Fanfics sobre Xena a Princesa Guerreira

    No dia seguinte Ana acordou cedo e se pôs a trabalhar novamente na escola. Calculava que teria ainda mais sete ou oito dias de serviço naquele local, até que tudo ficasse em ordem, como a Madre havia lhe pedido. Ana costumava trabalhar cabisbaixa e compenetrada, sem se dispersar nem tão pouco fazer “corpo mole”. A Madre Lídia admirava essa qualidade que vinha observando em sua nova funcionária. Na manhã de quarta-feira, enquanto observava Ana em sua atividade, sem que esta última percebesse sua presença, constatou estar cada vez mais satisfeita em ter aceitado o desafio proposto por sua sobrinha Denise. No entanto se deu conta de que enquanto Ana estivesse trabalhando ali não teria de fato uma fonte de renda e não disporia de sequer alguns tostões caso quisesse comprar um par de meias. Com estes pensamentos a Madre chamou a atenção de Ana:

    – Ana.

    A morena levantou os olhos, secou o suor da testa com o verso da mão e respondeu:

    – Sim?

    – Poderíamos conversar um pouco? Na secretaria?

    – Tudo bem. – respondeu Ana seguindo a Madre.

    Ao entrarem na secretaria da Escola Ana sentiu novamente o olhar gélido da Irmã Teodora. Algumas vezes, enquanto trabalhava nas salas de aula, percebia a Irmã Teodora a observa-la de soslaio. Por vezes a freira tentava disfarçar e por outras fazia questão de que Ana notasse sua presença, como que tentando demonstrar uma hierarquia, uma subordinação ao seu olhar perscrutador. Ana conseguia se controlar e demonstrava uma total indiferença à sua presença. Por vezes precisava se esforçar para isso, mas fazia o possível para evitar atritos. Por certo essa atitude de Ana, de não revidar provocações, acabasse por mobilizar ainda mais os sentimentos negativos daquela mulher em relação a ela.

    A Madre apontou para uma cadeira em frente à sua mesa, pedindo que Ana se instalasse ali. Logo após dirigiu-se à Irmã Teodora:

    – Irmã, a senhora poderia nos dar licença por alguns momentos? – pediu a Madre.

    A mulher assentiu com a cabeça, levantou-se e quando passou por Ana dirigiu-lhe um olhar de reprovação. Ana tratou de olhar para a Madre, demonstrando controle da situação. Por alguns instantes pôde-se ouvir o ecoar das passadas fortes da Irmã Teodora no corredor deserto, afastando-se dali.

    – Desculpe os rompantes da Irmã Teodora – justificou-se a Madre, num tom conciliador – mas é que ela tem alguns posicionamentos muito… digamos, arraigados. E tem dificuldades de aceitar mudanças.

    – Do tipo?…

    – Contratar uma pessoa… diferente do que costumávamos contratar.

    – Entendo. – respondeu Ana.

    – Mas ela é uma boa pessoa. – defendeu a Madre – Só que tem uma necessidade de centralizar informações e gosta de participar das decisões referentes à dinâmica do convento. Mas na verdade eu sou a culpada por isso, que sempre a fiz participar de tudo. Ela é o meu braço direito aqui dentro. E quando eu decidi aceitar sua vinda para cá não comentei com ninguém, nem com ela. Isto provavelmente a tenha deixado ressentida.

    Ana continuava ouvindo a Madre, calada e séria.

    – Bom, mas eu não a chamei para falar sobre Teodora, e sim sobre ti. E então? O que tem achado desses dias por aqui? Estás assustada com a demanda de serviço?

    – Como eu já lhe disse o trabalho nunca me assustou.

    – Bom… e… e o resto?

    – Que resto?

    – Tu sabes bem do que eu estou falando Ana.

    – Está tudo bem.

    – Eu estive pensando… enquanto trabalhares como prestadora de serviços não terás uma fonte de renda, de fato.

    – Não se preocupe, eu tenho umas economias com as quais vou me virando.

    – Ana, eu tenho observado teu desempenho e estou muito satisfeita. Muito mesmo. Com o teu desempenho e com a tua postura. Por isso gostaria de acertar contigo um valor pelas horas que acabas trabalhando a mais do que um expediente normal de trabalho.

    – Não é preciso.

    – Eu acho que é. – respondeu a Madre num tom gentil e firme. – Por certo será um valor bem inferior ao que receberias normalmente, mas é o que podemos bancar com a verba da Ordem para os serviços de manutenção. Ao menos não dependerás das tuas economias ou da bondade alheia para custear um refrigerante na cidade.

    “Ou para pagar uma mulher qualquer…”, pensou Ana ironicamente.

    – Tudo bem então, Madre, eu agradeço a sua compreensão. Seria só isso? Ainda tenho muito trabalho que gostaria de terminar hoje.

    – Sim. É só isso.

    – Então… com a sua licença. – disse Ana levantando-se para voltar aos seus afazeres.

    – Toda.

    A Madre ainda ficou na secretaria por mais um tempo tentando adivinhar o que Ana pensava a respeito das coisas. Ana era uma mulher enigmática, circunspeta e calada. Mas a Madre gostava dela. Na verdade confiava nela. E nem saberia dizer o porquê.

    Na manhã do dia seguinte, quinta-feira, no refeitório, a Madre veio ter com Ana antes mesmo de tomar seu café.

    – Bom dia Ana, hoje eu gostaria que tu me fizesses um favor especial.

    – Se estiver ao meu alcance…

    – É que conseguimos uma linha telefônica nova e quero destina-la especificamente para a internet. Poderias puxar uma extensão do poste até o escritório do convento?

    – Posso sim.

    – Que ótimo. Já pedi para a Irmã Diva comprar a fiação e as tomadas. Ela disse que sabe bem o que é preciso e já saiu para buscar.

    – Tudo bem então. Assim que ela chegar eu coloco para a senhora.

    – Muito obrigada, então. Se quiser aguardar no seu quarto eu peço pra ela te chamar assim que voltar da cidade.

    – Tá.

    Eram pouco mais de oito e meia e Ana escutou o ronco do motor do fusca bege do convento retornando com a Irmã Diva na direção. Ela era uma mulher muito alta e magra, com pés grandes dentro de botinas de couro pretas, cabelo escuro preso num coque no alto da cabeça, dispensava o véu que quase todas as demais usavam. Poderia ser comparada sem exageros com a “Olívia Palito”. Usava óculos de aros redondos sempre na ponta do nariz afilado. Estava sempre correndo de um lado para outro. E era a motorista oficial do convento. “Sem nunca haver tido uma multa sequer!”, gabava-se ela.

    Tão logo desembarcou, Ana foi ao seu encontro e a freira lhe passou os materiais que precisava. De posse deles Ana foi até a secretaria. Viu com a Madre o local exato onde ela queria que fosse instalada a tomada e foi para o galpão do almoxarifado buscar a escada. Em menos de vinte minutos puxou a fiação do poste até a parede do convento. Devido a espessura da construção achou melhor fazer uma entrada pelo marco de madeira da janela. O barulho da furadeira elétrica fez a Madre sair por uns minutos da sala. Ana estava quase concluindo a sua tarefa quando se deu conta que faltariam alguns grampos para fixar o fio na parede. Foi até o almoxarifado para busca-los e ao retornar a porta da secretaria estava entreaberta. Ana pôde ouvir claramente o trecho final da conversa que se desenrolava lá dentro, entre a Irmã Teodora e a Madre que evidenciava irritação no tom de voz, aliás, uma entonação que Ana desconhecia até então naquela mulher ponderada e de muita classe.

    – Mas eu não entendo, Madre! – dizia a Irmã Teodora.

    – Não entende o quê, Irmã?

    – A contratação dessa moça! Nós sempre contamos com o serviço do Seu Jorge e dos voluntários…

    – Sim, e por conta do Seu Jorge e dos voluntários nossa escola estava caindo aos pedaços! E o nosso convento também não está lá essas coisas!

    – Mas Madre…

    – Nada de mas… Eu quero deixar bem claro que quem dirige este convento e esta escola sou eu, e EU tomo as decisões que julgar necessárias para o bom funcionamento desse local! E não preciso de conselhos! Quando porventura precisar eu peço, caso contrário, mantenha-se no seu lugar! Ou será que a senhora pretende assumir o meu lugar junto à Ordem?

    – Não, Madre, por favor, não é nada disso… eu só quero ajudar…

    – Já disse que se precisar de ajuda eu peço.

    – Mas essa moça é diferente de nós… é esquisita… é da cidade grande…

    – Assunto encerrado, Irmã. – disse a Madre enfaticamente. – Agora me dê licença.

