Parte III
por Fator X - LegadoO sábado se descortinou límpido e sem nuvens. Pela manhã Ana não viu nem a sombra de Lúcia. Durante o almoço perguntou-lhe discretamente onde havia estado.
– Na capela, rezando. – respondeu a loirinha.
– Toda a manhã?
– Sim.
– Mas, garota, o dia tá lindo! Vai dar uma volta de bicicleta, sem atropelar nenhuma galinha, é claro.
Lúcia nem sorriu do comentário espirituoso e respondeu baixinho:
– É que a Irmã Teodora mandou…
– E ela lá tem esse poder? Mais que isso, ela não tem o direito de privar alguém de um dia lindo como esse.
– Ela pode sim. Eu prometi obediência.
– Raio de promessa! – esbravejou Ana.
– Olha a blasfêmia! – interveio Lúcia.
– Mas rezar deve ser um ato voluntário, não imposto!
– Mas eu gosto de rezar.
– Enclausurada num dia como hoje?…
Lúcia baixou os olhos e se calou. Tratou de almoçar em silêncio, atitude respeitada por Ana que se levantou da mesa antes dela e foi para o galpão da manutenção. Ao passar pela Irmã Teodora, na porta do refeitório, não pode deixar de notar um sorrisinho sarcástico. Fechou a cara e apressou o passo.
Ana descansou um pouco depois do almoço. Por volta das duas e meia resolveu dar uma volta a pé. Vestiu uma calça jeans e uma camiseta preta de mangas curtas e uma estampa de um golfinho. O sol ardia a todo vapor, quase a pino devido ao horário de verão. Sem perceber, seus passos a levaram até a porta da capela que, como de costume, encontrava-se aberta. Galgou os degraus do pórtico e parou na soleira, observando o interior daquele reduto de orações, sentindo a temperatura agradavelmente mais fresca que na rua, decorrência das espessas paredes, do teto muito alto e da penumbra que reinava no local. Os raios do sol somente conseguiam penetrar, filtrados, através dos vitrais coloridos das janelas laterais. Assim que seus olhos se acostumaram com a pouca claridade pôde observar Lúcia ajoelhada no primeiro banco, com a cabeça baixa e as mãos postas em oração. A garota serelepe havia cedido lugar à freirinha quase austera, de hábito cinzento e véu branco a esconder-lhe as madeixas loiras.
Ana deteve-se num exame minucioso do local. Era um templo pequeno, porém com vitrais coloridos que retratavam paisagens sacras como o Batismo de Jesus, a Assunção de Maria, a agonia de Cristo no Horto das Oliveiras, São Francisco de Assis rodeado de pequenos animaizinhos, Santo Antônio com o Menino Jesus no colo, Santa Teresinha, São Miguel Arcanjo e a Ressurreição de Cristo. Atrás do altar havia duas imagens em tamanho quase natural. Uma era Maria Rainha do Céu e da Terra com sua coroa cravejada de cristais translúcidos imitando diamantes e a outra era de Cristo Rei com sua coroa ornada com gemas de cor escarlate. Bem acima do altar se abria a abóbada central da ermida, com sua cúpula aberta para o céu. O Sacrário, com sua luz púrpura sempre acesa, conferia um ar solene e místico ao local. O corredor central possuía um mosaico em toda sua extensão formando figuras circulares que se entrelaçavam e seguiam rumo ao altar. Os bancos de madeira escura tinham um odor característico de óleo de peroba.
Ana foi penetrando vagarosamente pelo corredor central, procurando não fazer qualquer ruído que pudesse quebrar o silêncio que reinava absoluto. Bem ao longe podia-se ouvir a vibração metálica e estrilada do canto das cigarras que pareciam radiantes de felicidade com o calor escaldante daquela tarde de verão.
A morena caminhou até a beirada do banco onde Lúcia estava e sentou-se a seu lado. Ao perceber sua presença Lúcia dirigiu-lhe um sorriso tímido.
– Já terminou de rezar? – perguntou Ana num sussurro.
– Quase. – respondeu Lúcia no mesmo tom.
– Eu estava passando e resolvi entrar para conhecer a capela. – justificou Ana.
– E o que achou?
– Bonita. E fresquinha.
Lúcia sorriu. Era a primeira vez que ouvia alguém se referir à pequena igreja como “fresquinha”.
– Vem aqui, eu vou te mostrar a torre do sino. – disse Lúcia levantando-se do genuflexório e seguindo para os fundos da ermida.
Uma escada circular conduzia a um pequeno espaço onde Lúcia informou que ficava o coro da igreja. Subiram por ela até um patamar elevado feito de madeira trabalhada. Havia uma pequena mureta de fora a fora que delimitava a extensão daquele segundo piso. Num canto havia uma corda grossa e com aparência de já haver sido muito manuseada, que adentrava no forro da torre. Na parte que se distanciava cerca de um metro e meio do chão estava totalmente encardida pelo suor das mãos que faziam retumbar o badalo de metal na parede ovalada de bronze.
