magia parecida com o laço que tenho com Ephiny devido ao direito de casta amazona…

Mas de qualquer forma, um dia quando as crianças terminarem de ler todos os outros pergaminhos e chegarem nesse onde estou contando sobre a sua presença espiritual em minha vida, eles saberão da verdade, irão dizer que a “vovó Gabrielle” não estava louca, falando sozinha!

Eu estou tão cansada…a vida me tem sido tão longa, eu vivi muitas coisas, vi grande parte dos nossos amigos partirem antes de mim…Lilah, Eva, grande parte de minhas irmãs amazonas…Foi um trajeto muito grande e as cicatrizes em meu corpo contam a história da guerreira que fui, mas meu corpo não tem mais a força de antes. Pudera… Respeitando a cronologia, já fazem mais de 70 anos desde que deixei Potédia.

Lembro-me da metáfora do rio, e das pedras que ficam no fundo, mudando-o para sempre…acho que já acumulei muitas pedras com tudo que passamos, e que passei depois que voltei da terra dos faraós, com todas as dificuldades enfrentadas e cada sacrifício feito.

Ah!Se eu tivesse o poder de manipular o tear dos Destinos, e hoje eu voltasse para o primeiro dia em que te vi, lá em Potédia! Se eu pudesse fazer isso…Sabe o que eu diria naquele dia?…”

-O que você diria? – uma luz se formou no canto do quarto antes iluminado somente por um candeeiro e ali apareceu Xena com um breve sorriso e com a mesma aparência de décadas atrás.
A idosa senhora de cabelos branquinhos como a neve e de pele cheia de rugas ergueu os olhos verdes e retribuiu o sorriso.
-“Você tem que me levar com você e me ensinar tudo que você sabe” – disse e em seguida escreveu a frase no pergaminho, enrolando-o e deixando-o de lado com a pena.
-E eu levaria. E eu vou levar, novamente – disse estendendo a mão para Gabrielle.
-Você veio me buscar? Veio me levar para junto de você Xena? – perguntou com algumas lágrimas escorrendo.
-Você não quer ir?
-Tenho esperado por essa hora há anos…– e segurou a mão estendida, deixando seu espírito se desprender, tomando a aparência jovem de olhos brilhantes e lindos cabelos loiros e longos novamente, para se juntar ao de Xena e ambas, abraçadas, se desvanecerem em uma luz intensa.

Epílogo

-Acordando e levantando! Acordando e levantando!
-Eu posso até acordar, mas eu me recuso a levantar!E por que eu tenho a impressão de já ter ouvido essa frase antes?
-Porque você é uma terapeuta de vidas passadas que tem deja vus e porque não importa em que vida esteja será sempre preguiçosa.
-Minha preguiça é milenar, isso não mudará nunca! – disse virando-se e cobrindo a cabeça com um travesseiro.
-Que pena, o café da manhã está bom sabia?
-Você fez café da manhã? – perguntou incrédula com a voz ainda abafada pelo travesseiro.
-Eu tenho muitas habilidades…
Mattie abriu os olhos esfregando-os vagarosamente e virou-se olhando para sua cara-metade e sorrindo.
-Isso é estranho.
-Eu fazer café da manhã?
-Não sua boba, a situação. O que Ares fez com a gente, digo… essa…troca dos corpos. Eu não sei se devo te chamar de Annie ou de Henry…ou…de Xena. Jamais acreditaria numa loucura dessas se não tivesse acontecido comigo.
Annie riu e sentou-se na cama abraçando Mattie.
-Se é estranho pra mim esse “novo” corpo, imagino como está sendo pra você! Mas creio que o importante é que estamos juntas, e nem Ares nem ninguém vai mudar isso.
Será uma questão de tempo até nos acostumarmos, afinal vivemos assim em outra vida. E sabe, tenho que te dizer uma coisa…
-O que?
-Você fica mais…interessante nesse corpo, sabia?
-Ah é? Quer dizer que antes não era? – perguntou com uma falsa expressão de indignação.
-Era! – disse franzindo o nariz e rindo – Mas…assim fica mais…atraente.
-Atraente é? – perguntou erguendo uma sobrancelha.
-Para – levantou-se rindo – nós temos um café da manhã pra tomar, lembra-se?! Além disso temos que estar às uma em ponto na reunião do C.H.A.K.R.A.M., portanto “Acordando e levantando!”, não é?
-O que eles querem de novo com a gente?
-Parece que acharam um último pergaminho, que será aberto hoje.
-Mais um?! Deuses…só espero que esse não seja um daqueles cheio de “detalhes” se é que me entende.

Nota