Uma neblina densa envolveu o corpo de Gabrielle e por um segundo ela não percebeu até que seus belos olhos verdes se abriram e tentou identificar o local a sua volta. Gabrielle estava sentindo-se desorientada e confusa. Não sabia onde estava e pior que isso, não se lembrava por que estava ali. Aos poucos ela voltou a se reconhecer dentro de sua pele e seus batimentos cardíacos a fez notar que estava viva. Os pés da barda se movimentaram sozinhos e o som de terra com folhas caídas no chão a lembrou que estava numa floresta, apesar de não saber em qual delas.

Com seus sentidos voltando aos poucos, Gabrielle se lembrou da última coisa que havia feito. Ela tinha tocado fogo no tear das moiras e tudo a sua volta ficou escuro. Agora sim ela se lembrava. Ela recordou que antes de adentra o mundo de César, ela e Xena estava no meio da Ática e seguindo para atender ao chamado de um amigo em Tebas. As duas haviam saído a alguns dias de Delfos e seguiam calmamente pela estrada, até que sentiu-se tonta e acordou repentinamente no meio da floresta com a sensação de ter vivido mil verões.

Antes de poder raciocinar direito, os paços de um cavalo veloz vieram do meio da neblina e não podendo focar direito, Gabrielle arregalou os olhos. A fumaça começou a se dissipar aos poucos e diante de seus olhos apareceu uma Xena em sua armadura de couro gasto, montada em Argo e um olhar aflito. A guerreira parecia tão perdida quanto Gabrielle, mas ao ver sua companheira no meio da estrada, a morena conseguiu respirar novamente. Finalmente as coisas estavam parecendo como antigamente.

-Ei.- Disse Xena num tom de desconfiança. Pelo que parecia, ela estava receosa e com medo de se encontrar sonhando ou em outra realidade que não fosse a sua ainda.

-Ei.- Gabrielle respondeu de volta no mesmo tom de Xena.

As duas ficaram um tempo se olhando e concluíram que de fato haviam voltado para casa, afinal, elas se lembravam de tudo. Desde suas infâncias, até o momento em que se conheceram e tudo que passaram até então.

-Você conseguiu…- Xena voltou a falar. –Trouxe o mundo de volta para nós.

-Fico feliz. – Gabi ainda não conseguia por emoção em sua voz, mas de fato estava mais aliviada. –Esse mundo é bem melhor. – Depois de dizer aquilo, Gabi sorriu levemente no canto do lábio.

-Mesmo não sendo uma escritora famosa? – Xena gostou de ouvir que Gabrielle preferia aquele mundo com suas vidas simples e humildes, mas se sentiu insegura ao pensar que assim como ela, mesmo diante de toda a dor, Gabrielle talvez tivesse gostado do glamour que César proporcionou ao mudar a história.

-Fama? – Gabi perguntou em tom de deboche. –Quem precisa dela? – A loira foi em direção a Xena e a morena estendeu o braço de bom grado enquanto sentiu seu coração aquecer ao ter o toque de Gabrielle. Por mais habitual que aquilo já fosse, Xena percebeu pela primeira vez que gostava da mesmice e de como as coisas funcionavam naquele velho e tedioso mundo.

Gabrielle subiu em Argo, ajeitou sua postura atrás de Xena e sorriu ao se lembrar de como era estar no palco enquanto comandava sua peça. Agora que ela recordava como era ter uma alma gêmea, a sua peça “anjo caído” não parecia mais o reflexo de sua alma sedenta, mas sim a narrativa do amor que tanto transbordava entre elas.

-Gostou mesmo da minha peça? – Gabi quis saber logo em seguida, quando uma memória puxou outra e lembrou da admiração que Xena mostrou naquela noite.

-Até que gostei. – Xena falou confiante e tirou um sorriso de Gabi. De fato ela havia gostado, afinal, seu coração vazio e carente ansiava por algo naquele mundo falso e mais uma vez, Gabrielle apareceu e a salvou. –Mas podia ter mais cenas de luta.- Xena finalizou e riu para si mesma ao confirmar que no entanto, ela já não ansiava mais pelo amor verdadeiro, pois já o havia encontrado.

-Todo mundo de repente virou crítico. – Gabi falou com deboche e Xena riu largamente quanto elas seguiram caminho a frente.

Ouvir aquela risada cheia de vida fez Gabrielle sentir um alivio enorme. Ela apertou seus braços em volta da cintura da morena e colocou confortavelmente sua cabeça nas costas dela. O que parecia ter sido a poucas marcas de vela atrás, a barda havia visto o amor de sua vida toda machucada e caminhando em direção a uma cruz, mas agora que despertará de um pesadelo, ela pode ver a feição lisa e bela de Xena e seus membros todos no lugar. Aquilo a deu um bem-estar tremendo.

