Um  Caso Não Resolvido

I

A admiração e paixão que sentia antes enfraquecia um pouco mais a cada dia que passava naquela cela, o pior ambiente que já estivera: Parede de pedras fria e dura como gostaria que seu coração se tornasse diante daquele sofrimento, úmida como se sentia ouvindo uma determinada voz, e cheias de musgo e fungo. Além da claustrofobia, começava a ter alergia. E alucinava com criaturas nojentas produtoras de teia em miniatura, de cabeça humana e cabelo loiro. Simbólico! Afinal entendia bem em qual armadilha havia sido aprisionada e enrolada: Aquela garota cheia de luz que escolhera seguir pelo caminho obscuro que uma marmanja hipócrita e degenerada tinha a oferecer.

 Estava presa numa grossa estaca, sentia-se decepcionada. Rejeitada pela sua prometida e vencida pela sua rival no último momento que vira sua ex-amada, aguardando ser jogada naquele cômodo enclausurado onde seus sonhos morreriam e sua luz se apagaria. A conformação era o único ato possível. De tal modo que as vozes silenciaram por um bom tempo. Tempo para se repensar, para se reconectar, para ressignificar sua última experiência. Até o dia em que pôde ouvir vozes novamente, a que guiaria para sua liberdade e nova vida. A mesma força poderosa e espiritual que concedera a informação, da morte trágica daquelas duas pelas mãos dos romanos, revelaria agora que o que sentia não era amor, apenas um hiperfoco que deveria ser direcionado à outra missão: a vingança!

            O raio de sol batia em sua face e fazia seu olho arder, já era dia. Acordou assustada, levantando-se apavorada como alguém que sai da água ofegante em busca de ar. O nariz entupido impedia sua respiração, tossiu chorosa ao inspirar o ar pela boca e engasgou. “Não aguento mais, eu vou sair daqui. Eu não mereço estar aqui!” Pensou revoltada.  “Sim, você vai…” uma voz perscrutadora sussurrou. Najara ficou arrepiada, o Djin se manifestava em vozes diferentes, às vezes com imagem, às vezes somente intuição. Ela amava sentir, e sempre perdia o controle da reação de seu corpo. Não importa o quão sinistro e obscuro parecia ser, ela se entregava aquela onda. Por isso preferia se recolher e estar sozinha quando acontecia, em estado de meditação profundamente concentrado. Ela soltou um gemido baixo e ficou atenta às instruções para sua fuga.

            “Seu amor não correspondido se tornará ódio agora, será o combustível da sua vingança e seu desejo será realizado. Em breve elas experimentarão a morte pela escolha do Destino, e não há nada o que fazer diante disso. Contudo, você poderá ter satisfação causando novamente desarmonia entre as duas, e uma virgindade de sangue sendo deflorada pondo em xeque o moralismo farsante da guerreira, da poetisa e do amigo bobalhão. Você conseguiu atingir Xena uma vez, ela está vulnerável e desestabilizada. Ambas estão perdidas num emaranhado de caminhos que não estão sabendo trilhar, aproveite o caos. Vá e se divirta! Gabrielle ainda está iludida pela pacificação, obcecada por bondade e gentileza, e receosa com a obscuridade. Ainda poderá seduzi-la, finja que mudou e Xena ficará enciumada. Não lute, haja na mente e não fisicamente. Conte histórias sobre o Profeta Elai, se disser que o encontrou e aprendeu algo com ele soará mais convincente. Ela cairá no seu papo.”

