Capítulo Único
por DietrichO silêncio na cabana médica era denso. Os olhares das mulheres estavam perdidos, desolados. Eu fazia o meu melhor para cuidar das feridas delas. Percebi que muitas se incomodavam com minha presença ali, mas minha mãe Gabrielle me encorajou a continuar meu trabalho. Fugir do meu passado não era opção, apenas enfrentá-lo. Eu observava, encantada, como minha mãe Gabrielle, além de tratar dos machucados, sabia como dispensar palavras de conforto para todas mesmo diante daquela situação angustiante. Desejei um dia conseguir amar como ela conseguia. Às vezes, ela me inspirava mais que o próprio Eli.
Assim que elas tinham voltado de Helicon, algumas horas atrás, a primeira coisa que notei foi que Varia não estava entre elas. Aquilo fez minhas mãos ficarem dormentes, e acho que minha mãe Gabrielle percebeu meu olhar, pois me disse que Varia estava viva, que tinha apenas saído para dar uma volta na floresta. Quis logo ir atrás dela, mas Gabrielle me impediu.
– Varia é como sua mãe – ela me disse – precisa de solidão e silêncio. Mais tarde você vai. Vamos primeiro cuidar das outras – pelo tom de voz de minha mãe Gabrielle, eu senti que algo mais tinha acontecido, além do fato já devastador de que tão poucas delas tinham voltado.
Demorou um bom tempo para que todas as feridas estivessem devidamente cuidadas. A noite já tinha caído quando saí da cabana médica e vasculhei o chão até encontrar os rastros de Varia. Os segui facilmente, apesar da escuridão. A lua cheia ajudava e meus olhos treinados sabiam captar mesmo as coisas mais sutis. A encontrei sentada em um lençol, encostada numa pedra, na beira de uma lagoa próxima. O olhar dela estava perdido, cheio de dor e confusão.
Eu ainda estava distante, mas ela entrou em alerta, fazendo menção de se levantar. Que tola eu era, achando que iria conseguir me aproximar furtivamente de alguém como Varia.
– Sou eu – falei em voz alta, e ela voltou a se recostar na pedra. Quando finalmente a alcancei, perguntei:
– Posso sentar?
Ela deu de ombros, tentando parecer estoica e indiferente. Eu tinha trazido comigo o material médico e, como eu adivinhara, ela não tinha cuidado de suas feridas. Tinha um talho na perna esquerda, manchas de sangue em seu abdome e seu lábio inferior estava partido.
Enchi o vasilhame que eu trouxera com a água límpida da lagoa e me sentei ao lado dela. Olhei para ela com o pano molhado na mão e levantei uma sobrancelha. Mais uma vez, ela deu de ombros, e eu comecei a limpar com cuidado o sangue coagulado em sua coxa. Depois, tirei as manchas de seu abdome e engoli em seco ao perceber que aquele sangue não era o dela. Por fim, segurei seu queixo e encostei o pano em seu lábio, e foi só aí que ela reagiu:
– Ouch!
– Sério? Essa ferida?
– Doeu.
Mesmo nessa situação deplorável, a forma quase infantil com que ela dissera isso me fez abrir o mínimo dos sorrisos. O rosto impassível dela finalmente se desfaz e ela me encara com olhos angustiados.
– Eu traí minha nação – ela diz. Os olhos delas estão brilhantes de lágrimas, mas nenhuma escorre.
Eu fico confusa.
– Do que está falando?
– Concordei em trocar a vida de Gabrielle pela das amazonas. Quase atirei uma flecha nela. Teria atirado se Xena não tivesse me impedido.
Meu coração dá um salto com aquela informação. É difícil organizar meu interior nesse momento, pois, ao mesmo tempo em que estou preocupada com o sofrimento de Varia, é da minha mãe que ela está falando.
– Tenho certeza que parecia a melhor opção na hora – eu digo, tentando ser conciliadora.