Assim que Gabrielle enrolou os braços em torno da cintura da guerreira, Xena pode interpretar bem aquele gesto e tocou o braço da loira enquanto afagava com seu dedão. Foi a forma dela dizer que agora tudo estava bem.

Mas até que ponto aquilo era verdade? Assim que o alivio tomou conta da guerreira e um excelente bom humor se estabeleceu, ela tornou a pensar em tudo o que havia passado com César e a forma que aquele relacionamento tóxico, abusivo e por puro interesse havia sugado sua energia. Ela havia aproveitado a fama, as conquistas e o medo no rosto das pessoas, porém, mais uma vez, nada daquilo a satisfez. Foi somente quando reencontrou Gabrielle que seu coração velho e cansado bateu tão forte que a fez se sentir de verdade.

-Desgraçado. – Xena pensou e cerrou seus dentes delicadamente para Gabrielle não perceber.

A vida que havia levado por si só já era por demais dura. Xena odiava a pessoa que havia sido um dia e o remorso constantemente assolava seu coração, porém agora, ela podia de fato se considerar a pessoa mais horrível do mundo, pois em vez de um passado, ela passou a ter dois para se lembrar e se martirizar.

Mais uma vez a princesa guerreira olhou para dentro de seu coração e percebeu como era expert em ser alguém ruim. Ela aceitou novamente que o poder era seu ponto fraco e que ela podia se igualar ao mais tolo ser humano por se deixar levar por aquela ilusão. O que adiantava ser tão brilhante e excepcional em combate, sendo que todas as vezes usava e abusava dos mais fracos?

-Você está bem? – A voz de Gabrielle veio de trás e Xena percebeu que aqueles pensamentos obscuros a fez apertar com força o braço da barda que continuava em volta de sua cintura.

Xena não respondeu de imediato, mas notou como seus músculos relaxaram e seu coração se aqueceu ao ouvir aquela voz. Gabrielle tinha aquele dom.

-Ainda bem que eu tenho você! – Xena respondeu rapidamente e Gabrielle soltou um pouco seus braços e tentou olhar o rosto da guerreira. Xena podia ser muito romântica e carinhosa quando queria. Com os verões, a guerreira passou a abraçar e beijar mais, porém as palavras doces eram reservadas para momentos como aquele.

-O que quer dizer? – Gabi sorriu docemente e Xena viu aqueles olhos brilhantes sorrirem por cima de seu ombro.

-Quero dizer que tenho sorte de ter você não só nos momentos ruins, mas em todas as vidas. – Xena falou em fim e olhou para frente.. Gabrielle gostou de ouvir aquilo, mas sabia muito bem que Xena tinha mais a dizer. –Pelo jeito eu estou fadada a ser alguém ruim em todas as vidas…- O peso era nítido na voz da guerreira. -…mas hoje pela primeira vez eu pude notar que não tenho mais que me preocupar. – Xena tornou a olhar por cima de seu ombro. –Eu sei que você vai aparecer em todas as minhas vidas.

-Eu amo você, Xena. – Gabrielle tornou a abraçar forte sua alma gêmea e a morena soltou um sorriso frouxo enquanto seus olhos se espremiam de amor.

-Eu também amo você. – A morena tornou a tocar o braço de Gabi e elas seguiram por mais alguns minutos em silêncio.

Em determinado momento, Xena parou seu cavalo ao lado de um riacho e Gabrielle entendeu que era hora de descer. A loira foi em direção a água, fez uma concha com suas mãos e jogou em seu rosto para dar uma animada, logo depois, ela colocou a mão úmida na nuca e tornou a olhar para Xena que também tinha descido de Argo e bebia em seu Odre.

-Então…- Xena se aproximou de Gabrielle e uma brisa fresca tocou o rosto de ambas. -…como conseguiu nos trazer de volta?

-Bem! Assim que sai pelo portão, eu cavalguei por um tempo e já não podendo me motivar com o desejo de vingança, comecei a cantarolar uma música que minha mãe costumava cantar para me fazer dormir. – Gabrielle disse. –Foi quando meu desespero e falta de esperança me fizeram notar que talvez aquela cantiga não fosse somente para crianças. Então eu segui passo a passo o que a letra dizia e foi de encontro as Moiras. – A loira falou calmamente e Xena ficou surpresa.

-Aquela canção das velhas Moiras? – Xena perguntou e Gabi concordou. Era de fato uma música famosa para as crianças gregas. –Você foi brilhante. – Xena teve de assumir e Gabi adorou ouvir aquilo. Xena geralmente era orgulhosa demais para admitir que alguém além dela fosse tão esperto.

