Monstros
por DietrichO barulho se intensificou, e um brilho começou a emanar das cinzas de Carmilla, iluminando a escuridão ao redor. Gabrielle apertou a mão de Xena, um sinal silencioso de apoio.
A luz que emanava das cinzas se intensificou, formando um vórtice de energia pulsante. Antes que Gabrielle pudesse processar o que estava acontecendo, o chão começou a tremer, como se a própria terra estivesse se rebelando. Um grito rascante ecoou em seu interior.
Uma jovem de cabelos pretos irrompeu do solo, rasgando-o com uma brutalidade aterradora. Um grito lancinante saiu de sua garganta, e presas expostas brilhavam sob a luz da lua. Seu olhar monstruoso parecia preenchido com pura violência e fúria. Os cabelos morenos caíam desordenadamente em torno de um rosto que exibia uma ferocidade animalesca.
As três mulheres caíram ao chão, a força daquela energia poluta as arremessando para trás. Gabrielle lutou para se recompor, tentando entender a cena caótica diante de si. Ela viu o olhar de Laura se transformar em horror.
– Carmilla… – a jovem sussurrou.
Carmilla virou-se na direção de Laura, seu corpo, coberto de terra, movia-se em espasmos, e ela encarou a jovem com uma intensidade que fez o coração de Laura disparar. A criatura parecia saturada com um ódio primordial.
– Laura! – gritou Gabrielle, mas sua voz mal parecia atravessar a tensão que as envolvia.
A vampira ressuscitada avançou, os olhos fixos em Laura, mas com uma expressão que parecia vazia de qualquer reconhecimento. Era uma criatura da noite, guiada por instintos primais. Gabrielle sentiu um frio na espinha, um pressentimento de que as esperanças que tinham nutrido naquele ritual estavam rapidamente se desfazendo.
– Carmilla, por favor! – implorou Laura, a voz trêmula, cheia de medo e anseio – sou eu!
Carmilla soltou um grunhido profundo, um som que reverberou nas entranhas da terra, e o olhar de pura fúria que ela direcionou a Laura parecia dizer que a conexão que uma vez tiveram havia sido perdida no abismo entre a vida e a morte.
Xena se levantou, sua espada pronta em mãos, enquanto a adrenalina corria por seu corpo.
– Laura, afaste-se!
Mas, antes que pudessem se mover, Carmilla se lançou na direção de Laura, a fúria em seu olhar transformando a cena em um turbilhão de medo e caos.
***
Xena e Gabrielle reagiram imediatamente e avançaram juntas, cada uma empunhando suas armas, impulsionando-se em um movimento coordenado para proteger a jovem.
– Laura, fique para trás! – gritou Gabrielle, segurando seus sais firmemente enquanto se posicionava entre as duas vampiras.
Carmilla rosnou, um som retumbante que reverberava no ar. Com um movimento ágil, Xena pegou o chakram que estava no chão e o lançou, cortando o ar como um raio e atingindo Carmilla no ombro. A vampira cambaleou, mas logo se recuperou, um brilho maligno nos olhos enquanto se voltava para Xena.
O combate começou em um frenesi de movimentos velozes. Gabrielle desferiu um golpe com seus sais, mas Carmilla era ágil, desviando-se com uma graça sobrenatural, atacando de volta com garras afiadas como lâminas. A intensidade da batalha aumentava a cada segundo, e Xena e Gabrielle lutavam com todas as suas forças, tentando neutralizar a vampira furiosa.
Laura pareceu finalmente se recompor do choque e se levantou.
– Não! – gritou ela, desesperada. – não machuquem ela! – a jovem correu, fazendo menção de segurar as duas guerreiras.
Xena e Gabrielle tentaram se desvencilhar das mãos sobrenaturalmente fortes de Laura, mas não conseguiram.
– Ela não é o inimigo! – gritou Laura, sua voz cheia de emoção – Carmilla precisa de ajuda!
