Capítulo Único
por DietrichNo mundo onde vivi, as regras do pós-morte são caóticas e desorganizadas. Sou da Trácia, mas morri em Japa, as estranhas regras de honra e vingança que governam os destinos das almas dessa terra me capturaram. Não sei onde estou, me parece que em alguma espécie de meio-mundo, onde a decadente ordem grega, a ascendente ordem do deus único e os deuses japaneses disputam minha alma.
Sinto-me repuxada por todos os lados. É estranho não ter um corpo físico. Eu me refaço e me dissolvo fora do tempo, minha identidade continuamente ameaça se desintegrar, mas existe um centro que me fixa no lugar.
– Gabrielle. Gabrielle. Gabrielle – ecoo sem parar.
A vejo inocente, com seu cajado, alegre e descontraída, tentando brigar com Argo. Depois, coberta de sangue após a guerra em Helicon. Sinto o gosto de sua boca (como, sem corpo? Não sei), quando se perdia de paixão pelo meus toques. Repetir o nome dela, como uma oração, me lembra de mim mesma.
Algo acontece. O lugar meio líquido, meio gasoso e etéreo onde eu inexisto, muda para uma escuridão fechada e densa, que me lembra as noites de lua nova em que eu ficava acordada tentando distinguir as mechas cor de ouro da minha alma gêmea enquanto ela dormia. Adquiro uma espécie de corpo difuso, olho para baixo e meus pés estão borrados, caminham sobre algum tipo de nada.
Uma das criaturas mais odientas que já tive o desprazer de conhecer se materializa diante de mim, suas cores chamativas contrastam-se com o caos incolor ao meu redor.
– Você é nossa, Xena – Miguel fala, o tom não perdeu o deboche.
– Como ficam as almas dos japaneses que matei, se não estou no além japanês?
– Elas continuam libertas em estado de graça, elas transcenderam. E ainda que não estivessem, você não precisa se preocupar. Em breve, todas as almas do mundo serão nossas. Os inocentes irão para o céu, Deus fará o devido julgamento.
– Vocês são uns colonizadores nojentos.
– Cuidado, Xena. Sua alma pertence a nós agora. Melhor nos respeitar.
– Você me conhece bem demais para esperar isso de mim. Além do mais, minha alma só pertence a mim – pensei melhor – e à Gabrielle.
Ele ri, parecendo conformado com minha rebeldia.
– O que será de mim agora? – pergunto – há quanto tempo estou aqui?
– Talvez não tenha percebido, mas passou 63 anos terrenos aqui.
Meu coração pesou.
– Como…? – hesito.
– Viva – ele lê meus pensamentos – teve um novo amor, e tem uma filha, que está com ela agora. Ela está prestes a chegar.
Aquilo me inunda de múltiplas emoções que mal consigo nomear. A principal é o medo que ela não tenha me perdoado.
– Miguel, para onde vou?
– Para o paraíso – ele não parece feliz com aquilo – ficará lá até estar pronta para reencarnar – estende a mão – vamos tentar nos dar bem, certo? Segure minha mão. Esse não-lugar aqui está prestes a ser destruído.
Desconfiada, aceito a oferta. Quando o toco, tudo ao meu redor desaparece, e me vejo num grande campo gramado à beira de uma linda lagoa. A primeira coisa que me chama a atenção é o barulho de uma risada e logo sinto fortes braços ao meu redor. É minha segunda pessoa favorita no mundo, meu irmão Lyceus.
– Você está aqui! – ele diz, encantado. Ele está igualzinho como me lembro, peralta e alegre, o rosto meio manchado de terra – vamos pescar?
Miguel já desapareceu. Passo horas maravilhosas ao lado de meu irmão. Não tenho ideia de quanto tempo. Quando menos espero, duas mãos cobrem meus olhos. Nem uma eternidade me impediria de reconhecer aquele toque. Retiro as mãos de meus olhos, a tomo em meus braços e a beijo como nunca a beijei, cheia de dor, saudade, desespero, culpa e alegria.
– Me perdoa – eu suplico – me perdoa por ter te deixado.
– Já te perdoei há muitos anos – ela se afasta e me olha, ela escolheu a aparência que tinha logo antes de eu a deixar, vejo até a tatuagem de dragão em suas costas – até porque, eu sei que sempre vou te encontrar.
– Porque escolheu essa aparência? Achei que ia querer a antiga.
– Porque é essa a pessoa que realmente sou – ela diz – a pessoa que construí junto contigo.
– E, hum – pigarreio – seu novo amor?
Ela ri.
– Provavelmente foi encontrar a alma gêmea dela. Tá com ciúme?
– Claro que não. No paraíso não tem ciúme.
Ela me beija de novo. Achei que no além-vida não existia luxúria, mas eu ardo de desejo por ela, e pelo jeito que ela me toca, posso sentir que ela também.
– Hum, Xena? Eu…
– Eu sei. Vem comigo. Vamos pecar.
Ela gargalha enquanto a puxo para um cantinho escondido das florestas ao nosso redor.
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