-Achei válido considerar. Depois de tantos verões lidando com esse tipo de situação e tendo de caçar deuses, eu aprendi que nada surge do acaso e até uma música boba para crianças pode ser uma profecia. – Gabi falou finalmente e deu uma golada no odre.

Xena sorriu para ela e sentiu muito orgulho, afinal, ela havia conhecido uma Gabrielle com ainda 16 verões, barulhenta, atrapalhada e tagarela. Mas hoje, a guerreira estava diante de uma mulher forte, resiliente, mais calma e que sabia se virar sozinha independentemente da situação. Com o coração alegre, Xena avançou até Gabrielle e a abraçou forte. Somente uma aventura daquelas para deixar a grande Xena tão emotiva.

Gabrielle aceitou o abraço e se aconchegou no toque de sua companheira. As duas balançaram os corpos sutilmente para os lados e não disseram uma única palavra. O céu azul com várias nuvens brancas deixou aquele cenário ainda mais calmo e a brisa que acompanhava o riacho beijava a pele de ambas com prazer. Elas não tinham o porquê quebrar o abraço e nem pretendiam até que Gabrielle finalmente olhou para cima e seus lábios tremeram.

-Eu senti tanto medo de te perder. – Gabi falou.

-Eu sei! – Xena tocou o rosto branco da barda e ficou séria. –Me desculpe por ter desistido e não ter lutado o tanto que deveria para trazer sua vida de volta. – Ela finalizou.

Gabi tocou a mão de Xena com sua própria e encarou os olhos azuis. Deuses, como foi bom poder se apaixonar de novo. Como foi bom perceber que Xena era sua pessoa, independente da linha temporal. Era incrível saber que elas de fato se pertenciam.

-Melhor irmos andando. – Xena disse por fim e Gabi não pareceu gostar da ideia. –O que foi?

-Você não está se sentindo cansada? Por que não ficamos por aqui hoje e seguimos só amanhã? – Gabrielle falou e Xena resolveu aceitar.

-Está bem. – Xena olhou ao redor e encontrou uma boa sombra do outro lado do riacho. Ela cruzou com Argo e começou a desamarrar as coisas do lombo da égua. Gabrielle ficou um tempo parada exatamente onde estava enquanto olhava para a figura alta de Xena trabalhar.

A morena desamarrou as peles que formavam um rolo, depois retirou o alforje no qual guardavam muito de seus mantimentos e objetos pessoais e for fim, começou a livrar Argo de sua sela. Assim que a égua se viu livre, Xena passou a arrumar o acampamento e Gabrielle sorriu. Não havia preço em ver o sol iluminando aquela pele morena e o vento sacodindo os cabelos pretos que constantemente eram bagunçados. A loira caminhou lentamente até sua companheira e recebeu um sorriso ao ser vista.

-Depois que terminarmos em Tebas, podemos ir até Potedia?- Gabi falou com uma voz pidona e Xena a olhou em seguida. –Sabe… A última lembrança que tenho dos meus pais e Lila é de um dia antes de eu partir para a academia de Atenas…. Não é uma lembrança dessa vida, mas é tão presente… e dolorosa. – A voz de Gabrielle ficou pesada de repente e Xena se lembrou que no mundo de Cesar, os pais e irmã de Gabi haviam morrido no ataque de Draco, no entanto, naquela linha temporal de agora, os pais de Gabrielle também jaziam mortos, devido a crueldade de Gurkhan. –Quero ver se Lila está bem. Ao menos ela eu ainda posso cuidar e abraçar. – A barda terminou.

-Sem problemas. – A princesa guerreira concordou e continuou olhando para Gabrielle. A loira estava com o olhar distante e em seguida falou:

-Sabe o que foi o pior além de ter provado da sensação de te perder? – Gabi finalmente olhou para Xena e a morena pode ver os olhos marejados e avermelhados da loira. –Foi descobrir que em qualquer linha temporal, meus pais estavam fadados a morrer durante minha ausência. Foi descobrir que nunca pude ou poderei se quer participar do funeral. – A loira derramou uma lagrima e foi impossível não pensar em como seus país morreram no tempo em que esteve congelada com a guerreira.

-Vem aqui!- Xena abraçou Gabrielle e elas se sentaram nas peles enquanto Gabi deixava suas lagrimas de luto rolarem pelo rosto. A barda ainda não havia superado a sensação de perda de seus pais, pois eles se foram e a deixaram com a sensação de inutilidade. Toda aquela situação a fez sentir-se egoísta por querer seguir sua vida longe deles e no fim, haviam sucumbido. Lidar com aquele sentimento em uma única vida era aceitável, mas em duas? Gabrielle sentiu seu corpo tremer e chorou amargamente nos braços de Xena.