    – Mas eu tenho trabalhos por fazer aqui no escritório…

    – A senhora está dispensada por hoje. Tire o dia de folga. Vá passear, distraia-se. E reze! Reze para que Jesus abra o seu coração e permita que consiga ver que todos somos iguais perante Ele. Ou por acaso esqueceu dos seus votos?

    – Não senhora, não esqueci.

    – Então tente repensar suas atitudes dos últimos dias.

    A Irmã Teodora baixou os olhos, que se encheram de lágrimas, e retirou-se da secretaria, passando por Ana como um raio, quase que esbarrando em seu ombro. Na passagem dirigiu-lhe um olhar de ressentimento.

    Ana respirou fundo e entrou no recinto como se não houvesse escutado nada. A Madre, por sua vez, também não falou sobre o assunto, desviando a conversa para as maravilhas do mundo virtual. Apesar de estar a bem pouco tempo naquele local Ana já conhecia a Madre o suficiente para perceber que ficara mobilizada e entristecida com o teor da conversa com a Irmã Teodora. Mas por certo saberia contornar aquela situação.

    Ana ainda trabalhou na escola na sexta-feira e deu por encerrada sua tarefa naquele local antes do final da tarde. A Madre, satisfeitíssima com os resultados da reforma, disse para Ana descansar naquele sábado e domingo.

    No sábado Ana acabou acordando cedo, porém após o café da manhã voltou para seu quarto e deitou mais um pouco, pegando no sono novamente e dormindo até quase o meio dia. Deu-se conta de que estava cansada, porém o sono fora de hora acabou sendo bastante reparador.

    Depois do almoço aproveitou para lavar algumas roupas e dar uma geral em sua Kombi. Depois optou por ouvir um pouco de música estirada confortavelmente numa rede que havia prendido num dos cantos do galpão.

    Por volta das dezessete horas, quando os raios do sol já não estavam tão escaldantes saiu para dar um passeio, queria conhecer melhor o pomar. As árvores frutíferas ocupavam uma vasta área e podia-se encontrar as mudas mais variadas. Ana teve sua atenção despertada para um canto do terreno, perto de uma encosta rochosa, onde a claridade direta do sol pouco batia conferindo uma umidade propícia para o desenvolvimento de quatro pés de figos. Estes germinaram lado a lado e suas copas acabaram se fundindo numa só. Estavam carregados de frutos, a grande maioria maduros. Ana sempre teve uma predileção por figos maduros, desde pequena, e aquelas frutas pareciam sorrir-lhe, convidando-a a um banquete digno dos deuses. As copas cerradas com galhos carregados de frutos faziam com que as hastes da ponta chegassem quase que até o chão, formando uma caverna de vegetação, na qual se podia facilmente entrar e saciar a fome. E Ana não se fez de rogada: penetrou na densa camada de ramos e sentiu-se num paraíso. Era a primeira vez que via uma figueira tão carregada de frutos. Tirou do bolso um canivete que sempre carregava consigo e passou a descascar alguns frutos, saboreando-os com avidez. Enquanto se deliciava começou a escutar um cantarolar baixinho vindo em sua direção e espiou através dos galhos da figueira. Era Lúcia que vinha saltitante, cantarolando uma música de aleluia. De seu posto Ana podia novamente observa-la sem ser vista. A freirinha parou a menos de dez metros de distância, à sombra de um gigantesco abacateiro que àquela altura do ano não possuía uma única fruta em seus ramos, somente folhas de um verde intenso. Olhou para cima, tirou suas sandálias e sungou seu hábito até a altura das coxas, introduzindo a barra da saia no elástico da calcinha. Ficou parecendo usar fraldas. Ana teve de rir da cena. Estava sem o véu e os cabelos loiros estavam presos num rabo-de-cavalo. Em seguida Lúcia tirou um pequeno binóculo de dentro de uma sacola plástica e o pendurou no pescoço. Num pulo ágil escalou o caule mais grosso da árvore com a agilidade de um primata. Em seguida empreendeu uma escalada na direção dos galhos mais altos. “Essa garota parece um moleque…”, pensou Ana enquanto saia de seu esconderijo e caminhava em direção ao abacateiro. Lúcia estava tão distraída observando pássaros que nem sequer notou a aproximação da morena. Posicionada bem em baixo de onde Lúcia estava, Ana podia ver o contorno de suas pernas e o amarelo claro de sua calcinha de algodão por baixo do hábito cinzento. Ana observava a cena divertida e encantada com a agilidade daquela macaquinha loira. No entanto, por vezes, até os macacos caem das árvores. Ao tentar posicionar melhor seu pé esquerdo, o galho em que se apoiava acabou quebrando e Lúcia despencou como uma jaca madura. Desta vez foi Ana quem, num movimento preciso e de puro reflexo, aparou Lúcia em pleno ar, evitando que se estatelasse no chão. Seus braços fortes, acostumados ao trabalho pesado, não tiveram nenhuma dificuldade em amparar a pequena freira em queda livre. Com os olhos arregalados de susto, e sem entender bem o que se passava, Lúcia ainda no colo de Ana encarou sua salvadora e sorriu incrédula franzindo o nariz:

    – Ooooi… Tu vem sempre aqui?

    – Não, só quando resolvo colher freiras. – respondeu Ana colocando Lúcia no chão delicadamente. – Machucou?

    – Não… e tu? Machucou alguma coisa? Eu sou meio pesadinha.

    – Não mais que um pneu de trator.

    – E tu por acaso já levantou um pneu de trator??? – disse Lúcia em tom de deboche.

    – Alguns.

    – Tá brincando…

    – Não, não tô.

    – Mas mesmo assim… é diferente.

    – Com certeza. Pneus não correm o risco de se enforcar com o tirante de um binóculo.

    – Ah… – Lúcia sorriu – não tem perigo nenhum! – disse ajeitando o binóculo que fora parar nas costas.

    – Tem sim. Não escale mais nada com esse treco pendurado no pescoço, ou com qualquer outra coisa que possa servir de forca. Você não tem amor à vida?

    – Claro que tenho! Mas eu não ia adivinhar que cairia! – respondeu Lúcia colocando as duas mãos na cintura, numa pose desafiadora olhando Ana de baixo para cima.

    – Mas devia.

    – Tu tá falando igualzinha a Madre!

    – Aliás, a Madre sabe desse teu gosto por alpinismo?

    Lúcia arregalou os olhos como uma criança travessa e pediu:

    – Nãããão… e nem pode ficar sabendo… por favor, não vai contar.

    – Vou pensar.

    – E se eu prometer não subir mais.

    – Pode subir, mas sem esse troço no pescoço.

    – Combinado! – concordou Lúcia sorridente enquanto ajeitava a parte de baixo do hábito.

    Ana virou-se e começou a se afastar do pomar.

    – Eeeeiii, – gritou Lúcia, correndo atrás de Ana – Onde é que tu vai agora?

    – Não te interessa.

    – Não seja mal educada! Eu ia te convidar para um passeio.

    – Já passeei o suficiente hoje. – respondeu Ana caminhando com passadas largas e rápidas.

    Lúcia precisava quase que correr para poder acompanha-la.

    – Tem uma trilha bem legal aqui perto. – insistiu Lúcia.

    – Já falei que não tô a fim.

    – Tu é sempre assim mal humorada?

    – Só quando me torram a paciência.

    Lúcia desacelerou o passo e respondeu:

    – Pois então tá. Um bom dia pra ti também! Eu vou rezar para que Deus proteja o teu estômago de uma úlcera! Pois pelo teu humor é capaz de já teres umas duas ou três.

    Ana chegou a parar para responder, mas ao olhar a figura diminuta parada com as mãos na cintura e os cabelos revoltos, bufou e continuou sua marcha para casa. Logo após a janta recolheu-se, dormindo cedo.

    O domingo amanheceu bastante quente e o dia prometia passar dos quarenta graus de temperatura. Por ter se recolhido cedo Ana acabou acordando bem cedo também, antes mesmo do raiar do sol. Tomou uma ducha quase fria, pois havia transpirado muito durante a noite, apesar de haver deixado a janela totalmente escancarada, permitindo a entrada da aragem noturna. Colocou uma bermuda de lycra preta e uma camiseta regata branca por cima de um top vermelho que podia ser visto pelas laterais da cava da manga. Calçou um par de chinelos havaiana brancos e saiu para a rua, a fim de respirar o ar fresco da manhã, antes que a temperatura subisse e tornasse o dia insuportavelmente quente. Eram pouco mais de cinco horas da manhã e Ana observou movimentação na capela. Dirigiu-se até a porta alta de madeira escura e esculpida que se encontrava aberta, como num convite a alguns minutos de recolhimento e oração. Galgou os cerca de dez degraus que separavam a rua do pórtico da ermida e chegou até a soleira da porta. Espiou para dentro do local iluminado apenas por uma meia dúzia de velas tremulantes ardendo no altar e pela luz artificial vermelha e contínua do Sacrário. Os primeiros bancos estavam tomados pelas Irmãs do convento. Algumas ajoelhadas, outras, as mais velhas, sentadas e totalmente absortas nos livros de orações. O silêncio era tamanho que se podia quase que ouvir os compassos das respirações daquelas mulheres. Ana não ousou mover um único passo em direção ao interior da capela, temendo quebrar o silêncio absoluto e quase mágico que reinava no local. Por causa dos véus e da penumbra não conseguia distinguir quem era quem naquele ambiente.