            Najara não tinha dúvidas sobre obedecer, sempre fora leal e crente. O importante naquelas circunstâncias eram sua liberdade, sua vingança, e seu elo resgatado com Djin. havia um bom plano a ser executado no dia seguinte. Ao anoitecer deitou-se para dormir e fez uma oração. Fechou os olhos com firmeza e respirou fundo, ignorando a atmosfera mofada e o cheiro de fumaça das tochas. Se o Djin assim concedesse, uma projeção astral deixaria seu corpo oco e seus sinais vitais indetectáveis. Inspirando e expirando lentamente, foi deixando seu corpo relaxado. Clamar pelo Djin era o seu mantra, um leve estágio de sono tomou conta de sua mente e uma sensação anestésica percorria seus dedos das mãos e dos pés, alastrando pelas pernas e braços. Uma energia de calor percorreu sua virilha, seu abdômen e seu peito. A garganta fechou e seus olhos pareciam colados porque não conseguia abri-los. Estava assustada, era a primeira vez que tentava realizar uma façanha do tipo e a sensação era muito esquisita. De repente não sentia mais nada, nem mesmo som. Havia uma quietude e paz bem agradáveis, como se flutuasse. Seus olhos finalmente se abriram e contemplavam o cenário tomado pela escuridão da noite, iluminado pela meia-lua e estrelas. Seu corpo repousava numa esteira de palha, passável de ser um cadáver enquanto um espectro semelhante a sua forma física pairava em outra dimensão.

            O que era antes o cenário de uma prisão insalubre desmanchava sua imagem e se convertia em outro lugar, se não estava sonhando onde poderia estar? Teria ficado com as vias narinas tão congestionadas ao ponto de não respirar, morrer e ir para o plano espiritual encontrar a Luz? Ela percebeu estar em pé sobre um solo barrento e marrom como de uma cova, ouviu as ondas do mar batendo no fundo e avistou a paisagem de uma praia não muito longe, neblina em toda volta, um grande morro de pedra do outro lado. Um campo de girassóis brancos florescendo embelezavam o resto da paisagem. Uma figura feminina passeava pela praia e Najara correu até ela. Sensitivamente reconheceu quem poderia ser.

             – Djin? Eu não estou morta, estou? Eu orei, fiz a projeção, eu estava fora do corpo e dentro da cela. De repente perdi tudo de vista…

A figura era uma mulher alta, imponente. Tinha um rosto maduro, olhar penetrante e misterioso, sua bocarra formava um sorriso  que não demonstrava felicidade mas intimidação. Najara sentiu-se extremamente seduzida e excitada com o que via. Desejou ser tocada por Djin. A voz que respondia era sinistra e familiar.

– Sente-se morta vindo até mim? – Najara sentia-se hipnotizada por vislumbrar a entidade: A mulher tinha um olhar poderosíssimo! Repleto com tanta verdade, que ela sabia que poderia perguntar qualquer coisa que obteria uma solução imediata sem necessidade de uma resposta verbal. Estava mais viva do que nunca! – Seu corpo agora descansa, sua mente fortalece e daqui a alguns instantes se fundirá novamente a ele, estará a todo vapor para cumprir com a missão que deseja.

– Obrigado! – Najara exclamou em grande devoção, ajoelhando-se. Abraçou as pernas da mulher, com os olhos marejados.

– Levante-se, querida.

Obediente ela ergueu sua cabeça e esticou os joelhos levantando-se, encarou novamente aquela mulher encantadora, os olhares não se desgrudavam. Najara sorriu com gratidão quando foi abraçada de surpresa e teve um beijo roubado. Agora sentia alegria e paixão, a mulher correspondia com uma risada. Sentiu a mão fria, dedos compridos apertando o seu queixo e a beijando novamente. Correspondeu usando a língua dessa vez. Então caminharam até o campo dos girassóis brancos e se deitaram, foi onde Najara se entregou aqueles toques. Ouvia-se um som etéreo das ondas quebrando àquela distância, outra onda de prazer fluia por todo seu corpo espectral a cada carícia que recebia. Aquela energia calorosa da relação misturada ao perfume cítrico e amadeirado fazia Najara entrar em êxtase. O que ela mais desejava era o poder daquele afeto, aquele bem-estar e euforia proporcionados de forma inédita em sua vida. Não mais interessava sentimento algum por Xena ou Gabrielle, aquela era a sua Luz e tudo o que estava além daquele instante, daquela plano, estava sendo ignorado por ela, esquecido como se nunca tivesse existido.