– É a corda do sino. –disse Lúcia.
– Imaginei. Eu não pensaria que poderia ser uma forca.
– Boba. – riu-se Lúcia – Ainda bem que não é forca senão a Irmã Teodora já teria me pendurado pelo pescoço.
– Não só você… – assentiu Ana num tom divertido.
– Daqui a menos de dez minutos vai estar na hora de toca-lo! Eu adoro tocar o sino, sempre gostei.
Naquele discurso Ana conseguia identificar sua pequena ajudante, que em nada se parecia com a imagem austera daquela freira cabisbaixa que havia vislumbrado pouco antes. Lúcia explicou a Ana algumas passagens dos quadros da Via Sacra que podiam ser vistos do alto, de onde se encontravam. Também conversaram acerca dos vitrais que haviam chamado a atenção de Ana pela perfeição dos detalhes. As três horas em ponto Lúcia falou sorridente:
– Tá na hora! – e pendurou-se com agilidade na corda do sino.
A princípio parecia que a espessa tira de sisal não se moveria, porém aos poucos o movimento oscilatório do sino começou a erguer a pequena freira muito longe do chão. Como num pêndulo, o vai-e-vem da grande estrutura metálica trazia Lúcia do ar ao chão em segundos. E ela parecia se divertir muito com isso. Ana pode ver as marcas, nos joelhos muito alvos, das longas horas de permanência na mesma posição. Sentiu raiva da responsável por aquilo. Sua atenção logo foi desviada para as pernas de Lúcia que ficavam expostas cada vez que empreendia uma descida e sua saia se erguia como se pretendesse alçar vôo. Novamente uma sensação de secura na boca tomou conta dela e quando se deu por conta estava a olhar para baixo, para o altar, pedindo desculpas a Deus por seus pensamentos. Definitivamente não conseguia reconhecer-se nos últimos dias.
Em dado momento, ao tocar o chão com os pés, Lúcia soltou a corda e desequilibrou-se, sendo firmemente amparada por Ana. O contato físico deixou as duas muito próximas, olhos nos olhos. Meio sem jeito Ana soltou a freirinha e esta última sorriu-lhe espontaneamente:
– Tua vez!
– Minha vez de que? – quis saber Ana.
– De tocar o sino, ora!
– Eu não vou me pendurar nesse treco, não.
– Vai logo, não pode deixar perder o embalo – disse Lúcia empurrando Ana na direção da corda que continuava seu sobe-e-desce mesmo sem ninguém a puxa-la. – Pega bem em cima e te firma!
Ana olhou para ela e viu aquele par de pequenas e expressivas esmeraldas a lhe sorrir em expectativa. Não podia contrariá-la. Olhou para a corda e na próxima descida agarrou-se com firmeza dando um puxão para baixo a fim de manter o ritmo das badaladas. Em movimento contrário foi erguida a uma altura que quase lhe fez perder o fôlego. Olhando de baixo não parecia tão alto assim. Segurou-se com firmeza e nas subidas que se sucederam tomou gosto pela coisa. A sensação era quase que como voar. Depois de quase três minutos, que para Ana pareceram horas, Lúcia fez sinal para parar. A morena afrouxou a corda deixando seu corpo pender ainda um pouco mais ao sabor de sua nova experiência. Quando o movimento tornou-se mais lento e quase já não se ouvia mais o sino Ana largou a corda de sisal. Nesta feita se deu conta que suas mãos ardiam um pouco, vermelhas pelo atrito com a corda.
– Não liga que logo, logo passa. – disse Lúcia percebendo o olhar de Ana para as próprias mãos. – E então? O que achou?
– Demais, garota! Muito legal!
– Eu não disse?
– Quando é a tua escala de novo nessa tarefa? – quis saber Ana.
– Por que? Arrumei uma ajudante?
– Quem sabe.
Ambas riram.
– Lúcia, vamos dar uma volta.
– Eu não posso.
– Mas ninguém precisa ficar sabendo.
– Mas eu sei…
– Drama de consciência agora? Cadê a macaca escaladora de árvores e a fugitiva para banhos de córrego? E além do mais não tem viva alma neste convento, acho que saíram todas!
– Muito bonito, ein? Querendo me fazer cair em tentação!
– E surtiu efeito?
Lúcia olhou para baixo, colocou as mãos na cintura e fez um trejeito facial que deixou Ana na expectativa.
– Tá bom. Mas só uma voltinha. Depois eu volto para a capela.
– É isso aí, garota! – disse Ana sorrindo de satisfação.