    O silêncio sepulcral da capela foi quebrado pelo som melodioso e suave da voz da Madre Lídia que iniciou a reza do terço. As demais Irmãs respondiam em uníssono a cada pausa da Madre, e o desenrolar mântrico do terço, ecoando na acústica da construção antiga, conferiria uma sonoridade característica e envolvente.

    Ana havia percebido que esse ritual na capela acontecia todas as manhãs, sem exceção. Eventualmente, em horários diversos, não era raro de se ver uma movimentação silenciosa na ermida, fruto de peregrinações solitárias ou em pequenos grupos de freiras. Outra peculiaridade era o toque do sino sempre que o relógio marcava seis da manhã, meio dia, três da tarde e seis da tarde.

    Sem fazer qualquer ruído Ana afastou-se do local, ainda escutando o ecoar longínquo das vozes em oração. Colocou uma cadeira de praia defronte a porta de seu quarto e estirou-se para trás, pensando acerca dos últimos acontecimentos de sua vida, principalmente desde que chegou naquele convento. De fato a experiência não vinha sendo de todo desagradável, como pensara que seria. Muito pelo contrário. Apesar da demanda de trabalho e das implicâncias da Irmã Teodora, estava se sentindo bem, principalmente devido à acolhida da Madre Lídia e aos paparicos da Irmã Celestina. Puxando pela memória se deu conta de que nem mesmo sua mãe havia lhe dispensado tantos cuidados quanto esta última. Não havia dia em que a Irmã Celestina não lhe desse uma coisinha diferente para experimentar. Inclusive costumava parar um pouco para conversar com ela, obrigando-a a fazer uma pausa no trabalho que estivesse realizando. E isto não a incomodava, pelo contrário, sentia-se bem, embora não fosse pessoa de muitas palavras e na maioria das vezes era a freira quem tagarelava e ela respondia com monossílabos. A Irmã Celestina lhe ficara agradecida por ter dado uma geral em seu fogão industrial, desentupido os bicos e regulado o forno. “Ficou uma maravilha!!!”, dizia a freira radiante.

    Perdida nesses devaneios foi trazida de volta à realidade pelo toque grave do sino da torre da ermida. Percebeu, depois de alguns minutos, que as Irmãs cruzavam o portal de madeira da capela e caminhavam na direção do refeitório. Resolveu dar um tempo e foi tomar seu café da manhã quando quase todas já haviam terminado. Ao sentar-se numa mesinha de canto Lúcia passou por ela e lançou-lhe um tímido bom dia, ao que Ana respondeu com um maneio de cabeça. Lúcia serviu-se de café e ajeitou duas fatias de pão num pratinho. Como não havia mais ninguém no refeitório foi até a mesa de Ana e perguntou-lhe docemente:

    – Posso sentar aqui contigo?

    – Pode. – respondeu Ana secamente.

    – Com licença, então – disse instalando-se numa cadeira de frente para Ana, que permanecia com os olhos voltados para sua xícara de café.

    Depois de alguns minutos Lúcia puxou conversa:

    – Pretende passear hoje?

    – Não sei.

    – Pode ficar tranqüila que não vou me oferecer para te ciceronear.

    – Que bom.

    – Tu é sempre assim ranzinza? – provocou Lúcia.

    Ana respirou fundo, cruzou os braços e olhou diretamente para Lúcia. Novamente os olhos verdes e espontâneos da freirinha não lhe permitiram uma explosão de raiva. Respondeu pausadamente:

    – Não… as vezes eu consigo controlar minha tendência psicopata e não chego a estrangular quem tenta me tirar do sério.

    Lúcia deu uma gargalhada e respondeu:

    – Então eu sou uma sobrevivente!

    – De certo modo, sim…

    – Bom saber! – respondeu Lúcia dando uma bocada em seu pão com geléia de uva. Ao engolir continuou – …tu não contou nada pra Madre sobre o pomar? Contou?…

    – Não.

    Lúcia sorriu franzindo o nariz:

    – Obrigada… fico te devendo essa.

    – Não me deve nada.

    – Ótimo então, eu não gostaria de ficar em débito com uma psicopata.

    Desta feita foi Ana quem teve de ceder e um breve sorriso se estampou em sua face.

    – Eeeeiii… tu sabe rir! E que sorriso lindo!

    Novamente Ana ficou séria e desconcertou-se com o elogio de Lúcia. Tomou o último gole do café de sua xícara, pediu licença e retirou-se, deixando Lúcia sozinha no refeitório.

    Por volta das dez horas da manhã Ana resolveu dar mais uma caminhada pela extensa propriedade do convento. Desta vez andou em direção à pastagem das ovelhas. Eis que após uns quinhentos metros de onde estava começou a ouvir vozes em algazarra e eventualmente um apito agudo. Ao dobrar à esquerda numa pequena estradinha coberta de brita grossa deparou-se com uma rústica quadra de vôlei onde as freiras estavam reunidas disputando uma partida animada. Um pouco mais afastado havia um banco de madeira, a única arquibancada para as espectadoras que eram em número de seis, fora a Madre que apitava o jogo. As demais estavam dispostas em dois times de seis jogadoras cada. Ao avistar Ana de longe a Madre acenou para ela, fazendo um sinal para que se aproximasse. A Madre estava posicionada numa banqueta de madeira, na linha da rede e segurava o apito na mão direita, enquanto observava a trajetória da bola. Ana foi se aproximando e logo a irmã Celestina lhe abanou, convidando-a a sentar-se a seu lado. Ana acomodou-se entre as Irmãs Celestina e Sebastiana, que lhe sorriu com a amabilidade dos seus noventa e três anos. Tanto as jogadoras como a torcida eram muito animadas. Ana começou a observar o jogo e viu que Lúcia compunha um dos times que, aliás, perdia deslavadamente do outro time. As componentes do time de Lúcia eram as mais novas dali, além de uma freira mais velha e outra estrábica. O time adversário era liderado pela irmã Teodora e jogava relativamente bem. O placar chegava a ser uma piada. Os dois sets que Ana inicialmente assistiu foram perdidos de zero pelo time de Lúcia. Logo após iniciarem o terceiro uma componente do time de Lúcia, Geovana, pisou em falso e sentiu dor no tornozelo. Disse não ter mais condições de jogar. Ana pensou consigo mesma, “boa desculpa, garota…”. Nesta ocasião originou-se a polêmica de quem iria substituí-la para que o jogo continuasse. As freiras mais velhas estavam fora de cogitação, as mais novas alegavam as desculpas mais variadas para não jogar no time perdedor. No meio do burburinho formado a Madre assoprou com veemência o apito, emitindo um som forte e agudo que fez com que todas calassem a boca instantaneamente. Madre Lídia virou-se para Ana e sugeriu:

    – Ana, tu não gostarias de participar dessa nossa brincadeira?

    Ana foi pega de surpresa e meio que gaguejou:

    – Não… não…

    – Mas parece que só tu tens condições de colaborar conosco… – insistiu a Madre.

    Lúcia correu até ela e pediu, olhando-a fixamente:

    – Por favor…

    “Novamente esses olhos verdes… puta que pariu..”, pensou Ana sem conseguir formular nova negativa. A Irmã Celestina deu-lhe um tapinha na perna e disse carinhosamente:

    – Vai, vai…

    Ana se levantou e todas comemoraram com pulinhos de felicidade e batidas de palmas. Menos Irmã Teodora que observava Ana com seriedade e disse à meia voz:

    – Ainda acho que seria melhor tirar alguém do nosso time, assim ficaria parelho.

    A Madre dirigiu-lhe um olhar de reprovação, uma vez que percebeu que Ana havia escutado o comentário maldoso. “Agora é uma questão de honra”, pensou Ana com seus botões. A morena dirigiu-se para a quadra enquanto as demais jogadoras a cercavam. As freiras estavam vestindo abrigos cinzentos e camisetas brancas, como se estivessem uniformizadas para a partida. Antes de reiniciar o jogo Ana pediu à Madre:

    – Madre, eu preciso conversar com o meu time um pouco, pode ser?