– Eu falho continuamente como rainha e como amazona – ela prossegue, finalmente uma lágrima escorre de seu olho direito – Marga via algo em mim, mas… não fiz nada além de tomar uma série de decisões equivocadas. Quase matei você, duas vezes, aliei-me com Ares, agi como uma pirralha quando Morloch nos caçou e agora… quase matei sua mãe.
– Você já falou com minha mãe?
Varia dá um riso cansado, e enxuga a lágrima que molha seu rosto.
– Ela me perdoou e disse que eu devo continuar a ser rainha.
– Soa como algo que ela diria – respondo.
– Não serei rainha. Nem sei se devo continuar a ser uma amazona.
Ela desvia novamente os olhos de mim, e apoia o braço no joelho, recostando o queixo na mão. Pelo tremor na mão dela eu percebo o que está acontecendo. Me aproximo e a abraço. Ela ofega, mas imediatamente enterra o rosto em meu ombro e seu pranto se rompe. É a segunda vez em tão pouco tempo que a tenho chorando em meus braços.
Mas dessa vez, diferente da outra, ela não se interrompe imediatamente, ela se aninha e deixa seu choro fluir. A seguro e acaricio seus cabelos, não digo uma palavra, apenas a sustento. Após um certo tempo o pranto dela se encerra, mas ela não me solta ou tira o rosto de meu ombro, sinto sua respiração em meu pescoço. Depois do que pareceu uma eternidade, ela fixa os olhos cor de âmbar nos meus azuis. O rosto dela está tão perto do meu.
– Como me perdoo? – ela sussurra.
– Quando eu descobrir, te digo – respondo.
O sorriso dela é tragicômico, condizente com a situação. Cá estou eu, a mulher que matou sua irmã de sangue e escravizou suas irmãs amazonas, que carrega o assassinato de milhares nas costas, consolando-a pelos erros tão menos letais que ela cometeu.
– Eu vejo o que Marga viu em você – digo, acariciando o rosto dela – só de você estar aqui, angustiada com tudo que fez, e conversando precisamente comigo… Seu coração é grandioso. Talvez o gênio e o controle de impulsos precisem de algum ajuste, mas o coração está no lugar certo, sempre esteve.
– Me associei com Ares – ela retruca – executei aqueles soldados rendidos, você viu.
– É preciso conhecer a própria escuridão para entender o tamanho do amor que somos capazes. Eli…
– Você está começando a pregar, Eva.
– Sinto muito. Está ficando quase inevitável. Quando menos espero já estou falando e…
Minha fala é cortada pela boca dela encostando na minha. Ela me beija com suavidade, apenas com seus lábios nos meus. Sinto um impulso de aprofundar o beijo, mas me seguro, lembro que os lábios dela estão machucados. Então me deixo levar por aquela carícia delicada. Quando ela se afasta, meu coração lamenta.
– Era só para você parar de falar – ela diz, sua voz está um pouco rouca, ela está sorrindo.
– Deixa eu ver se entendi – eu mordo meus lábios – se eu começar a pregar, você me beija, é isso?
– É isso.
– Foi Eli que disse: o amor é a chave de todas as coisas. É o maior poder que alguém pode possuir. O amor puro e altruísta é a única expressão que temos da perfeição divina no mundo. Quando nos tornamos o próprio amor….
Ela dá uma risada e me beija novamente. Dessa vez, ela puxa meu rosto contra o dela. Tenho receio de machucá-la, mas ela escorrega a língua em minha boca e eu não posso evitar de me entregar. O beijo se torna frenético, sinto um leve gosto de cobre, mas ela não recua um minuto, e me puxa mais ainda contra ela. Quando ela finalmente se afasta, estamos as duas sem fôlego.
– Hummm. Estou precisando de um banho – ela diz.
Eu olho para a lagoa e depois para ela. Não preciso falar muita coisa depois disso.
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