– Ana, tu tem um sorriso tão bonito… deverias sorrir com mais freqüência.
– Só sorrio quando tenho bons motivos.
– Ora, tá me chamando de palhaça, é?
– Interprete como quiser. – respondeu a morena descendo pela escadaria circular.
Ao chegarem na porta da capela Ana saiu primeiro e olhou em ambas as direções. Tudo na mais perfeita paz e sossego.
– Tá limpo. Pode sair. – disse Ana pegando Lúcia pela mão e saindo numa corrida em direção ao pomar.
– Vai mais devagar… eu tenho as pernas mais curtas…
– Te mexe, garota! Deixa de ser molenga! – respondeu Ana continuando a correr.
– Tô mexendo… o mais que posso… – respondeu Lúcia já ofegante.
Ao dobrarem na curva do caminho Ana parou de correr.
– Quer… me… matar…? – esbravejou Lúcia.
– Por causa de uma corridinha à toa? Tá brincando.
– Mas olha o tamanho das tuas pernas e olha o das minhas!
Ana coçou o queixo com uma expressão debochada:
– É… quase pernas de anão.
Lúcia fez uma cara de brava e Ana saiu correndo, sendo perseguida de perto por Lúcia que bufava. Ana parou à sombra do abacateiro onde Lúcia gostava de subir e sentou-se em uma de suas raízes. Lúcia sentou-se a seu lado, já demovida da idéia da perseguição.
– Ufa! Cansei. – disse Ana – Foi-se o tempo em que eu corria dez quilômetros com um pé amarrado nas costas!
– Ana…
– O que?
– Qual a tua idade? – perguntou Lúcia curiosa.
– Trinta e três. Por que?
– Nada. Só curiosidade. É que não parece.
– Eu ter a idade que tenho?
– É.
– Você é que não parece ter vinte e quatro! Tem cara de quem recém saiu das fraldas.
Lúcia riu, tomando a colocação como um elogio e completando em tom de brincadeira:
– É que as mulheres da minha família não demonstram a idade…
– Aah, tá.
Ana reparou que as marcas nos joelhos de Lúcia já estavam sumindo. A loirinha sentou-se de costas para Ana e encolheu as pernas, abraçando-as com ambas as mãos. Sem cerimônia encostou as costas em Ana, apoiando-se nela como se fosse um encosto de cadeira.
– Ana…
– O que é?
– Tu reparou que as nuvens tem umas formas bem legais? – disse Lúcia olhando para o céu e apontando na direção do azul infinito – Olha aquela ali, parece uma galinha.
Ana sorriu da brincadeira inocente.
– Ô garota, tá a fim de comer figos maduros?
– Com certeza! – respondeu Lúcia levantando-se num pulo e estendendo a mão para Ana.
Novamente o toque macio da mão de Lúcia fez Ana ficar desconcertada. Tratou de levantar logo e soltar a mão quente que a havia içado de seu confortável banco de raiz de árvore. A morena colocou a mão no bolso de sua calça e tirou seu canivete para descascar os frutos maduros e suculentos. Ana descascava os frutos de casca enegrecida pela maturação e alcançava para Lúcia a polpa adocicada, que a loirinha devorava com prazer.
– Vê se não vai lambuzar a roupa! – disse Ana – Quer ficar com a prova do crime estampada na saia?
– Tem razão! – disse a freirinha inclinando o corpo bem para frente a cada bocada nas frutas suculentas.
Ana observava Lúcia atentamente. De fato seus trejeitos a encantavam, desde a maneira como sorria franzindo o nariz até seu modo de saborear o doce daquelas frutas, verdadeiro néctar dos deuses. Sentindo-se observada Lúcia questionou:
– Tá olhando o quê?
– Nada. – respondeu Ana desviando o olhar.
Lúcia continuou entretida na degustação dos figos e na conversa sobre assuntos dos mais variados com Ana. Quando percebeu já era mais de cinco horas da tarde.
– Preciso voltar para a capela! – disse atônita.
– Calma. Vamos lá.
Novamente com a cobertura de Ana a fugitiva retornou para a sua incumbência daquele final de semana. Às seis horas foi Ana quem tocou o sino da capela sob o olhar divertido de Lúcia, para logo em seguida dirigir-se ao galpão da manutenção, antes que as demais Irmãs viessem fazer as orações da noite.
Na hora da janta Lúcia sentou-se com Ana e cochichou:
– Tô empanturrada de figos… acho que não vou conseguir comer nada.
– Faz uma média e serve bem pouquinho.
Lúcia sorriu e voltou com seu prato ostentando duas folhas de alface e um ovinho de codorna cozido.
– Quanta discrição… – debochou Ana.
– Não enche. – respondeu Lúcia fazendo uma careta de brincadeira.