    – Claro…

    Ana conduziu seu time para uma distância em que pudesse falar sem ser ouvida pelas demais. Abaixou-se um pouco e começou a falar baixo e claro.

    – Muito bem meninas… O placar não está a nosso favor, mas vamos confiar que temos condições de jogar bem, ok?

    – Ok! – responderam as demais.

    – E vamos confiar em Jesus! – disse a Irmã Margarida, que era a mais velha do time, com sessenta e cinco anos.

    – Vamos… – concordou Ana – …se bem que não sei se Jesus manja esse lance de vôlei…

    Lúcia cutucou Ana no cotovelo. A morena continuou.

    – A senhora é a Irmã?…

    – Margarida! – respondeu a mulher mais velha.

    – Muito bem… Irmã Margarida! A senhora é uma mulher alta, tem braços longos.

    – Tenho quase um metro e oitenta!

    – Pois então… Eu quero que a senhora se posicione na rede. E erga os braços. O mais alto que puder. Pode ser?

    – Pode…

    – Então me mostre como. – disse Ana.

    A freira levantou os braços somente até a altura das orelhas.

    – Irmã… eu acho que a senhora não entendeu… Tem que levantar mais alto, assim ó… – e Ana fez o gesto – imagine que a senhora se deparasse com… sei lá… com o Papa, por exemplo, e precisasse saudá-lo! A senhora ficaria assim de braços abaixados como se estivesse com o desodorante vencido?

    O time inteiro gargalhou e Irmã Margarida respondeu efusiva:

    – NÃO… Eu acenaria assim! – e levantou os braços o mais que pode, pulando inclusive.

    – Isso! Muito bom! Agora é só fazer isso quando estiver na rede. Combinado?

    – Combinado! – respondeu a freira sorridente.

    – E a senhora é?…

    – Irmã Irene!

    – Bom Irmã Irene… – disse Ana dando três passos largos para trás e afastando-se dela – Daí de onde a senhora está eu gostaria que apontasse para a minha mão erguida.

    A freira imediatamente apontou para o braço erguido de Ana, porém com um desvio de mais ou menos trinta graus, por conta do estrabismo. Ana se aproximou novamente e disse:

    – Irmã, onde estão os seus óculos?

    – No meu quarto!

    – E porque a senhora não joga com eles?

    – Bom… porque não posso correr o risco de quebrá-los. É muito caro fazer novos!

    Ana coçou a cabeça pensativa:

    – Bom… então vamos fazer assim: quando a senhora estiver no saque, e eu vi que a senhora tem um saque potente, ao invés de mirar no alvo a senhora vai direcioná-lo cerca de trinta graus para a direita, e pode baixar o braço com vontade! Combinado?

    – Combinado!

    – Bom, você Irmã Lúcia, pare de pular como uma pipoca na fogueira. Fique na sua posição sem atrapalhar as outras. E pule o mais alto que puder para cortar essa porra de bola!

    Fez-se um silêncio e Ana ficou encabulada pelo palavrão:

    – Perdão! Eu me exaltei. Mas vamos continuar. Você… – disse Ana apontando para a mais nova delas.

    – Clarice!

    – Clarice… Não tenha medo da bola. Ela não morde.

    – Mas machuca.

    – Não machuca se você souber jogar. Tente defender os saques assim – demonstrou Ana colocando ambos os braços junto ao corpo juntando os pulsos – Se tentar defender novamente um saque da Irmã Teodora como se fosse dar uma cortada vamos ter que reimplantar seus dedos.

    Nova gargalhada no grupo.

    – E você, mocinha…

    – Clara.

    – Continue jogando como está que tá bom. Vamos lá?

    – VAMOS! – gritaram as demais dando-se as mãos.

    A Madre sorriu quando o time se apresentou em quadra. Irmã Teodora também sorriu ironicamente, numa atitude de provocação à Ana que se manteve impassível. O time adversário iniciou sacando, saque defendido por Clarice que sorriu orgulhosa de si mesma. A bola passou para o outro lado e Irmã Teodora posicionou-se para cortar. No entanto, colada na rede a Irmã Margarida se lembrou do Papa e pulou o mais alto que pode, com os braços erguidos, fazendo com que a bola tocasse no chão da quadra do adversário. Estava feita a algazarra. Foi um pula-e-comemora só aquele primeiro ponto. Ana percebeu um ar de satisfação no rosto da Madre e piscou para ela, num sinal de cumplicidade. Das cerca de vinte sacadas da Irmã Irene doze foram direto para o chão da quadra, indefensáveis. As outras deixavam o time adversário em maus lençóis. Era só mesmo uma questão de regular a pontaria. Ana conseguia estar em todos os lugares da quadra quase que ao mesmo tempo, e cada vez que o ataque era encabeçado pela Irmã Teodora fazia questão de defender de qualquer maneira. Quando faltavam quinze para o meio dia a Madre deu por encerrado o jogo e o placar estava disparado para o time de Lúcia e Ana. As adversárias vieram abraçar as novas vencedoras, menos Irmã Teodora que rumou para o convento taciturna, demonstrando contrariedade. A Irmã Celestina abraçou Ana pela cintura comemorando:

    – Viu só o que faz a boa alimentação??? Isso que é desempenho!!!

    Ana retribuiu o abraço e sorriu, sentando um pouco para descansar. O grupo de freiras foi se dirigindo para o convento, sendo que Lúcia ficou para trás. Estava bebendo água de uma garrafa plástica quando sentou ao lado de Ana.

    – Quer um pouco? – perguntou alcançando a garrafa para Ana.

    A morena estava realmente com sede. Pegou a garrafa e sorveu alguns goles com avidez. Depois estendeu a garrafa de volta.

    – Obrigada.

    – Eu é que tenho que agradecer. Aliás, o nosso time tem que lhe agradecer.

    – Não tem nada.

    – Até que pra uma psicopata tu joga bem pra caramba! – brincou Lúcia.

    – Eu disse que sou psicopata, não perna de pau.

    Lúcia gargalhou. Ana a observou com o canto dos olhos, indiretamente. Por mais que tentasse manter-se distante e indiferente, aquela jovem mulher mobilizava um tipo de sentimento em Ana que ela não sabia definir ao certo. Por mais que a loirinha lhe irritasse em certas ocasiões, com seu jeito serelepe e curioso, não conseguia ficar de fato brava com ela. Na verdade encantava-se com a simplicidade e a pureza daquela figura angelical.

    – No domingo que vem nós vamos ganhar de novo! – disse Lúcia sorridente.

    – Como é que é?

    – Eu disse que no domingo que vem nós vamos ganhar de novo!

    – Mas quem falou que eu vou jogar novamente? – retrucou Ana.

    – Convencida!!! Acha que a gente ganhou só por tua causa? – provocou Lúcia.

    – E não foi?

    – Claro que foi, sua boba! – riu-se Lúcia – E é por isso que a senhorita está escalada para participar efetivamente do nosso time!

    – E agora você é a Técnica para ficar escalando jogadoras?

    – Digamos que eu sou da consultoria do time. E se eu consultar a todas as jogadoras elas vão te querer jogando conosco! – respondeu Lúcia arrebitando o nariz – Joga com a gente???… Por favor…

    – Tô bem arrumada…

    – Isso é um sim?

    – Um talvez.

    – Já é alguma coisa! Para um sim é um pulinho.

    – Você é insistente, ein garota? – reclamou Ana.

    – Só quando é estritamente necessário!

    – Tá bom. Eu jogo nessa bosta desse time.

    Lúcia olhou para Ana fazendo uma careta de reprovação pelo palavrão.

    – Você queria o quê? Eu me controlei o jogo todo! Acho que disse ‘merda’ uma vez só! E baixinho pra ninguém ouvir! Eu não sou de ferro.

    – Tudo bem… jogando esse bolão todo tu pode dizer um palavrãozinho de vez em quando… acho que nem a Madre iria se importar. – disse Lúcia.

    – Ótimo saber… chego a ficar emocionada com a… condescendência.

    Novamente Lúcia gargalhou.

    – Ana, vamos almoçar?

    – Vai indo, eu vou tomar uma ducha antes.

    – Até daqui a pouco então. – respondeu Lúcia enquanto corria de volta ao convento.

    Ana ainda ficou parada por alguns momentos, enquanto observava Lúcia se afastando dali. Ela realmente parecia um ser etéreo, uma mistura de fada pela candura e de duende pelas traquinagens. De fato era uma pessoa que emanava uma energia positiva, de felicidade e paz interior.

    Depois do almoço Ana tirou a tarde para descansar. Colocou sua rede debaixo do braço e caminhou até a parte de vegetação nativa, amarrando-a entre duas árvores de copa cerrada e cuja sombra convidava ao repouso. À noite, após a janta, Ana estava sentada em frente ao galpão de manutenção, lendo um pouco, quando a Irmã Celestina aproximou-se. Estava com uma espécie de bolsinha térmica pendurada no ombro e disse:

    – Boa noite, minha querida! Que noite quente, não é mesmo?