Assim como sua companheira, Xena também estava sofrendo como o fato de ter provado de duas vidas e agora possuía lembranças ruins de ambas, mas não havia mais nada que pudessem fazer. Pelo menos Cesar já estava morto e pagava seja lá onde fosse por seus crimes.

-Olhe para mim.- Xena finalmente falou e pegou o rosto de Gabi em suas mãos. Em seguida, ela segou as lagrimas com seus dedos e beijou docemente a bochecha úmida da loira. Xena nunca teve problemas em admitir que seu ponto fraco era aquela garota, então, vê-la chorar era a pior coisa. –Aquela não era nossa vida. Poderia ter sido, mas não foi. Não foi, porque César teve de me trair uma vez para perceber que havia cavado sua própria cova, mas isso não anula o fato dele ter seguido antes de mais nada, o desejo mais obscuro de seu coração. – Ela começou. – Agora preste atenção em mim.- Gabi fungou e continuou olhando para Xena. –Seus pais morrerem em sua ausência não é sua culpa ou egoísmo. Você nasceu para fazer muito mais. Sempre soube disso. Potedia sempre foi muito pequena para você, Gabrielle, por isso em todas as vidas você partiu. Por outro lado, seus país já estavam fadados a encontrarem a morte lá, da mesma forma que minha mãe estava fadada a morrer em Anfipólios e eu sempre estive ligada a César e aquela maldita cruz. -Xena afastou a franja dos olhos de Gabi e tentou procurar pelas palavras certas. –Eu sei que foi cruel e doeu, mas porque precisamos focar somente em nossos erros e dores que se repetiram? – Xena sorriu e Gabi sentiu um lampejo em seu peito. –Tantos sentimentos bons se repetiram e isso é o que deveria prevalecer, não acha?

-Talvez. – Gabi secou mais uma vez suas maçãs do rosto com a mão e tornou a olhar Xena.

-Eu cometi crimes em ambas as vidas, molestei almas, torturei os mais fracos, cobicei o que não era meu e me afoguei novamente na solidão, porém pela segunda vez, eu fui salva por você, me apaixonei e…- Xena parecia querer dizer algo incrível, mas suas bochechas ficaram vermelhas e por algum motivo Gabi sorriu.

-Diga!- A loira queria muito ouvir.

-…e eu pude fazer amor com você pela primeira vez DE NOVO… Foi tão bom. – A morena riu no final e Gabrielle se deixou levar na risada. Em seguida elas coraram e as testas se tocaram. –Seu único pecado em ambas as vidas foi não ter aparecido mais cedo para mim, Gabrielle.- Aquelas palavras causaram um efeito gigantesco no coração da barda e ela se jogou nos braços de Xena. As duas se abraçaram forte e trocaram um beijo longo.

Não satisfeita com a posição que se encontravam, Gabrielle sentou-se no colo de Xena sem quebrar o beijo e seus corpos esquentaram. Foi quando se deram conta que a paixão da linha temporal de César não havia desaparecido. Elas sentiram novamente o coração palpitar como se nunca tivessem feito aquilo. Tiveram a sensação do toque estranho, porém saboroso novamente e quando se deram conta, estavam deitadas nuas na pele quente.

Xena se manteve por baixo e Gabrielle cavalgou nela enquanto deixava toda tensão sair. Elas rolaram de um lado para o outro, se beijaram, tocaram, abraçaram, morderam e gemeram numa mistura de todos os sentimentos que tinham direito, até que finalmente chegaram num clímax libertador e a paixão transbordou por aquele acampamento.

No fim, Xena caçou um coelho pequeno e Gabrielle o limpo, temperou e cozinhou na fogueira. Quando começaram a comer, as estrelas já preenchiam todo o céu e a brisa quente da Grécia tocava os corpos nus que descansavam na cama improvisada.

Gabi estava sentada de pernas cruzada e mordia a coxa do animal, enquanto Xena estava deitada e com a cabeça na sela de Argo que improvisara de travesseiro. Ambas saboreavam a caça em silêncio, enquanto desfrutavam da paz e companhia. Os grilos cricrilavam nas moitas, as corujas piavam nas árvores e vez ou outra um morcego dava um rasante perto do fogo para pegar insetos. Tudo estava perfeito.

Depois do jantar, as mulheres descartaram os restos na fogueira e Gabrielle se aninhou no peito nu de Xena. Elas continuaram em silêncio perceberam como tudo aquilo era precioso. Melhor do que saber que o pior tinha passado, foi comprovar que elas eram uma boa dupla e enquanto estivesse em sintonia pelo elo do destino, nada nem ninguém poderia desaparecer com tal amor.

-Eu te amo, Xena! – Gabi disse em fim e sorriu bobamente.

-Eu vou te amar sempre, Gabrielle.- Xena beijou a testa da loira e elas continuaram apreciando a boa vida. A vida que agora tudo parecia certo.