Depois da janta as duas se recolheram aos respectivos aposentos. Lúcia foi dormir cedo, porém Ana virou-se na cama de um lado para outro sem conseguir conciliar o sono. Alguma coisa a estava perturbando e roubando-lhe o sossego. E a morena temia bem saber o que era…
O domingo descortinou-se outro dia de sol forte. Ana havia custado a conciliar o sono, desta forma acabou acordando quase após a hora do término do café. Lavou o rosto, vestiu-se e entrou no refeitório em tempo de servir uma xícara de café com leite e pegar uma fatia de pão com queijo colonial, antes das Irmãs responsáveis pela copa recolherem a mesa. Não havia mais ninguém ali. Depois de degustar seu desjejum caminhou até a capela e espiou para dentro. O local também estava vazio. Estranhou o fato de Lúcia não estar ali, porém lembrou-se do jogo de vôlei das manhãs de domingo. Caminhou vagarosamente até a pequena quadra, provavelmente mais para tentar ver onde Lúcia estava do que para participar do jogo, uma vez que na ausência da Madre preferia evitar o contato com a Irmã Teodora. De longe começou a ouvir burburinho de vozes e reconhecendo uma delas apressou o passo.
– Mas, Irmã… – tentava argumentar Lúcia.
– Eu já lhe disse o que deve fazer. E agora. – dizia a Irmã Teodora com o dedo em riste para a freirinha.
As demais Irmãs assistiam a cena de olhos arregalados. Percebia-se que as mais novas chegavam a prender a respiração, enquanto que as mais velhas limitavam-se a manifestar descontentamento com a atitude da substituta da Madre com os olhos, sem se atrever a ir contra suas ordens. A Irmã Celestina chegou a tentar conciliar:
– Mas Irmã Teodora, é domingo… deixa a menina participar do jogo, depois ela vai para a capela…
– Eu sei o que estou fazendo Irmã! E se eu disse que não, é não. – respondeu Irmã Teodora em tom austero.
A freira mais velha calou-se. Neste momento as freiras perceberam a aproximação de Ana e começaram a cochichar entre si, evidenciando contentamento com a chegada da morena. Irmã Teodora retesou-se e antes que qualquer uma pudesse falar disparou:
– Tu não precisas jogar hoje conosco, o time está completo.
– Como completo se a senhora está me mandando embora? – disse Lúcia com ambas as mãos na cintura.
A substituta da Madre parecia que ia pular no pescoço de Lúcia e simplesmente disse:
– Já para a capela. Agora.
A loirinha saiu dali contrariada e lançou um olhar entristecido para Ana ao passar por ela. Ana falou secamente para a Irmã Teodora:
– Eu não vim jogar, só estou caminhando. Ou a senhora vai me proibir? – respondeu virando-se e caminhando na direção do convento, sem dar tempo para Irmã Teodora formular qualquer tipo de resposta. Ana chegou a sentir a fuzilada na nuca do olhar da freira.
– Mas sem essas duas não há possibilidade de jogo! – retrucou a irmã Margarida, que do alto de seus 65 anos sabia que as coisas não podem ser levadas tão a sério assim.
– Mas vai haver! – respondeu a Irmã Teodora.
– Mas sem a minha presença. Estou com dor na minha artrite hoje. Vou para a capela rezar um pouco. – disse Irmã Margarida caminhando para longe dali, sem dar maior atenção à cara feia da Irmã Teodora.
– Bom, eu também acho melhor rezar um pouco hoje. – disse a Irmã Celestina, sendo acompanhada pela Irmã Sebastiana que enfiou o braço nela para amparar sua caminhada de volta ao convento.
O que se seguiu foi um desertar de freiras. A platéia retirou-se em noventa por cento e do time de Lúcia só ficaram as mais novas temendo represálias da Irmã Teodora. Até mesmo as Irmãs Eunice e Diva acabaram desistindo da partida. Irmã Teodora bufava de raiva. Com meia dúzia de freiras e juvenistas acabou considerando inviável a realização da recreação daquela manhã de domingo.
Irmã Teodora caminhou até a capela e encontrou seu “rebanho” reunido a rezar. Espantou-se ao ver que no último banco Ana também estava sentada quieta. Passou por ela e perguntou baixinho, entre dentes:
– O que é que tu estás fazendo aqui?
– Rezando. É proibido? – respondeu Ana fingindo um tom inocente.
Irmã Teodora nada respondeu. Respirou fundo e foi até a frente do altar. Olhou para todas e começou a falar baixo e pausadamente, tentando respeitar o ambiente da igrejinha.