    – Ô, nem fale…

    – Minha filha… – disse a freira olhando para os lados e falando quase num cochicho – …vamos até a rouparia dar boa noite para a Irmã Sebastiana?

    – Como?…

    – Vem comigo, vem… – disse a velha senhora puxando Ana pela mão.

    Entraram na rouparia e a anciã sorriu para as visitantes.

    – Irmã Sebastiana, eu trouxe mais uma visita para a senhora!

    – Bem vindas! – disse a velhinha.

    – E olha aqui o que eu trouxe… – disse a Irmã Celestina com cara sapeca.

    Os olhos da anciã se iluminaram e Ana não entendia o que estava acontecendo. A Irmã Celestina abriu a bolsa térmica e tirou duas garrafas de cerveja estupidamente geladas. Ana balançou a cabeça e sorriu. A Irmã Sebastiana levantou-se ágil e pegou três copos que estavam num armário no canto da peça. Irmã Celestina serviu a bebida com um olhar de expectativa.

    – Agora vamos brindar! – disse a Irmã Celestina alcançando os copos para as outras duas – À nossa saúde, ao calor, à nossa querida Ana, ao Sagrado Coração de Jesus e de Maria, e à vida!

    – Saúde! – responderam as outras duas.

    Ana observou que a Irmã Sebastiana sorveu mais da metade do copo de bebida numa virada só. Estava se divertindo com a cena, com a expressão de felicidade e de cumplicidade das freiras. Estava tomando conhecimento de um lado nada austero daquele convento. Com o copo pela metade Irmã Sebastiana proferiu:

    – Isso é que é bom para matar a sede! E combate a insônia! Na minha idade já se tem certa dificuldade de conciliar o sono. – e riu do próprio comentário.

    – Mas que a Irmã Teodora não nos ouça! – emendou Irmã Celestina divertidamente – Ela não sabe o que é bom!

    – Não deve saber mesmo… – respondeu Ana – Ela parece estar sempre de mal com a vida.

    – Coitada… – justificou a Irmã Celestina – Ela é boa pessoa… Mas muito rígida em algumas situações. E Deus nem gosta de muita rigidez, senão não teria criado o ser humano imperfeito!

    – Pensando por este aspecto… – disse Ana.

    – Mas é verdade! – disse Irmã Sebastiana – Eu que tenho quase a idade de Matusalém posso dizer com certeza que Deus gosta do que é belo, gosta de música, de risos, de crianças, de flores, de trabalho, de orações, de manhãs de sol, de borboletas, de passarinhos e de cerveja!

    As três tiveram de rir. E brindaram novamente.

    – Na minha idade – continuou Irmã Sebastiana – eu não posso mais me privar de algumas coisas que eu gosto. E a Madre insiste em dizer que eu só posso tomar leite… “por causa dos remédios” – continuou imitando o discurso da Madre, com a mão na cintura – mas eu preciso é de cerveja de vez em quando! Ainda bem que a Irmã Celestina me entende!

    – E eu concordo plenamente, Irmã! – disse Ana em tom solene, tomando mais um gole de cerveja – A vida é feita de momentos!

    – Isso mesmo, minha filha! – disse a Irmã Sebastiana sorridente.

    – Mas… Irmã… – continuou Ana – …a senhora não vá errar o caminho para casa ou trocar os pés, ein? Senão não tem como a gente ocultar essa nossa… digamos… pequena contravenção.

    – Mas eu sou lá sou mulher de entortar com dois ou três copinhos de cerveja? – brincou a freira mais velha.

    – Não leva jeito mesmo! – concordou Ana sorridente.

    Era incrível como aquelas duas anciãs conseguiam lhe fazer sorrir com facilidade. Aliás, sentia-se bem naquele lugar. E por incrível que parecesse estava gostando de estar ali. Percebia algumas pessoas muito simples, com valores simples e verdadeiros. Com realidades bem diferentes da dela, mas sem que isso a perturbasse. Havia a implicância gratuita de Irmã Teodora, mas o afeto incondicional da Irmã Celestina, e agora da Irmã Sebastiana, que acabava compensando o resto. A Madre também sempre lhe tratou com consideração. Era muito mais reservada, provavelmente pelo papel que desempenhava naquela organização, mas demonstrava boa vontade para com Ana. E Ana lhe era grata por isso.

    As três cúmplices terminaram de tomar as cervejas e ainda conversaram por mais um tempo. Irmã Sebastiana aproveitou para pedir à Ana que desse uma olhadinha em sua velha máquina de costura, que precisava de um pouco de óleo no rolamento do pedal.

    Já eram onze horas quando Ana finalmente retornou ao seu quarto, não sem antes certificar-se de que as duas freiras haviam chegado até o convento. Observou as duas caminhando lado a lado, de braços entrelaçados, conversando animadamente, mas em tom muito baixo pelo adiantado da hora.

    Tomou uma ducha rápida e jogou uma camiseta velha por cima. Ajeitou o mosquiteiro e adormeceu quase que instantaneamente ao deitar.

    Nos dois dias que se seguiram Ana deteve-se em pequenos consertos no próprio convento. Na quarta-feira pela manhã a Madre lhe pediu que desse uma olhada nas telas do galinheiro, pois mais de cinco galinhas haviam fugido na noite anterior. “Sem contar com o galo fugitivo há séculos!”, pensou Ana divertida. A Madre aproveitou para conversar um pouco com ela.

    – Ana, eu vou precisar me ausentar por uns dias, talvez cinco dias, para tratar de assuntos referentes à Ordem. A Irmã Teodora ficará em meu lugar respondendo pelo convento, por ser a pessoa com mais qualificação para fazê-lo. – disse a Madre.

    Ana ficou impassível frente ao comunicado, porém em seu íntimo foi tomada por um sentimento de apreensão. Como que adivinhando os pensamentos da morena a Madre continuou:

    – Eu sei que ela tem certa dificuldade em aceitar a tua presença aqui, mas eu já deixei bem claro que as tuas atribuições ficarão previamente definidas por mim. E eu considero mais adequado que trabalhes estes dias na parte rural. Tanto o galinheiro quanto a estrebaria e a parte das ovelhas precisam de um olhar mais atento. Tem bastante coisa por fazer por lá. Tábuas precisam ser trocadas, algumas repostas, cercas e telas consertadas. No sábado e no domingo podes folgar. Creio que na segunda-feira eu já esteja de volta. Até lá eu te peço um pouco de paciência. Entendido?

    – Entendido. De minha parte tudo bem. O problema não sou eu e a senhora bem sabe…

    – Eu sei. Mas com a outra parte eu já tratei. Agora preciso arrumar minhas coisas. – disse a Madre gentilmente.

    – Com licença então. E, Madre, boa viagem.

    – Obrigada.

    Ana retirou-se, pegou suas ferramentas e pedaços de arame e foi até o galinheiro. Prudente, calçou um par de botas de borracha para evitar qualquer possibilidade de ter esterco grudado nos pés e na bainha do macacão. Na noite anterior havia chovido e o terreno do galinheiro estava umedecido e escorregadio. Fez uma exploração minuciosa em toda a extensão da tela e identificou o buraco pelo qual as fugitivas empreendiam as evasões noturnas. Fez alguns reparos, parando somente na hora do almoço. Trocou de roupa devido ao cheiro de galinheiro que havia entranhado em seu macacão. No refeitório percebeu que a Madre já havia saído. Sentou-se numa mesa de canto e mal levantou os olhos do prato. Pôde observar a Irmã Teodora instalada numa das mesas do centro, ostentando um sorriso de satisfação no rosto. Pareceu-lhe que por mais de duas ocasiões a freira havia lhe dirigido um olhar de viés, porém tratou de desconsiderar qualquer tipo de provocação, conforme havia sido recomendado pela Madre. Após terminar sua refeição saiu do refeitório e novamente recolocou sua roupa de trabalho, retornando ao galinheiro. Pretendia terminar o serviço ainda naquele dia. Deteve-se no remendo de um dos lados da tela e estava tão absorta em sua atividade que nem reparou num pequeno vulto que adentrara no galinheiro. Após certo tempo Ana foi surpreendida por uma movimentação dentro da construção destinada ao pouso das galinhas. Parou o que estava fazendo e aproximou-se da portinhola de madeira. Eis que Lúcia sai de dentro da casinha de costaneiras com um balaio de ovos e uma galinha de plumagem marrom aninhada em seu colo, como se fosse uma criança.

    – O que é que você tá fazendo aqui? – perguntou Ana.

