Uma explosão dourada cintilante iluminou por alguns segundos aquele ambiente escuro e silencioso, fazendo a guerreira reagir instintivamente olhando por cima dos seus ombros.

-Você? – perguntou com um pouco de desdém misturado com surpresa.

-E por que não? Nunca refletiu para onde vão os “imortais” após serem mortos?

-De todos os lugares? – ela indagou, cruzando os braços  e continuando olhando para a escuridão à frente.

-Aí está a graça, Xena. Eu posso transitar por todos os reinos espirituais. Estou livre e acho que deveria te agradecer por isso pra falar a verdade.

-Pensei que assassinos de crianças pertencessem ao Tártaro. –  a guerreira respondeu com um pouco de amargura em sua voz.

-Quando houve um Tártaro, talvez. Mas como sabe, não chegamos a isso. Nem eu e nem você. Dizem que até que um leão possa contar sua história, o caçador sempre será o herói. Mas você sabe disso, porque você já foi o caçador, quando se tratava de Esperança.

A guerreira permaneceu em silêncio.

-Já parou para refletir, Xena, por que eu estou livre e você não?

-O que você quer, Athena?

-Você presume que eu esteja aqui para te escarnecer, mas honestamente, a diversão está em ter alguém para ter uma conversa com um mínimo de profundidade. Você sabe como as coisas podem se tornar enfadonhas quando se está morta. E sabe como o ser vivo médio tende a ser raso.

-E o que faz você pensar que eu seja a pessoa ideal para isso?

-Você não me venera. Nunca venerou e existe um certo alívio nisso. Você não pode negar que sempre existiu um senso de respeito entre nós… É uma pena que as coisas tenham acabado do jeito que acabaram entre a gente, olhando para trás, agora vejo que foi uma tolice atacar você e sua filha. Logo eu, a deusa da sabedoria, derrotada pela própria cegueira. – Athena balançou a cabeça, como se desdenhasse de si mesma –  Se eu pudesse voltar atrás, teria tentado achar uma alternativa mais sensata e um jogo mais limpo. Não me entenda mal, não por mim… Não tenho mais ressentimento. Honestamente, morrer foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. Mas você deve saber, já que fez disso uma escolha própria também.

-Rumores que se espalham como fogo grego.

– Eu entendo porque nunca aceitou as ofertas de Ares para se juntar ao Olimpo. O poder de ser um deus é inebriante, mas a liberdade de NÃO SER é única. Se eu soubesse disso antes, não teria sequer lutado contra o inevitável. Não preciso mais me preocupar com demandas, sacerdotes, mediações, mesquinhez humana, com a estupidez mundana dos mortais, com guerras…

-Nunca entendi por que sabedoria e guerra andavam na mesma estrada para você.

-Ah, Xena. Não me compare à Ares, por favor. Meu irmão é… uma pedra bruta. A minha guerra era a guerra limpa. Meus exércitos nunca foram inspirados pelo derramamento de sangue. Os pacifistas abominam tanto a guerra, mas veja bem, se existem duas tribos que disputam o pouco alimento  que a terra forneceu num inverno rigoroso, a prevalência de ambas fadaria todos à desnutrição e morte. Mas a guerra pelo alimento, tornará possível que um dos lados sobreviva e se desenvolva e prospere. Sem a guerra, todos morreriam. Mas você, melhor do que ninguém, entende o caráter de equilíbrio que a guerra pode trazer.

-E como decidir qual lado receberia a sua benção?

-Como você decidia qual lado ajudar, antes de entrar numa batalha? – a guerreira se calou.- Como pode ver, não somos tão diferentes. A diferença é que a morte me libertou, enquanto você continua aprisionada, mesmo tendo se sacrificado para conseguir a liberdade. Eu, pela primeira vez, experimento o desprendimento de minhas obrigações, ao lado de minha amada Ilainus. Mas e quanto à você? Como tem se saído sem a sua alma gêmea, Xena? O pós-vida sem um compasso moral aparentemente não lhe trouxe a redenção que esperava, não é?

-Foi a escolha certa.

-Foi mesmo? É incrível como a gente aprende algo novo todos os dias. Recentemente aprendi que a única diferença entre estar vivo e morto é a nossa capacidade de agir em diferentes mundos. A moralidade continuará sendo  a mesma. No final do dia, viva ou morta, você ainda tem seus pecados passados, a diferença crucial é que viva ainda pode fazer algo para tentar equilibrar a imensa balança do universo, e morta… bom, você só pode esperar que os outros façam isso por você.

-E como vai a sua balança?

-É o que nos difere. Eu nunca fui humana. Me arrependo de pouquíssimas coisas que fiz. Você, se arrepende de quase tudo, e tendo se sacrificado para tentar expiar o que sente, continua se arrependendo da dor que causou em Gabrielle.

-Gabrielle entende que a minha decisão foi pelo bem maior.