– Muito bem… muito me alegra ver nossas Irmãs com tamanha devoção. Certamente Deus ouvirá as preces de cada uma. Fico tão comovida com essa manifestação de religiosidade, onde as Irmãs preferem recolher-se em oração a desenvolver uma atividade recreativa, que pretendo me engajar nessa aura de fé. Decidi que hoje, além das orações, faremos jejum. Pão e água. E hoje à noite nossa alimentação será somente uma canjinha rala, que aliás eu mesma prepararei, desde a escolha da galinha em nosso galinheiro. – e lançou um olhar desafiador para Lúcia, sabendo de seu carinho por Peninha.
“Peninha”, pensou Lúcia em desespero. Chegou a se mover no banco de madeira, mas foi segura pelo braço, com discrição, pela Irmã Celestina que estava a seu lado. Irmã Teodora continuou:
– Ninguém sai da capela até a noite.
“Ninguém o cacete!”, pensou Ana, “se essa louca me trancar aqui eu pedalo a porta”. Mas para alívio de Ana a porta da ermida permaneceu aberta. Irmã Teodora confiava em sua autoridade e tinha certeza que ninguém a desobedeceria. Depois de alguns minutos da saída da superiora Ana discretamente se retirou da capela.
Perto do meio dia a Irmã Teodora trouxe um cesto com uma fatia de pão puro para cada Irmã e uma jarra d’água que pode ser consumida a vontade. Lúcia estava muito ansiosa, preocupada com Peninha. A Irmã Teodora percebeu que Ana não estava mais lá, porém não deu maior importância, uma vez que o refeitório estaria fechado e não seria servida nenhuma refeição além de pão, na capela. A superiora percebeu, com certo ar de satisfação, a angústia no olhar de Lúcia. “Essa juventude precisa de limites”, pensava Irmã Teodora, “ninguém mais sabe obedecer… por isso o mundo está perdido desse jeito”.
Às dezenove horas a substituta da Madre dirigiu-se à capela e disse em tom baixo:
– Podemos nos dirigir ao refeitório para a ceia.
As Irmãs seguiram em silêncio. Lúcia sentia o coração bater na boca. Quando lhe estenderam um prato com uma canja de galinha muito rala, mais água e sal do que qualquer outra coisa, ela sentiu um nó na garganta e seus olhos se encheram de lágrimas. Depositou o prato à sua frente e as lágrimas caíram dentro dele, misturando-se com a parca porção de galinha desfiada. Lúcia levantou-se e saiu correndo do refeitório sob o olhar surpreso das demais. Irmã Teodora não tentou detê-la.
Lúcia correu até o galinheiro e sob a luz alaranjada do por de sol chamou por Peninha.
– Pi, pi, pi, pi… Peninha! Pi, pi, pi… Peninha…
E nem sinal de sua galinha de estimação. Lágrimas espessas rolaram por seu rosto e molharam a parte da frente do hábito cinzento. Instintivamente Lúcia correu até o galpão da manutenção e encontrou Ana deitada sob a Kombi, fazendo alguns ajustes necessários.
– Ana! Ana! – chamou Lúcia aos prantos.
Ao ouvir aquela voz conhecida Ana saiu de baixo do veículo e levantou-se de imediato. Seu macacão estava sujo de óleo, assim como suas mãos. Segurava um alicate e seus cabelos estavam presos por uma tira de elástico preto, porém alguns fios desgrenhados estavam colados em sua nuca suada. Ao vê-la Lúcia correu em sua direção e abraçou-se a ela soluçando. Ana ficou estática, sem esboçar reação. O toque daquele corpo pequeno soluçando de encontro ao seu deixou-a sem saber o que fazer. Com os braços entreabertos Ana ficou pensando em como proceder. Foi invadida por um sentimento de afeto incondicional por aquela criaturinha aparentemente indefesa, chorando em seus braços. Deixou cair o alicate e a envolveu num abraço apertado.
– Tudo bem… tudo bem… fica calma.
Em princípio Lúcia não conseguia falar tamanha a enxurrada de lágrimas. Carinhosamente Ana levantou o rosto de Lúcia e limpou seus olhos com um lençinho de papel que tinha no bolso do macacão. Admirou aqueles olhos esverdeados, a pouco mais de um palmo de sua boca, e sentiu um ímpeto de beijar cada um deles. Ana sentiu o peito apertado ao ver o choro sentido de Lúcia.
– Calma… o que foi que houve? – perguntou calmamente.
– A Pe…Pe…Peninha…
– O que é que tem a Peninha?
– A Ir… a Irmã… a canja… – e novamente irrompeu em choro.
– Calma… me fala com calma o que houve. – pediu Ana carinhosamente.
Lúcia respirou fundo tentando controlar o choro.
– A irmã Teodora… fez… fez uma canja com… com… a Peninha…
– Não fez não. – respondeu Ana afetuosamente.