    Lúcia também fora surpreendida pela presença de Ana e devolveu a pergunta:

    – Eu que pergunto: o que é que tu estás fazendo aqui?

    – Eu tô brincando de dentista, tentando extrair os dentes das galinhas! – respondeu Ana desaforada erguendo o alicate.

    – Pois eu estava sentada nos ninhos, mostrando para essas preguiçosas como se coloca um ovo! – respondeu Lúcia no mesmo tom de voz.

    – E elas aprenderam? – debochou Ana.

    – Parece que sim… – disse Lúcia apontando para o balaio cheio de ovos.

    Ana observou Lúcia mais atentamente. Ela estava com algumas penas presas no cabelo e na roupa, e segurava a galinha marrom que parecia alheia ao bate-boca das duas. A figura estava hilária. Da mesma forma Lúcia observou o macacão e as botas tomadas de esterco e precisou controlar o riso imaginando a dificuldade que Ana teria de se livrar daquele odor característico.

    – Vamos, Peninha, antes que tentem arrancar os teus dentinhos… – disse Lúcia caminhando na direção do portão do galinheiro.

    Ana bufou, mas não disse mais nada. Observou quando Lúcia colocou carinhosamente a galinha no chão após lhe fazer mais um cafunezinho nas penas. A ave tinha uma perna mais curta que a outra, era muito gorda e manca. Acompanhou Lúcia pelo costado da cerca até que esta seguiu na direção da estrebaria.

    Ana agachou-se novamente rente à cerca, porém ficou lembrando do ar de deboche de Lúcia. E Ana não suportava que debochassem dela e resolveu ir atrás da freirinha para lhe dizer uma meia dúzia de verdades. Seguiu pelo mesmo rumo que Lúcia havia tomado.

    Bem perto dali Lúcia caminhava alegremente com o enorme cesto repleto de ovos quando avistou Peninha novamente fora do galinheiro, com seu caminhar peculiar e cacarejando provocativa. “Galinha safada, volta aqui! Fugiu pela cerca de novo!”, disse empreendendo uma corrida atrás da fugitiva. Eis que o galinha deu meia volta e passou correndo entre as pernas de Lúcia. Esta desequilibrou-se e resvalou na relva ainda umedecida pela chuva da noite anterior. O que se viu foi um festival de ovos espalhados por todos os lados e uma voz furiosa a repreender a jovem freira.

    – MAS O QUE É ISSO? – esbravejou a Irmã Teodora, após receber um arremesso de ovo no hábito impecavelmente limpo.

    Lúcia levantou-se num pulo, totalmente sem saber o que dizer:

    – Irmã… desculpe… eu… foi sem querer… eu não vi a senhora… eu queria pegar a Peninha que fugiu do galinheiro…

    – CALE-SE!

    – Mas, Irmã…

    – Eu já falei para calar a boca! Isso é o que dá a Madre dar muitas regalias para certas pessoas! Olha o estrago que fizeste! Olha o prejuízo que teremos com a quebra desses ovos!

    – Mas eu já disse que foi sem querer! – respondeu Lúcia encarando a Irmã Teodora e colocando as duas mãos na cintura.

    Esta ultima, furiosa pela afronta, levantou a mão na intenção de dar um sonoro tapa no rosto de Lúcia. Porém seu movimento foi abruptamente interceptado por um pulso forte que lhe segurou firmemente o braço em riste. Irmã Teodora virou-se com a fisionomia transtornada pela raiva e deparou-se com Ana encarando-a de frente. Ana trouxe o braço de Irmã Teodora até bem perto de seu rosto e disse em tom firme e sério:

    – Se for bater em alguém, bata em mim. Além de ser do seu tamanho fui eu quem deixou a galinha escapar.

    A freira mais velha deu um safanão e livrou-se da pegada de Ana, fuzilando-a com o olhar. Lembrou-se da recomendação da Madre e sabia que nada poderia fazer em relação a ela. A raiva estava estampada em seu olhar, em contrapartida ao olhar penetrante e controlado de Ana. Virou-se para Lúcia e disse em tom ameaçador:

    – Volte para o convento agora! Nós vamos conversar no meu gabinete! – disse a Irmã Teodora referindo-se ao escritório da Madre Lídia.

    Lúcia, com os olhos marejados de lágrimas, correu em direção ao convento. A Irmã Teodora ainda lançou mais um olhar de raiva para Ana e virou-se num movimento brusco caminhando a passos largos para o convento. No trajeto um sentimento de cólera a corroia por dentro. Pensava no que poderia fazer para que aquela situação de humilhação que sofrera fosse retratada. Tinha consciência de que nada poderia fazer contra Ana. Mas por certo daria um jeito em Lúcia. Adentrou no escritório e Lúcia já a aguardava, acuada de pé num canto do aposento. A Irmã Teodora se aproximou dela e a freira mais jovem encolheu-se mais ainda. A superiora começou a falar num tom de voz baixo e ameaçador:

    – Muito bem, mocinha… agora somos só nós duas.

    Lúcia engoliu em seco. A Irmã Teodora continuou:

    – Então a senhorita gosta de desafiar os mais velhos…

    – Mas Irmã… – tentou argumentar Lúcia.

    – Cale-se!

    Lúcia retraiu-se novamente.

    – A Madre é uma pessoa muito benevolente. Por isso algumas pessoas ficam mal acostumadas. A senhorita, por exemplo, neste período de férias faz o quê?

    – Colho os ovos no galinheiro – respondeu Lúcia em voz baixa – e as vezes ajudo na cozinha…

    – As vezes?… As vezes é muito pouco! A meu ver o que lhe falta é ocupação! Trabalho! E já que a senhorita tem uma ferrenha defensora nada mais justo que a auxilie nas suas atividades. A partir de agora a senhorita vai trabalhar com essa… essa Ana! Do início da manhã até o final do dia! SEM DESCANSAR, entendeu?

    Lúcia balançou a cabeça num sinal afirmativo.

    – E não quero vê-la por aí no final de semana. A senhorita vai passar o sábado e o domingo rezando na capela. Para ver se Deus consegue colocar um pouco de juízo nessa cabeça oca! Agora vá! Suma da minha vista!

    Lúcia saiu correndo da sala e foi até seu quarto. Lágrimas escorriam por sua face rosada. Sabia que Ana teria dificuldade em aceitar que trabalhasse com ela, mas havia sido ordem da Irmã Teodora. Não poderia desobedecer. Lavou o rosto, respirou fundo, colocou um abrigo e pegou um par de botas no almoxarifado. Paramentada dirigiu-se para o galinheiro, com o coração nas mãos.

    Ana terminava de consertar o último buraco na tela e não conseguia parar de pensar na quase agressão sofrida por Lúcia. Não fosse por ela, que havia saído do galinheiro às pressas no ímpeto de alcançar a freirinha, a maldita Peninha não teria fugido por entre suas pernas e ido atrás de sua dona. Sentia-se culpada. Não sabia o que estava acontecendo dentro daquele escritório e desejou ser uma mosquinha para ouvir o que se passava. Perdida nesses pensamentos nem percebeu passos delicados aproximando-se às suas costas. Lúcia parou o observou Ana ainda agachada rente à tela. Percebeu o quanto seus ombros eram largos e fortes. E deu graças por ter interceptado o braço da Irmã Teodora. O cabelo negro estava preso num coque embaixo de um boné azul marinho.

    – Ahrãã… – tossiu Lúcia para chamar a atenção da morena.

    Ana virou-se, levantando-se de onde estava. Ao ver Lúcia ficou aliviada.

    – Você está bem? – perguntou com voz séria.

    – Estou. Tá tudo bem.

    – Que bom.

    – Ana… eu queria te agradecer…

    – Por favor, não começa com lengalenga!

    – Mas… eu realmente quero te dizer obrigada…

    – Não precisa! A culpa dessa excomungada dessa galinha haver fugido foi minha! – justificou-se Ana.

    – Mas mesmo assim…

    – Tá bom então. Não se fala mais nisso. Mas… e esse traje aí? É o que? – perguntou Ana referindo ao abrigo e botas.

    – É a minha nova roupa de trabalho…

    – Como é que é?

    – A Irmã Teodora determinou que a partir de agora eu seja tua auxiliar. – respondeu Lúcia baixando gradualmente o tom de voz e olhando para o chão enquanto falava.

    Ana coçou a cabeça incrédula. Bufou e sem dizer uma única palavra saiu a passos largos do galinheiro, deixando Lúcia para trás. Esta última correu atrás dela até o galpão do almoxarifado.

    – Ana… eu prometo que não atrapalho! Eu sei fazer um monte de coisas… eu sou bem habilidosa…

    – Mas eu trabalho sozinha. – respondeu Ana secamente.