-Sim, ela sempre foi muito melhor nisso do que você. – Athena soltou um riso cínico – Quantas vezes você desrespeitou as escolhas que ela fez em nome do bem maior? Eu repito, Xena, por que eu estou livre e você não?

-Consciência.

-Bingo. Sua consciência te prendeu neste limbo. Não há descanso para os maus. Todas as vezes que você tenta acertar, ainda sente que está errando. Apaziguar a sede de vingança de 40.000 almas, ou deixar Gabrielle perecendo ao luto? Atender o pedido de uma adolescente manipuladora que te usou para matar a própria família, ou continuar sua missão de proteger a mensageira de Eli? Cimentar seus pés na culpa do passado, ou fazer algo pelo bem futuro das pessoas? Sua moralidade já deixou você decidir?

-Eu não queria ter que decidir. Apenas estava cansada. Existiam 40 mil espíritos sem descanso por minha culpa, Athena. Você não entenderia o peso disso porque nunca foi humana.

-Fugir do passado cansa. É por isso que eu não fujo. Reconheço que cometi erros terríveis, mas honestamente, todos cometeram, sejam humanos ou deuses. O que me surpreende é que os humanos conseguem ser extremamente soberbos e arrogantes para achar que o papel que eles desempenham na ordem do universo é maior do que realmente é. Como você agora. – a deusa riu secamente. Não era um riso divertido, mas sim um pouco irritadiço.

-Eu não entendo.

-Uma morte em troca de 40.000. Sério, Xena? Você acha que isso faria diferença?

-Foi minha culpa. Eu não podia deixar eles presos à Yodoshi.

-Você não destruiu o espírito dele?

-Sim.

-Então o que os prendia? – Athena riu  cinicamente – Novamente, por que eu estou livre e você não?

-Porque você era uma deusa mesquinha sem senso de consciência e eu não. – Xena rosnou.

-Um ponto válido. E você acha que era você, um grãozinho insignificante que fazia aquelas 40 mil almas ficarem presas à Higuchi mesmo? Qual é, Xena. Você sabe que a roda do destino, quando ela ainda existia, não dava a mínima para a influência de um humano na ordem imparável da história da humanidade. O desejo de vingança, o ódio, o ressentimento que os cidadãos de Higuchi tinham por Yodoshi é que os ataram àquela terra. Você estando lá e tentando se defender de um linchamento público ou não, aquele fogo consumiria a cidade de um jeito ou de outro. A diferença é que você e a população daquele vilarejo foram pegos em fogo cruzado do que podemos chamar de “evento canônico”. A ação dos dois lados desencadeou algo que aconteceria, de um jeito ou de outro. O seu azar foi estar no lugar errado, na hora errada e agora dividir a culpa com aqueles homens. Eles te atacaram, você se defendeu, isso ocasionou o fogo. A maldade de Yodoshi e o ódio que a população sentia por ele criou um karma coletivo entre eles, e você tolamente se enfiou no meio dele. Parabéns.

-Por que eu acreditaria em você? E como diabos você ficou sabendo sobre todos esses fatos?

-Como você disse… rumores se espalham como fogo grego. Eu tenho meus contatos. Mas você não precisa acreditar. Entretanto, acha que não vi a história se repetir incontáveis vezes em milênios de existência? Humanos são um sistema  muito simples e previsível para quem passou milênios observando. Mesmo com todas as variáveis, uma vez que você desvende a lógica das suas motivações, você entende o quebra cabeças. Mas você consegue compreender a essência disso, afinal, foi uma estrategista. Admiro isso.

-Sua sabedoria milenar conseguiria elucidar por que perdi o contato com Gabrielle uma vez que ela saiu das terras japonesas? – perguntou com amargura.

-Não é óbvio? – a deusa disse como se tudo fosse verdadeiramente óbvio e tedioso. Sua voz não tinha soberba ou arrogância nesse momento. – Imagino que você saiba de todos os detalhes sobre o porque vocês conseguiam se falar e se sentir, toda essa coisa piegas sobre almas gêmeas tão próprias dos humanos.  Mas você não é mais feita de matéria, você é feita de energia, de pensamento, de vontade, de intenção. Chame como quiser. Quando você tocava em Gabrielle, você conseguia tocar a matéria porque a sua intenção é tão forte que se torna palpável. Se a culpa que você sente consegue nublar toda a sua intenção, ela te prende no seu ponto de origem dela. Imagine um grande tornado que puxa tudo para seu centro, se alimentando e crescendo a cada metro que percorre e engolindo cada vez mais coisas. Você se prendeu numa espiral de autoflagelamento mental que te faz achar que deve algo à essa terra e seu mundo espiritual. Por que os gregos acabavam nos campos Elíseos ou no Tártaro? Porque escutaram por décadas as histórias épicas e heróis e tiranos que iam parar lá. Foram atraídos pela energia desses lugares por causa dos seus ideais. Olhe para os nórdicos. Valhalla é puro caos e destruição, tal qual as sagas deles. A intenção deles, o modo como vibram os leva pra lá.