Najara despertou, seu corpo estava encharcado e bem vivo ainda na cela. A porta gradeada estava aberta, havia dois guardas ao redor de seu corpo, abaixados checando seus sinais vitais após verificarem que ela não estava respirando antes.

            – Ela não está morta, seu idiota!

            – Mas parecia, não respondia…

            Najara imediatamente pôs-se ao ataque. Sentia-se com muita energia e potência, logo cerrou as sobrancelhas e deu um grito, desferindo um soco em cada guarda com cada uma de suas mãos em punho fechado. Levantou com um salto e correu em direção a porta aberta. Os guardas tontos perceberam que haviam cometido um grande erro. Levantaram e correram para o corredor mas não a avistaram. Najara estava escondida dentro de um carrinho com panos sujos e fedorentos num aposento que parecia uma dispensa. Teria que suportar a fedentina por alguns minutos antes de conseguir escapar. Os guardas corriam pelos corredores da prisão, em outras celas algumas detentas faziam algazarra. “Ela foi por ali! Ela se escondeu!” Começaram a se sentir confusos e perturbados devido a muitas vozes no ambiente, uma gritaria ensurdecedora e uma gargalhada tenebrosa em suas mentes.

            Logo mais alguém arrastou o carrinho para fora em direção ao rio para lavar a roupa suja e Najara conseguiu escapar, com medo ela pulou no rio e foi levada pela correnteza. Poupou as forças não se debatendo contra a corrente, por isso não se afogou. Teve fôlego suficiente para nadar até uma margem segura quando a água ficou calma e plana. Após descansar foi em busca de abrigo e provisões, voltando ao plano de vingança consumida pela revolta.

II

            Foi difícil para Najara manter-se no personagem quando esteve ao encontro de Xena & Gabrielle, ainda conheceu Joxer: Um covarde abobalhado que fez seu sacrifício de sangue como Djin havia mencionado. Ficar sem lutar, agir sem armas para tornar tudo aquilo plausível exigiu muito de seu autocontrole. Graças a iluminação que recebera foi capaz de notar o quão patética Gabrielle era, não compreendia nada sobre a Luz e queria sustentar um discurso pacifista que a levaria à morte junto de sua amiguinha. Xena por sua vez era muito esperta, desconfiada, impossível de convencer. Embuste! Afinal, somente ela poderia se dar ao luxo da redenção e progresso. Tão sagaz, e incapacitada de notar que até mesmo Gabrielle já estava diferente desde nosso último  encontro. Sentia que devia prosseguir com o planejado como débito ao Djin. Intuitivamente sabia que a Princesa Guerreira também atrapalhava o propósito de seus guias, não compreendia muito bem se era pela sua falta de fé e arrogância às divindades. Enfim, não havia nada nessa existência  que passaria despercebido e isento da intervenção intrometida daquela mulherzinha.

            Temia bobear com Gabrielle mas os ânimos estavam bem aflorados entre aquele grupo, se mexesse bem os pauzinhos Armando poderia matar Joxer, Gabrielle e Xena poderiam brigar por seus caminhos, um pouco de caos e sofrimento para bagunçar a vida delas aconteceria de um jeito ou de outro. Xena estava morta de ciúmes, sabia que não tiraria Gabrielle dela e isso não tinha mais relevância. Todavia, estava certa de que conseguiria deixar aquele relacionamento abalado de alguma forma. O verdadeiro triunfo seria seu momento de comemoração com Djin novamente, daquela mesma forma que fora antes. Ansiava por aquela conexão mágica, aquele prazer fantástico, novamente.