– Fez sim… eu vi…
– Viu o que?
– A canja…
– E reconheceu o que? A cor das penas?
Lúcia afastou-se de Ana e fitou-a com tristeza:
– Vai debochar?
– Eu não tô debochando. Eu só tô tentando te dizer que não foi com a Peninha que ela fez a canja.
– Como é que tu sabe? Ela sumiu, não tá no galinheiro.
Ana deu uma risadinha com o canto da boca e pegou Lúcia pela mão, levando-a até seu quarto. A galinha gorda e de penas cor de telha estava confortavelmente instalada na guarda da cama, como se fosse um poleiro. E dormia a sono solto.
– Peninha! – exclamou Lúcia despertando a galinha de seus sonhos com uma terra lavrada e repleta de suculentas minhocas.
Ana riu da cena. Com o susto a galinha fez cocô na roupa de Lúcia quando esta a suspendeu no colo.
– Olha aqui, se essa galinha cagar na minha cama é você que vai limpar! – disse Ana com ambas as mãos na cintura.
Lúcia largou a galinha de volta na guarda da cama e correu até Ana, literalmente pulando em seu pescoço e lhe sapecando um sonoro beijo na face. À Ana não restou outra alternativa a não ser pegar a freirinha no ar para que ela não se estatelasse no chão do quarto.
– Obrigada, obrigada, obrigada! – disse Lúcia já de pé, em frente à Ana.
– Obrigada por que?
– Por salvar a Peninha, ora bolas!
– O mérito é dela. Até que essa galinha é simpática.
Lúcia gargalhou.
– Porque é que tu pensou em traze-la pra cá? – quis saber Lúcia.
– Por que eu conheço gente mal intencionada pelo olho. – respondeu Ana – E aquele tribufu de hábito queria te atingir de alguma maneira.
– Mas por que? Eu não fiz nada pra ela. – respondeu Lúcia.
– Você existe. E certas pessoas tem inveja das outras pelo simples fato de serem como são.
– Eu não entendo isso… Não é possível. A Irmã Teodora é uma freira como eu…
– Olha aqui, Lúcia, tem gente boa e gente ordinária em tudo quanto é lugar. E um convento não é exceção. Abre os olhos, garota!
– Mas não devia ser assim…
– Mas é. – respondeu Ana secamente.
Lúcia ficou pensativa e continuou:
– Sabe, pensando bem desde que eu cheguei aqui ela pega no meu pé mesmo. Eu só não sei porque. Eu sempre procurei fazer as minhas obrigações… e ser simpática.
– E onde é que você cumpria as suas… obrigações.
– A Madre me colocou para trabalhar com ela na secretaria, pois disse que a minha letra era muito bonita para fazer os registros nos livros do convento e da escola.
– Bingo! – disse Ana.
– O que? Eu não entendi.
– Quem fazia isso antes?
– A Irmã… Teodora. – respondeu Lúcia pensativa.
– E com a sua chegada, mesmo sem intenção, você a afastou da Madre.
– Mas o que é que isso tem a ver?… – questionou Lúcia inocentemente.
Ana respirou fundo e coçou a cabeça:
– Nada não… coisas da vida.
Ana bem sabia qual a relação que fora abalada. Por ser uma pessoa introspectiva sempre conseguiu observar as pessoas e as situações à sua volta. Observar mais do que falar, esse sempre fora seu lema. E isso a habilitara a captar certos gestos e olhares imperceptíveis aos demais. E parecia que, realmente, não se enganara a respeito da Irmã Teodora.
Afastando tais pensamentos de sua cabeça perguntou a Lúcia:
– Tá com fome?
– Tô roxa de fome!
– Então vem aqui.
Ana havia disposto uma toalha xadrez sobre uma mesinha de madeira no galpão. Sobre ela havia um saquinho com salgadinhos e uma embalagem de papel contendo oito enormes pastéis de carne e azeitonas pretas. Havia refrigerante gelado numa sacola térmica e algumas cervejas. Ana também havia providenciado uma cuca de uva e duas barras de chocolate ao leite.
Os olhos de Lúcia se acenderam.
– Tcharãããnnnn…. – disse Ana – Após um dia de oração nada melhor do que cair no pecado da gula!
– Aaaaii, bate na boca! – respondeu Lúcia – Mas tem muita coisa aqui!
– E quem disse que é só pra gente? Vai lá dentro e discretamente avisa a Irmã Celestina e a Irmã Sebastiana.
– Tá bom – disse Lúcia – colocando um salgadinho de frango na boca.
– E seja esperta, garota! Vê se vai dar bandeira. Olha que o tribufu tá de olho.
– Deixa comigo.
– Ô Lúcia…
– O que é?
– Disfarça o ar de satisfação. Tenha a decência de aparentar pelo menos, fome.