-Eu estive no céu com Gabrielle. Foi breve e caótico.

-Alimentadas pelas histórias de Eli sobre um céu.

-E para onde eu deveria ir? –  perguntou Xena com um pouco de escárnio em sua voz.

-Para nenhum lugar, ou para todos os lugares. Que diferença faz? Você e Gabrielle não vagaram juntas pelo mundo? O que mudou agora?

-Não estou mais viva.

-E daí? Você não tem mais matéria. Isso é muito mais uma vantagem do que um elemento limitador. Precisei morrer para aprender algo novo depois de milênios. Não existe um paraíso, e tampouco existe inferno. As duas coisas estão dentro de você. Quando entendi isso, me tornei livre.

Xena suspirou pesadamente como se o cansaço mental daquela conversa estivesse lhe tomando.

-Sei que o motivo de estar aqui não é puramente o seu tédio, Athena. Existe muito mais gente na sua lista de prioridades para atazanar.

-É ofensivo achar que eu resumiria meu pós vida a isso, Xena. Honestamente, sentar-se com Ilainus no abismo do fim do universo e assistir o pôr do sol cósmico está muito acima na minha lista de prioridades do que incomodar alguém. Mas você é inteligente e tem razão. Estou aqui como um favor.

-A quem?

-Coisas de família, se pudermos chamar assim.

-Ares? O que Ares quer?

-Você viva.

-Mande-o se catar.

-Perfeitamente. E para Afrodite eu digo o que?

-O que tem Afrodite?

-Eu disse que eram coisas da família. Não disse que era apenas sobre Ares. Afrodite mandou eu entregar um pergaminho para você.

-Então é isso? Você morreu mas não faz diferença. Continua mantendo contato com eles e fazendo esquemas pelo Olimpo?

Athena deu de ombros.

-Como disse, diferente de você, eu estou livre. O contato, deve ser devido a deidade deles. Quanto à esquemas pelo Olimpo, acredito que o conteúdo desse pergaminho irá te interessar bem mais do que isso.

Xena pegou o pergaminho com um olhar desconfiado. Sentou-se ao chão em posição de lótus e percorreu os olhos pelas inúmeras linhas ali escritas. Ergueu os olhos, estática por alguns segundos.

-Isso é verdadeiro? Como posso confiar em você?

-Você alguma vez confiou em algum deus? Mas honestamente, tanto faz. Que motivos eu teria para lhe enganar? Não há ganho e nem sabedoria nisso. Tanto Afrodite quanto Ares lhe querem viva por seus motivos próprios, mas os motivos deles não importam. Você sabe quem importa.E sabe que seria justo dar essa chance a ela de viver isso ao seu lado, como ela esteve junto de você antes.

Os olhos de Xena brilharam marejados por um segundo.

-E como eu teria certeza? Sobre as almas?

-Como você tem certeza que estar aqui faz alguma diferença? A palavra de uma única pessoa, que lhe manipulou para seus fins é o que basta? Você não é estúpida, Xena. Faça-me o favor.

-Como eu faço para sair? Desse limbo?

-Você precisa escolher. O que vai guiar a sua intenção? Todo o seu blábláblá de culpa e autoflagelamento, ou o que você leu no pergaminho?  A pieguice da redenção do herói ou a família, Xena? Quando você fizer a escolha, estará livre e poderá achar Gabrielle onde ela estiver. Mas não perca muito tempo. Nesse momento ela está galopando furiosamente de volta para a Grécia para tirar a sua filha irritante de mais uma encrenca em um showzinho com as Amazonas irritantes. Não vai ser bonito.

Xena levantou-se e fechou os olhos como se resolvesse algum conflito interno.

-Eu escolho Gabrielle.

-Muito bem, a porta está ali – disse Athena apontando para o canto daquele local escuro e revelando uma porta tão simples e óbvia, mas que os olhos de Xena nublados de culpa eram incapazes de ver antes. Ela dirigiu-se à porta, enxergando um feixe de luz do outro lado.

-Obrigada, Athena. E sinto muito por como as coisas acabaram entre nós.

-Que bobagem. Eu só tenho a agradecer.

A deusa sorriu, e estranhamento era um sorriso sincero.

Xena sentiu seu corpo espiritual ser sugado por um vórtice violento de energia enquanto mentalizava a imagem de Gabrielle e a “viagem” durou alguns segundos até ela aterrissar na cabana da Rainha amazona.

Gabrielle estava suada, tinha respingos de sangue nos nós de seus dedos e limpava seu rosto sujo, quando se virou. Seu semblante, antes furioso, se desfez em surpresa e por alguns segundos perdeu o ar.

-XENA?!

-Eu disse que para onde você fosse, eu estaria ao seu lado – respondeu sorrindo.