    – Mas a Irmã Teodora mandou…

    – Ela não manda em mim! – respondeu Ana entre dentes.

    – Mas manda em mim. – disse Lúcia à meia voz.

    – Manda um cacete! Porra mesmo!!! Que velha maldita! Tá pensando o quê da vida? Que pode mandar e desmandar na ausência da Madre???!!! Merda! – gritou Ana esmurrando a porta da Kombi.

    Lúcia arregalou os olhos assustando-se com a reação de Ana. Deu dois passos para trás e duas lágrimas escorreram pelos cantos de seus olhos. Ana olhou para a jovem que parecia indefesa e acuada no canto do galpão e foi como se uma mão gigante lhe apertasse o peito. Sentiu-se mal por sua explosão de raiva. Aproximou-se de Lúcia e num tom mais calmo falou:

    – Olha só… não é nada pessoal. Só que eu não sei trabalhar com ninguém. Coisa minha, entende?

    Lúcia permanecia calada, sem responder. Ana continuou:

    – O serviço que eu faço é pesado, não é coisa pra criança.

    – Mas eu não sou criança! Eu já tenho vinte e quatro anos!

    Ana a observou incrédula. Aparentava no máximo vinte.

    – Tá me gozando, né? – retrucou Ana.

    – Não tô não? Quer ver a minha carteira de identidade?

    – Bom, não é só isso. Meu trabalho exige esforço físico, força braçal, sacou?

    – Eu sou muito forte! – argumentou Lúcia.

    – Tá… e eu sou a Lady Di…

    – Eu te provo! Joga queda de braço comigo!

    – Não torra a minha paciência, garota!

    – Tá com medo de perder, é???… desafiou Lúcia.

    Ana respirou fundo. Sabia quando encontrava uma pessoa quase tão teimosa quanto ela. Vagarosamente puxou uma mesinha de madeira e duas banquetas. Sentou-se numa delas, colocou o cotovelo em cima da mesa e indicou o lugar vago para Lúcia com um aceno de cabeça. A loirinha esboçou um sorriso e sentou-se em frente à Ana, encarando-a nos olhos e também colocando seu cotovelo na mesa. Lúcia tomou a iniciativa e segurou forte a mão de Ana. A morena sentiu o toque firme, porém suave daquela mão pequena e delicada. Por um instante Ana perdeu-se no olhar esverdeado como as ondas do mar do caribe, porém logo conectou-se à realidade, mirando o rosto de Lúcia com seriedade.

    – Você dá o ok. – disse Ana secamente.

    Lúcia balançou a cabeça e disse:

    – Agora.

    Ambas firmaram os braços e Ana surpreendeu-se com a pegada da loirinha. O que lhe parecia ser uma vitória fácil transformou-se num esforço real para manter seu braço na vertical. A princípio Ana somente segurou o braço, mas ao perceber que Lúcia impunha uma força considerável obrigou-se a forcejar para que não perdesse aquela queda de braço. Lúcia começou a transpirar e pequenas gotículas de suor se formaram em sua testa. Ana continuava impassível, porém passando certo trabalho para manter-se concentrada. Ana permitiu que seu braço fosse levado em direção ao tablado de madeira, porém num ângulo de mais ou menos sessenta graus empreendeu uma reação em sentido contrário levando o braço de Lúcia para trás. A freirinha ainda resistia. Quando Ana sentiu que sua adversária estava entregando os pontos segurou a mão de Lúcia com ambas as mãos, afrouxando o aperto e fazendo com que Lúcia também relaxasse o braço. Naquele jogo sem vencedor Ana disse:

    – Tá contratada, garota.

    Lúcia sorriu de orelha à orelha.

    – Eu não disse que dava pra coisa?

    – Vamos ver… – respondeu Ana levantando-se e servindo um copo de água gelada para ela e outro para Lúcia.

    – Obrigada. – disse a freirinha.

    – Quem te vê não diz que esse braço tem tanta força. Onde é que você treinou? – questionou a morena.

    Lúcia riu e respondeu:

    – Em casa. Meus pais são pequenos agricultores e nossas terras são numa encosta de morro. Grande parte do terreno é tão íngreme que os bois do arado não conseguem subir. Aí é a gente que tem que arar, no muque!

    – Ótimo exercício…

    – Ô, nem fale! Olha, é tão alto que a gente planta com espingarda e colhe com anzol!

    Ana riu.

    – E você… não sente falta de casa? – perguntou Ana curiosa.

    Lúcia sorriu com uma ponta de melancolia.

    – Na verdade, na verdade… as vezes eu sinto. Tenho saudades da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos. Mas ao mesmo tempo eu gosto daqui. Eu gosto da vida religiosa.

    – Eu não consigo entender isso…

    – Isso o quê? – quis saber Lúcia.

    – Esse lance de vida religiosa.

    – Como assim?

    – Ah, sei lá. Você nunca… namorou? Nunca se interessou por ninguém?

    Lúcia ficou corada e respondeu timidamente, com os olhos fixos no chão:

    – Eu não… eu acho que sempre quis ser freira. Entrei no juvenato com doze anos.

    – Doze anos?

    – É. Na verdade eu queria estudar. Meus pais não tinham condições de pagar escola. Então fui para o convento para estudar. E tomei gosto pela coisa. Um dia eu vou ser Madre!

    – Ambiciosa, ein? – riu-se Ana.

    – Determinada! – retrucou Lúcia.

    – E você nunca pensou em voltar para casa? – quis saber Ana.

    – Já… acho que todas daqui algum dia já pensaram. Mas acabei ficando. Minha vida é aqui. Mas, e tu?

    – Eu o que?

    – Veio pra cá por que?

    Ana deu uma tossidinha discreta.

    – Para trabalhar.

    – Mas porque tão longe?

    – Queria saber como é a vida no campo. Mas já que você vai me ajudar vamos parar com esse trelelê e pôr mãos à obra. – respondeu Ana desconversando e colocando-se de pé.

    Lúcia também se levantou e seguiu Ana até o galinheiro. Trabalharam nos arremates até quase dezoito horas. Enquanto Ana manuseava habilmente o alicate remendando a tela com pedaços de arame, Lúcia ia alcançando o material enquanto afagava as penas marrons da amiga quase inseparável, Peninha, que não saía de seu lado. A galinha, com sua marcha descompassada pelo defeito na perna, seguia Lúcia por todos os cantos do galinheiro. Algumas vezes a freirinha a colocava no colo e acariciava sua cabeça, e esta cacarejava faceira parecendo querer demonstrar seu contentamento pelo dengo.

    – Vidinha boa a dessa galinha, ein? – disse Ana em tom de deboche.

    – Mais ou menos. Aposto que tu ia achar ruim ter uma perna mais curta por conta de um pneu de bicicleta.

    – Essa penosa foi atropelada?

    – Foi. Por mim. – respondeu Lúcia com uma ponta de remorso. Sempre se sentia culpada quando lembrava do dia que quase matou Peninha ao passar por cima dela de bicicleta.

    Percebendo o tom desconcertado da voz de Lúcia, Ana emendou:

    – Desencana, garota. Foi sem querer.

    – Eu sei que foi sem querer, mas não deixo de me sentir culpada por isso.

    Ana enxugou o suor da testa, levantou-se, observou a freirinha com a galinha em seu colo e pensou: “tô bem arrumada… aonde eu fui me meter”, para em seguida tentar conforta-la:

    – Olha só, essa daí – disse Ana apontando para a galinha – já te perdoou há séculos, tá bom? Agora vamos tratar de agilizar o nosso serviço. E isso implica em colocar a galinha no chão…

    – Tudo bem. – respondeu Lúcia colocando Peninha no chão com delicadeza e dando um suave tapinha nas suas costas – vai pro poleiro, vai!

    Ana coçou a testa, fez um balanço com a cabeça e continuou seu trabalho, vendo a galinha afastar-se e subir no estrado de madeira da casinha, como se houvesse entendido a ordem. “Morro e não vejo tudo”, pensou Ana.

    Concluída a tarefa no galinheiro as duas retornaram, tomaram um banho e foram jantar. Estrategicamente Lúcia sentou-se na mesma mesa de Ana, de costas para a Irmã Teodora. Depois da janta Lúcia foi para seu quarto e não saiu mais de lá, até o outro dia de manhã.

    Ana também dormiu cedo. Antes de pegar no sono pensou em sua nova ajudante. Sentia uma enorme simpatia pela loirinha, embora ela conseguisse tira-la do sério por vezes. Na verdade isso a estava deixando preocupada. Conhecia seus instintos e sabia o quanto uma mulher como aquela poderia mexer com seus sentimentos. “Bobagem”, pensou, “é só uma freirinha…” e adormeceu certa de que não cairia em tentação.