            Por fim Najara aprendeu que Gabrielle estava certa sobre mudanças serem realmente possíveis, ela poderia ter mudado se quisesse. Bastaria cumprir com o que estava fingindo pregar. No fundo a loirinha era uma boa pessoa mal acompanhada, apenas.  Levou uma surra da Xena porque não aguentou se conter, e acabou toda machucada e presa novamente. Consciente o suficiente para testemunhar a conversa das duas, enquanto a deixavam. Atitudes de perdão eram nobres, lições foram ensinadas. No decorrer daquele dia atos de coragem e amor foram mostrados e vivenciados. Entretanto, a força da violência era o que deixava seu coração aquecido, tinha que reconhecer. A própria Xena concordaria.

Em verdade não havia conhecido o tal do Elai, tinha conhecimento de sua ladainha pacificadora com requintes de religião por meio das vozes e do que conversava com Gabrielle, inclusive era nítido nela a influência que sofrera, ou lavagem cerebral. Admirava secretamente como Xena cumpria o dever de respeitá-la, como pode os caminhos das duas serem o mesmo se suas condutas são tão distintas? Derrotada e febril, Najara adormeceu recitando suas preces.

III

– Djin? Estou finalmente ao seu encontro? Eu gostaria de morrer e passar a eternidade com você, seja em qual plano for. Nada mais sobre Xena & Gabrielle, apenas ter o meu ser todo possuído pela sua Luz!

– Luz? Hahahahaha! Do que você está falando, Najara? Você pertencerá a mim e me entregará seu corpo para um trabalho decente dessa vez. Eu sou aquela que veio para matar e destruir, a que domina a escuridão, a torturadora espiritual que corrói almas…

Najara estava assombrada, porém o fascínio e apego que sentia por aquela figura com quem havia se deitado no campo onírico dos girassóis brancos não se desfaria tão fácil. O que estava acontecendo? A beleza e atração ali presentes transparecia a face de uma bruxa.

Najara:

– Quem é você? Oh guia espiritual por quem eu me entreguei, permiti que possuísse minha alma, devotei eterna reverência e fidelidade. Eu a amo! Mas agora me percebo em volta da feitiçaria. O que está acontecendo?

– Eu sou Alti! Tratei sua mediunidade de modo superestimado. Utilizei seu fanatismo para atraí-la, sua espiritualidade tinha grande potencial e você desperdiçou numa falsa crença iluminada.

– Alti…? Ouvi falar de você, mas e o Djin…? Como pôde? Eu trabalhei para Luz!

– Eu sou uma antiga conhecida de Xena, encarnada no mal em quantas vidas forem necessárias. Meu espírito é forte, carregado pelas sombras.

– Que a Luz me proteja! Que a Luz nos proteja!

Najara sentia compaixão, queria abraçá-la e beijá-la. Uma lágrima escorreu, farta e pesada, involuntariamente.

–  Pare de choramingar e venha até mim, querida. – Alti a abraçou e falou baixo em seu ouvido com tom de acalanto:  – Não há luz mais… mas teremos uma a outra.

– Podemos ser o equilíbrio! Eu já converti pessoas assim como já enviei outras à Luz pelo uso da força. – Najara queria olhar no fundo dos olhos de Alti novamente, onde encontrava conforto.

– É aí que você se engana! Você nunca enviou ninguém para Luz alguma realmente, apenas se utilizou desse argumento charlatão para saciar seu desejo de agressividade e morte. Eu posso te dar isso agora sem falsos moralismos, só conceda-me um favor. E eu sei que vai, porque tudo o fomos capaz de experimentar juntas é o que completa tudo o que você pode compreender como saciar desejo.

A xamaneza queria a loira, Najara tinha um grande e utilíssimo  poder e no fundo sede de sangue, isso demandaria desenvolvimento mas uma aliança estaria sendo construída mais espontaneamente que o previsto. Najara poderia sentir-se frustrada consigo mesma de início ao assimilar que vivia uma trajetória trabalhando por uma força diferente do que queria ter seguido, oposta ao que sua crença supostamente deveria ser. Todavia a oferta de Alti seria o desfecho coerente para sua história.

Fim