– Tá bom… – riu-se a loirinha.
Lúcia saiu e não levou mais do que meia hora para retornar.
– Tudo certo! Elas já vem vindo. – disse a freirinha alegremente.
Nesta feita a escuridão da noite já permitia que se vislumbrasse o brilho das primeiras estrelas. Primeiro veio a Irmã Celestina. Depois de cerca de dez minutos veio a Irmã Sebastiana. As quatro sentaram-se em torno da mesa e saborearam avidamente a refeição improvisada. Somente Lúcia bebeu refrigerante, as demais tomaram cerveja.
– A gente teve que disfarçar… – disse a Irmã Sebastiana com ar de sapeca. – Não sei nem se isso não é pecado – e riu-se.
– Mas Deus entende, Irmã… Deus entende… – justificou Ana.
Conversaram até quase dez horas e depois recolheram-se aos respectivos aposentos. Antes de sair Lúcia ainda disse à Ana:
– Obrigada do fundo do meu coração…
– Não precisa agradecer, já disse.
– Mas eu quero agradecer assim mesmo. E o que a gente vai fazer com a Peninha? – quis saber Lúcia.
– Olha, ela vai ficando por aqui mesmo. Acho que é um bom esconderijo.
– Também acho! – concordou Lúcia sorridente – Para ela e para nós!
Dessa vez foi Ana quem teve de sorrir concordando.
– Boa noite, então. – disse Lúcia afastando-se.
– Boa noite.
Ana tomou um banho quase frio. Deitou-se e ficou pensando em Lúcia. Tentava racionalizar o que havia sentido quando a pequena loira a abraçara soluçando. Tentava se convencer de que fora somente solidariedade. Porém seus sensores internos teimavam em sinalizar outra coisa.
Lúcia e Ana se encontraram no refeitório na manhã seguinte, uma segunda-feira que havia amanhecido com um céu nublado e propenso a chuvas. Lúcia já estava devidamente paramentada com um abrigo velho para ajudar Ana. Combinaram de atender o pedido da Irmã Sebastiana que havia se queixado de alguns vidros quebrados na rouparia e da dobradiça da porta que fazia um barulho ensurdecedor cada vez que era empurrada para trás. Durante a manhã ficaram entretidas na troca dos vidros e no conserto da porta, que além das dobradiças emperradas estava fora de nível, o que dificultava o abrir e fechar.
Na hora do almoço Lúcia e Ana estavam conversando distraidamente, instaladas numa mesa próxima à porta, quando perceberam a aproximação de passos conhecidos ecoando no corredor de acesso ao refeitório. Era a Madre que havia voltado de sua viagem. “Graças a Deus”, pensou Ana. Logo atrás da Madre Lídia, como uma sombra, vinha caminhando a Irmã Teodora, com uma expressão de contentamento pela volta da Superiora. Ao avista-las quase na entrada do refeitório a Madre dirigiu-se a ambas sorridente:
– Bom dia! – disse afetuosamente.
– Bom dia! – responderam ambas quase em uníssono.
A Madre neste momento percebeu os trajes de Lúcia e questionou:
– Que roupas são essas, Irmã?
Lúcia sorriu sem graça e a Irmã Teodora interveio:
– Melhor deixar a conversa para mais tarde. A senhora deve estar com fome, Madre.
Antes que a Madre se virasse Ana respondeu:
– Pois é, me arrumaram uma ajudante…
A Irmã Teodora fuzilou Ana com o olhar.
– Como assim? – quis saber a Madre.
– Ora, a senhora não contou à Madre, Irmã? – perguntou Ana dirigindo-se à Irmã Teodora.
– Eu pretendia deixar a Madre almoçar antes de incomodá-la com os assuntos de rotina do convento – respondeu a Irmã Teodora secamente.
– Depois do almoço quero as duas no meu gabinete. – disse a Madre.
– Sim senhora. – respondeu Lúcia.
– Tudo bem. – concordou Ana.
– Estaremos aguardando – retrucou a Irmã Teodora em tom austero.
A Madre dirigiu-lhe um olhar sério e calou-se. Para não deixar a assessora em uma situação constrangedora preferiu não falar o que lhe veio à mente. Ao afastar-se disse baixinho no ouvido da outra:
– Minha conversa com elas é particular. Depois conversamos nós.
De longe Lúcia e Ana observaram a mudança da fisionomia da Irmã Teodora que ficou rubra e desconcertada, embora tenha se controlado para não demonstrar seu sentimento.
Quando a Madre se retirou Lúcia e Ana a seguiram. Elas já haviam terminado o almoço e apenas aguardavam a Madre. Adentraram na saleta da Superiora e se instalaram no sofá indicado pela mulher mais velha.