    Na quinta e na sexta-feira Ana e Lúcia passaram o dia realizando reparos na estrebaria e na pocilga. Ana queria ficar o mais longe possível das dependências do convento para evitar de cruzar com a Irmã Teodora. E Lúcia se sentia aliviada por isso também. Na sexta-feira as duas estavam com suas tarefas concluídas antes das quatro horas da tarde. Num rompante Ana disse para Lúcia:

    – Escuta aqui, garota, vamos dar uma volta por aí? Ainda é cedo.

    Ao terminar a frase chegou a espantar-se, desconhecendo-se naquele convite. Não era mulher dada a estreitar laços de amizade com pessoas com as quais trabalhava. Lúcia, porem, não percebeu o titubear de Ana e respondeu com entusiasmo:

    – Vamos sim! E eu até tenho uma sugestão, já que a tarde tá muito quente.

    – Vê lá, ein? Aonde é que você vai nos meter?

    – Confia em mim… – respondeu Lúcia com um sorriso maroto.

    Lúcia conduziu Ana através da trilha de mata nativa a qual a morena já conhecia, porém não fez nenhum tipo de comentário, para não estragar a surpresa que imaginava que Lúcia queria fazer. “Lá vamos nós pro riacho”, pensou Ana. Chegando lá Lúcia apontou para a pequena queda d’água e disse:

    – Tcharãããnnn… Não é lindo?

    – Ôôô… muito lindo!

    – Vamos tomar um banho? – convidou Lúcia.

    Ana sentiu certo constrangimento, mas procurou não demonstrar. Na verdade ficou envergonhada por seus pensamentos, uma vez que a mulher à sua frente havia feito um convite na maior inocência, sem nem sequer imaginar o que se passara, mesmo que como um lampejo, nos pensamentos de Ana. E antes que a morena pudesse formular uma desculpa Lúcia desabotoou o macacão e o baixou até a cintura. Naqueles últimos dias Lúcia tinha deixado o hábito em troca daquela roupa de serviço. Para alívio de Ana a freirinha vestia uma camiseta branca por baixo e uma bermuda de algodão que lhe chegava até os joelhos. A morena respirou aliviada, pois a última coisa que precisava era ver uma jovem mulher seminua após tanto tempo sem tocar numa.

    Lúcia entrou na água rapidamente e virou-se para Ana:

    – Tu não vem?

    – Não sei… a água deve estar fria…

    – Não me venha com desculpas! Ou tu é frouxa a ponto de não agüentar uma aguinha mais fria nas costas? – provocou Lúcia.

    Ana reagiu à provocação e sussurrou:

    – Você vai ver só…

    Começou a desabotoar seu macacão de brim azul desbotado e baixou um lado vagarosamente, depois o outro, deixando a mostra um torso moreno, onde seios firmes estavam aprisionados num top de lycra azul marinho, e um abdomen bem definido parecia emergir do cós da bermuda de lycra também azul. Por um momento Lúcia ficou olhando para Ana, sem desviar os olhos, e se pegou admirando a figura que penetrava na piscina natural de água fria das pedras. Lúcia não era dada a reparar em atributos físicos, muito pelo contrário, por sua formação sempre priorizava a essência das pessoas. Mas naquela situação era impossível não ceder à tentação de admirar o belo, Lúcia não conseguia deixar de reparar em quanto Ana era bonita. Reparou nas curvas de suas coxas, onde uma musculatura firme dava sustentação ao corpo que se apoiava nas pedras da margem. Num rompante de lucidez desviou os olhos e no íntimo sua voz interior lhe censurou os pensamentos, mesmo não tendo bem consciência do que sentira frente àquela visão do que seria uma deusa em forma de gente. Fechou os olhos e pensou: “tudo o que é belo é obra de Deus! E devemos louvar a criação…”.

    Ana percebeu a mudança no semblante de Lúcia e perguntou:

    – O que foi?

    – Nada.

    – Como nada? Você ficou calada e fechou os olhos.

    – Tô rezando! – disse Lúcia.

    – Rezando?

    – É, eu costumo rezar sempre.

    – Mas dentro duma cachoeira eu nunca vi…

    – Pois eu rezo onde eu quiser, tá bom? – exaltou-se a loirinha.

    – Tudo bem, desculpe. Não tá mais aqui quem perguntou. – respondeu Ana mergulhando na parte mais profunda da água cristalina.

    Emergiu logo em seguida e ficou por um tempo a sentir a correnteza e as gotas microscópicas da queda d’água que formavam uma nuvem esbranquiçada e úmida. Nadou até perto de Lúcia que a esta altura já havia se distraído com a revoada de cerca de sete ou oito borboletas de asas amareladas que pousavam em um arbusto florido perto dali. Esta era uma das qualidades de Lúcia que encantava Ana: a capacidade de admirar as pequenas e singelas manifestações da natureza, desde os animaizinhos e as plantas até o ruído do vento por entre as copas das árvores. E Lúcia não só contemplava, mas agradecia e louvava. E essa sensação que Lúcia conseguia passar, de fazer parte daquele universo em movimento, fizera com que Ana repensasse alguns conceitos nos últimos dias. Mais que isso, conseguira perceber o quanto a felicidade é simples e pode ser encontrada nas pequenas coisas da vida. Lúcia abrira mão de muitas coisas materiais e da própria família para viver ali, no que considerava um ideal de vida, um sentido para estar no mundo. E Ana começou a se questionar o que ela própria queria para sua vida. O que seria dela quando findasse seu tempo de permanência naquele convento? O que seria dela quando fosse para longe do anjo de candura que gostava de observar borboletas?

    Ana foi trazida de volta à realidade pelo toque de Lúcia em seu braço e pelo som de sua voz:

    – Eeeeiii… Tá pensando no quê?

    – Não te interessa.

    – Ôôô, vai começar a implicar de novo?

    – Não tô implicando, só quero o direito à privacidade dos meus pensamentos. Pode ser?

    – Tudo bem. Desculpa. As vezes eu sou um pouco enxerida mesmo.

    – Tá. E me desculpa também. As vezes eu sou meio grossa.

    – Isso é verdade!

    – Mas não é essa a tua fala! Você tem que dizer: “que nada, nem tenho o que desculpar numa pessoa tão… compreensiva”…

    Lúcia gargalhou alto e seu riso ecoou pela mata cerrada. Respondeu rindo:

    – Uma freira não deve mentir!

    “Freira”, essa palavra fez Ana sentir um aperto no peito, um nó indefinido, afinal nos últimos dias tinha se habituado a chamá-la de “garota”. E “garota” parecia combinar muito mais com ela do que “Irmã”, sem dúvida alguma. Mas de fato a bela jovem que se banhava à sua frente e sorria espontaneamente para ela era a Irmã Lúcia, uma “esposa de Cristo”, como se costuma definir as religiosas. E este realmente era um concorrente desleal, pensou Ana tratando de desviar seu pensamento daquele foco.

    Ana saiu da água primeiro e se deitou de costas numa pedra ao sol. Lúcia foi sentar a seu lado. Ana pressentiu a presença da freirinha, embora permanecesse com os olhos fechados.

    – E então? Gostou daqui? – quis saber Lúcia.

    – Gostei.

    Fez-se um silêncio até que Ana continuou:

    – Mas eu acho que você não deveria vir aqui sozinha, ou em dupla, escondida da Madre.

    – Hãã… como assim?… – perguntou Lúcia se fazendo de desentendida.

    – Você sabe.

    – Sei o que?…

    Ana abriu os olhos, sentou-se e encarou Lúcia:

    – Esse lugar é lindo, mas é ermo. E é perigoso duas garotas fugirem da Madre e virem para cá sozinhas.

    – Tá falando de nós duas?… – perguntou Lúcia ainda tentando disfarçar.

    – Não.

    Lúcia baixou os olhos e disse:

    – Então vamos ter mais um segredo?

    – Pode-se dizer que sim. – respondeu Ana levantando-se.

    – E por que tu tá me dizendo isso?

    – Porque eu não quero que nada de mal te aconteça.

    Lúcia permaneceu em silêncio por instantes até dizer:

    – Obrigada.

    – Por que? – perguntou Ana.

    – Por se preocupar comigo.

    Ana permaneceu calada e estendeu a mão para Lúcia.

    – Vamos. Tá ficando tarde. – disse a morena.

    Ana praticamente içou Lúcia de onde estava sentada, e ambas se vestiram, de costas uma para a outra. Chegaram no convento praticamente na hora da janta. Novamente sentaram-se frente a frente e jantaram em silêncio, observadas de longe pela Irmã Teodora. Esta estava alegre pelo fato de haver colocado Lúcia no serviço pesado e imaginando o quanto estava incomodando Ana impondo-lhe a presença da freirinha.

    Mal sabia ela.

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