No Compasso da Fogueira
por Officer KirammanA praça da pequena cidade do interior vibrava com o som das sanfonas, triângulos e violas. Bandeirinhas coloridas cortavam o céu noturno, tremulando com o vento que trazia o cheiro doce de milho cozido, canjica e maçã do amor. As luzes amareladas das barracas criavam sombras dançantes no chão de terra batida.
Rebecca encostou-se majestosamente com seus 1,80 de altura em um dos postes de madeira, os braços cruzados, o chapéu de palha projetando uma sombra discreta sobre os olhos. Vestia uma camisa xadrez de mangas dobradas, colada ao corpo de um jeito que deixava à mostra o desenho firme dos ombros. O jeans surrado abraçava suas pernas com a naturalidade de quem já estava acostumada a usar aquilo dia após dia. As botas de couro, gastas na ponta, batiam de leve no chão num compasso nervoso que ela não conseguia disfarçar.
Observava tudo com um semblante sério e olhos azuis detalhistas: as crianças correndo atrás de balões de papel, os casais ensaiando passos de quadrilha, os risos soltos de gente que tinha esquecido, ao menos por aquela noite, o peso dos dias.
Mas não era por isso que ela estava ali.
Seus olhos permaneciam fixos na barraca de doces, onde uma moça de vestido florido servia fatias de bolo de fubá e distribuía sorrisos fáceis para os fregueses.
Gabriela.
O cabelo loiro preso em duas tranças típicas, a pele dourada pela rotina ao sol e aquele jeito de rir com os olhos antes mesmo de abrir a boca. A cada vez que alguém a agradecia pelo doce, ela fazia uma leve curvatura com a cabeça, como se dançasse com a própria timidez.
E não era por falta de convite que ela continuava atrás da barraca. Vários rapazes se aproximavam com desculpas mal disfarçadas: um queria mais um pedaço de pé-de-moleque, outro pedia a terceira porção de cocada só para tentar um pouco mais de conversa. Um ou outro era direto: fazia o pedido, pagava e já perguntava se ela queria dançar. Gabriela, sempre com delicadeza, escapava de todos. Sorria, agradecia, e se voltava rapidamente a arrumar as bandejas ou a servir o próximo da fila, como se estivesse realmente ocupada demais para pensar em música. Mas, de vez em quando, enquanto fingia escolher o próximo doce a ser cortado, o olhar escapava. Sempre na mesma direção.
Rebecca deu um passo à frente, parou. Fingiu ajustar o chapéu. O olhar voltou, insistente, como se o resto da festa fosse um borrão em volta daquela figura. Tentando disfarçar o nervosismo que começava a crescer no peito, foi até uma das barracas próximas e pediu um copo de quentão. O cheiro de cravo, canela e gengibre subiu quente, adocicado, se misturando ao aroma de madeira queimada da fogueira. O líquido desceu forte, queimando a garganta de leve, mas aquecendo o corpo de um jeito inesperado.
Rebecca apoiou-se no balcão por um instante, respirando fundo.
A segunda golada trouxe uma leve vertigem, um calor que não era só físico. A sensação foi misturando coragem com imprudência, como se o mundo ali, com todas as suas luzes e músicas, estivesse um pouco fora de foco, mas ela soubesse exatamente onde mirar.
Do outro lado, Gabriela fingia que não notava. Que não percebia aquele olhar fixo. Mas, a cada nova fatia de bolo entregue, os olhos fugiam, procuravam, encontravam.
O locutor da festa anunciou o próximo forró. A sanfona puxou o primeiro acorde. Rebecca largou o copo vazio no canto da barraca, as palmas das mãos ainda quentes, o sangue acelerado. Sentiu o coração bater nos ouvidos enquanto atravessava a multidão. Os passos longos, decididos, como quem vai pra uma batalha daquelas que não se pode perder.
Quando parou à frente da barraca de doces, Gabriela fingiu que arrumava os pedaços de pamonha, mas a mão tremia um pouco.