– Muito bem, creio que podemos começar nossa conversa. – disse a Madre.
Ana ficou calada e Lúcia começou seu relato, apresentando sua versão dos fatos. Ana percebera que durante o almoço, mesmo a contragosto, a Madre ouviu de Irmã Teodora o que havia ocorrido em sua ausência. Quando Lúcia por fim proferiu: “e isso é tudo”, ocultando obviamente o fato de Peninha estar viva e escondida no quarto de Ana, a Madre calou-se e observou as duas figuras à sua frente. Por instantes ficou a analisa-las como se tentasse penetrar nos pensamentos delas. Neste momento Ana ficou um pouco incomodada e mexeu-se na cadeira. Lúcia mantinha os olhos no chão. A Madre respirou fundo e falou pausadamente:
– Parece que vocês duas estão se dando bem…
– Estamos mesmo, né Ana? – concordou Lúcia.
– É. – disse Ana.
– Mas Irmã… – continuou a Madre – …a senhora tem outras atribuições neste lugar. A partir de agora pode voltar a fazer o que vinha fazendo, afinal o trabalho de Ana é bastante pesado…
– Mas eu tô gostando, Madre! – interferiu Lúcia – E gostaria de continuar a ajuda-la, afinal minhas aulas só começam em março!
Ana continuava calada.
– Mas parece que Ana não está muito interessada em tê-la como ajudante, não é mesmo Ana?
– Tanto faz. – respondeu Ana tentando não deixar transparecer seu interesse, mesmo que em parte inconsciente, de que a loirinha continuasse a passar os dias com ela.
– Como tanto faz? – disse Lúcia olhando com cara enfezada para Ana – Eu tenho te ajudado direitinho!
– É… tem mesmo – respondeu Ana fingindo um tom de indiferença.
– Então! Sua mal agradecida! Madre, eu vou continuar trabalhando com essa cabeça dura sim!
Ana deu de ombros. A Madre questionou:
– E então Ana? O que me diz?
– Tá. Pode ser. Ela realmente manda ver no batente.
Lúcia a fitou com o rabo do olho, irritada.
– Bom… nesse caso… Irmã, tem certeza do que está dizendo? – perguntou a Madre.
– Tenho!
– Então está bem. É só isso. Podem se retirar.
– Com licença. – disse Ana levantando-se para sair.
– Até logo Madre – disse Lúcia.
Ao atingirem o corredor Lúcia esbravejou colocando as mãos na cintura:
– O que é isso, ein? Além de me deixar contar toda a história sozinha ainda fica me esnobando, é?
Ana sorriu com o canto da boca e respondeu simplesmente:
– V’ambora, garota!
Lúcia continuou sua tagarelice caminhando atrás de Ana que acelerou o passo e fez a loirinha quase correr para acompanha-la. Passaram o resto do dia entre a rouparia e a lavanderia.
Ao saber que Lúcia continuaria trabalhando com Ana a Irmã Teodora sorriu de contentamento, pensando que a Madre tivesse mantido sua determinação de impor um trabalho mais forçado à Lúcia, por seu desacato. Mal sabia ela do desejo de Lúcia. E a Madre resolveu que o melhor seria de fato deixar as coisas como estavam. E assim, sabiamente o fez.
O mês de janeiro findou e o de fevereiro passou muito rápido. Lúcia e Ana passavam a maior parte do tempo juntas. Quando não estavam trabalhando, estavam realizando alguma atividade recreativa aos finais de semana. Ana gostava da companhia de Lúcia e esta se sentia bem com Ana. Sentia-se protegida e amparada. O eventual bom humor de Ana, quase sempre camuflado por seu temperamento sério e contido, deixava-se extravasar na presença de Lúcia, que com sua simplicidade conseguia roubar sorrisos daqueles lábios que pareciam ter dificuldades para estampa-los, mas que quando o faziam seriam capazes de iluminar a noite.
Nas ocasiões dos contatos telefônicos da Madre com Denise, para dar um retorno do trabalho de Ana, a freira somente tecia elogios merecidos ao desempenho e a postura da morena. Este fato alegrou Denise, pois sentia um afeto genuíno pela amiga.
Quando março começou e Lúcia voltou para seus afazeres na escola, onde lecionava para as séries iniciais no turno da manhã, à tarde fazia sua faculdade de História e a noite auxiliava na secretaria da escola, o contato das duas ficou limitado aos finais de semana e a rápidas conversas nas horas das refeições.
Para qualquer pessoa mais atenta seria fácil perceber a mudança de humor que se procedeu em Ana. Esta passou a ficar mais taciturna e reservada.
E com Lúcia não foi diferente. A pequena freira em algumas ocasiões ficava com o olhar vago, como se sentisse falta de algo. Sentia-se saudosa da presença de Ana.
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