Carmilla, com a fúria ainda queimando em seus olhos, lançou-se contra Laura novamente. Com o susto, Laura afrouxou as mãos e Xena avançou e chutou a vampira morena no estômago, lançando-a longe.
– Laura, você não pode defender alguém que está tentando nos matar! – disse Gabrielle.
Xena, sem hesitar, avançou e atacou novamente a vampira que já se levantava. Tentou atingi-la com a espada, mas a vampira esquivou e soltou com um rosnado profundo, suas presas expostas.
Gabrielle, movendo-se agilmente, avançou e acertou um golpe em Carmilla com seus sais, mas a vampira se virou rapidamente e a empurrou com uma força que a fez voar nos ares e cair no chão com um baque forte. Gabrielle sentiu-se tonta, e o gosto de sangue preencheu sua boca.
Xena, com determinação renovada, avançou com tudo em direção à Carmilla, mas Laura, usando sua agilidade vampírica, se interpôs entre elas e segurou o golpe da guerreira.
Carmilla soltou um grito agudo que ecoou pela floresta. Com um último olhar odiento, ela se virou e desapareceu na escuridão da floresta, seus gritos ainda ecoando como lamentos de dor e fúria incontidas.
Xena e Laura se encaravam, e a guerreira resolveu recuar o avanço. Gabrielle se levantou e caminhou até as duas. Xena logo passou as mãos pelos ombros de Gabrielle, sem tirar os olhos de Laura.
– Você está bem? – perguntou a guerreira.
– Sim – respondeu Gabrielle – Laura…
– Eu preciso ir atrás dela – declarou a jovem loira – não posso deixar Carmilla assim, sozinha, sem entender o que aconteceu.
Mas antes que ela pudesse avançar, Xena se interpôs entre ela e a floresta, o olhar firme e resoluto.
– Laura, não podemos agir por impulso – disse Xena com voz decidida – Carmilla não está em um estado que permita qualquer tipo de entendimento.
– Não sabemos se ela é a pessoa que você conheceu – argumentou Gabrielle. Trocou um olhar entristecido com Xena, o corpo tenso pelas palavras que teria que proferir, mas prosseguiu – Laura… você tem que considerar a possibilidade de que a Carmilla que você conheceu talvez não exista mais.
Laura cerrou os punhos e olhou para o chão. Quando olhou novamente para Xena e Gabrielle, seu rosto continha traços da monstruosidade que tinham visto na própria Carmilla. Xena e Gabrielle sentiram um impulso de recuar, mas resistiram, firmes. Aquele lampejo desapareceu do rosto de Laura, e ficou apenas um olhar firme.
– Eu entendo – ela falou – eu entendo de verdade. Se chegar a isso, se chegar ao ponto de… – mas uma súplica se instalou no olhar da jovem – mas eu preciso tentar. Eu preciso olhar nos olhos dela e tentar de novo. Vocês devem me achar maluca, amando um monstro. Eu mesma me tornando um monstro, só para ficar com quem amo. Mas eu preciso tentar mais uma vez, ou jamais terei paz. Vocês não precisam me ajudar. Eu sou forte o bastante para deter Carmilla, se necessário. Eu agradeço por terem me ajudado. Agora Carmilla é meu problema.
Gabrielle olhou para o chão e não conseguiu evitar um sorriso. Como era possível que duas histórias fossem tão parecidas? Não tivera ela que percorrer caminhos de sangue para estar ao lado de Xena? Fazer coisas, consideradas por outrem, monstruosas? Não fora, a própria Xena, um monstro?
Gabrielle encarou Xena e viu nos olhos dela a compreensão que ela mesma alcançara. Xena suspirou e passou a mão no rosto, depois trocou um sorriso triste e compreensivo com Gabrielle, disposta a não cometer os mesmos erros do passado.
– Laura – falou Xena – iremos ajudá-la. Acredite. Entendemos você muito mais do que imagina. Ajudaremos você até o fim. E faremos de tudo para que Carmilla volte a si, não desistiremos.
Os olhos de Laura se encheram de lágrimas e ela sentiu confiança na voz da guerreira.