– Você dança? – a voz de Rebecca veio baixa, firme, carregada de uma coragem recém-nascida entre o álcool e o desejo.
Gabriela ergueu o olhar, com um sorriso que misturava surpresa e uma certeza antiga. Como se soubesse, desde a primeira troca de olhares naquela noite, que aquele momento viria.
-Só se você me conduzir direito. – respondeu, estendendo a mão.
Rebecca sorriu de lado, pegou a mão dela com cuidado, como quem sabe a força que tem..
Rebecca guiou Gabriela até o meio da roda, onde outros pares já giravam sob o compasso acelerado da sanfona. O chão de terra solta cedia um pouco sob as botas, enquanto as luzes das bandeirinhas coloridas desenhavam padrões irregulares nas costas de quem dançava. O cheiro de quentão ainda parecia flutuar no ar, misturado ao perfume de cravo, canela, e açúcar queimado das barracas de doce.
Gabriela hesitou nos primeiros passos, os dedos ainda inseguros entrelaçados na mão de Rebecca. O toque era leve, mas presente. Um convite, nunca uma exigência.
– Só me segue… – murmurou Rebecca, encostando os lábios perto do ouvido de Gabriela, mais pela necessidade de ser ouvida por cima da música do que por intenção. Mas a proximidade fez com que Gabriela estremecesse levemente, como se o som da voz grave vibrasse direto na pele.
Rebecca conduzia com firmeza, os passos largos, precisos, girando o corpo de Gabriela com um cuidado que parecia cálculo, mas era pura intuição. Ela sentia o calor da outra ali, tão perto, a respiração rápida roçando contra o ombro, e precisou de esforço para não sorrir grande demais.
Gabriela, com o rosto já corado – talvez pelo esforço, talvez pela vergonha – tropeçou de leve no próprio pé, mas antes que pudesse se desculpar, Rebecca segurou-a pela cintura, impedindo a queda com um movimento natural, como se já esperasse por aquele tropeço.
O toque firme na cintura foi um choque. Gabriela respirou fundo, mordeu o canto do lábio, e pela primeira vez naquela noite ousou olhar Rebecca nos olhos de verdade. Houve uma pausa curta, como se o mundo, por um segundo, deixasse de girar e ela apenas se afogasse em azul profundo.
O coração de Rebecca batia em um ritmo descompassado. O quentão ainda fazia o corpo arder por dentro, mas agora o calor vinha principalmente daquela pele sob seus dedos, daquela fragilidade que se escondia debaixo de uma vontade mal disfarçada de ficar.
A música mudou o compasso, ficando mais lenta por um instante.
Foi aí que Gabriela, depois de muito lutar contra a própria timidez, reuniu o pouco de ousadia que tinha: deixou a palma da mão escorregar da de Rebecca e pousou os dedos com leveza na lateral do pescoço dela. O toque foi breve, quase incerto, mas suficiente para fazer o estômago de Rebecca virar. Uma espécie de choque elétrico misturado com alívio.
Rebecca sorriu, dessa vez sem contenção.
– Acho que você tá me seguindo melhor do que o esperado, hein? – provocou, a voz arrastada, baixa, com aquele timbre que parecia sempre conter algo por dizer.
Gabriela baixou os olhos, mas o sorriso ficou, nascendo devagar nos cantos da boca.
Ao redor delas, a fogueira crepitava alto, as faíscas subindo como pequenos vaga-lumes em fuga. As cores das bandeirinhas continuavam girando, os cheiros das guloseimas e álcool quente se misturando ao suor e à poeira do chão.
Mas ali, naquele pequeno espaço entre uma passada e outra, era como se só existissem as duas. Um passo, um giro, um sorriso preso, e um desejo crescente de que a música nunca acabasse.
Espero que a autora me leve pra comer bolo de fubá nas barraquinhas, deu vontade agora hahahaah adorei. s2