– Qual tal irmos a três para nossa casa? – propôs Gabrielle. Laura arregalou os olhos para argumentar e Gabrielle ergueu uma mão – Laura, eu acho que nesse momento Carmilla está apenas muito confusa. Ela acabou de escapar de séculos presa em outro plano. Talvez ela só precise de um pouco de tempo. Vamos nos recompor e pensar melhor nos nossos próximos passos.
– Ela pode machucar alguém – disse Laura.
– Sim, e por isso precisamos entrar nessa sabendo o que estamos fazendo. E saberemos melhor se esfriarmos um pouco a cabeça.
Laura cerrou os punhos e pareceu fazer força, mas consentiu.
– Tudo bem.
***
Carmilla corria pela floresta, os pés descalços cortando o solo frio e úmido, enquanto as sombras pareciam se fechar ao seu redor. Os raios da lua despejavam-se entre as copas das árvores, lançando um brilho espectral sobre o solo coberto de folhas secas. O vento cortante assobiava em seus ouvidos, e os galhos das árvores pareciam garras, tentando impedi-la de escapar de um pesadelo que não parecia ter fim. Ela sentia a adrenalina pulsar em suas veias, mas era a dor que a guiava – a dor de lembrar, a dor de ter perdido tudo.
Imagens horrendas a assombravam a cada passo. Os gritos ecoavam em sua mente, distorcidos e cruéis. Ela sentia a dor de facas entrando em cada parte de sua carne, a sensação insuportável de ter a cabeça decepada milhares de vezes enquanto via seu próprio corpo trucidado por demônios.
A imagem de Laura, ao seu alcance, parecendo estar apenas a um apenas um suspiro de distância, apenas para desaparecer quando estendia a mão para tocá-la.
Laura… O nome se tornou um grito silencioso em sua alma, uma âncora em meio ao turbilhão. Mas o que era real? O que havia se perdido nas sombras de sua memória? As lembranças da amada surgiam e desapareciam como miragens, distantes e inatingíveis. Carmilla parou um instante, seu corpo tremendo enquanto as lágrimas escorriam pelo rosto. A culpa a esmagava, como uma sombra impiedosa, e a raiva fervia dentro dela. Se eu a perdi, foi por minha própria mão.
Ela pressionou os punhos contra o peito, tentando controlar a dor que quase a derrubava, mas logo se viu correndo novamente, seu coração pulsando em um ritmo frenético. A floresta parecia viva, as árvores falavam segredos sombrios, o negror dançava como se zombasse de sua miséria. O chão sob seus pés parecia instável, como se a própria terra tentasse engoli-la.
– Não foi minha culpa! – ela gritou – eu não escolhi ser um monstro! Me diga, Deus, porque você fez uma criatura sedenta de sangue, apenas para torturá-la quando ela faz o que precisa para sobreviver?
A raiva a conduzia, cada passo se tornava uma fuga da dor, uma tentativa de escapar do tormento que a consumia. Por que ela não veio? O pensamento a perseguia, implacável.
O céu se cobriu de nuvens, a lua desaparecendo em um manto de escuridão. Carmilla sentia-se uma criatura sem lar. A desolação a envolveu, e ao sentir as lágrimas queimarem em seu rosto, o grito que escapou de seus lábios era um lamento primal, uma liberação de todo o sofrimento que a atormentava.
– Eu não sou um monstro! – bradou, sua voz ressoando na noite sombria, reverberando entre as árvores. – você é o monstro, Deus, você é o monstro! Onde está Laura? Laura, porque você não me salvou?
Carmilla sentiu todo o seu corpo perder-se numa convulsão avassaladora e caiu no chão novamente. Dessa vez não conseguiu se levantar. Tinha a nítida sensação que seu corpo era paralisado por demônios, perfurado por estacas, e o contraste dessas visões com o dançar dos galhos de árvores e o ar frio da noite a preenchia de absoluta confusão. Perdeu a consciência pela primeira vez em séculos.