Fanfics sobre Xena a Princesa Guerreira

    O outono chegou trazendo temperaturas mais amenas e um colorido ocre amarelado à vegetação. Tal paisagem cedeu lugar ao inverno, com suas cores cinzentas e introspectivas. Era assim que Ana vinha se sentindo.

    No primeiro dia das férias de inverno Lúcia colocou seu abrigo de serviço e apresentou-se no refeitório com as vestimentas de “ajudante de Ana”. A morena ao entrar no amplo salão não conseguiu conter um sorriso de orelha a orelha ao ver aquela figura a lhe sorrir de mãos na cintura:

    – Isso são horas? Já faz vinte minutos que eu estava te esperando! Tu não trabalha mais como antes, não? Tá ficando preguiçosa?

    Ana a fitou de cima a baixo e questionou:

    – O que é isso?

    – Minha roupa de trabalho, ora! Esqueceu que escravo quando descansa rola pedras? Tô de férias na escola e na faculdade e resolvi te dar uma mãozinha!

    O coração de Ana pulou de felicidade. A morena chegou a se assustar com a sua reação. Mas resolveu que não pensaria muito naquele assunto. Trataria de aproveitar aquela companhia que lhe era tão querida.

    Os dias que se seguiram tiveram um caráter mais de brincadeira e diversão do que de trabalho propriamente dito. Não que as atividades realizadas fossem diferentes das habituais, mas sim pela alegria de estarem partilhando momentos juntas.

    No segundo dia em que trabalhavam juntas, logo pela manhã, Lúcia encarou Ana com uma carinha sapeca e disse:

    – Tu sabe que dia é hoje?

    – Dezesseis. Dezesseis de julho, por quê? – disse Ana.

    – Eu tô de aniversário hoje!

    – O quê??? – disse Ana.

    – Tô de aniversário! – repetiu Lúcia.

    – E posso saber porque a senhorita não me disse ontem?

    – Pra que?

    – Ora, pra que? Pra dar tempo de fazer a Peninha encher uma dúzia de balões pra festa! – respondeu Ana debochando – É óbvio que é para dar tempo de escolher um presente pra ti!

    – Mas não precisa nada não… Eu não ligo pra essas coisas.

    – Mas eu ligo. Eu gosto de ao menos dar uma lembrançinha pros meus amigos do peito.

    – Me dá um abraço apertado, então! – disse Lúcia abrindo os braços efusivamente.

    Meio sem jeito Ana abraçou-a pela cintura e deu dois beijos em suas faces.

    – Feliz Aniversário! – disse sorridente – Te desejo tudo de bom… Você realmente merece!

    – Ai, não me faz ficar sem jeito…

    – Mas merece mesmo, garota! Agora vamos trabalhar.

    Logo após o almoço Ana foi para seu quarto, com a desculpa esfarrapada de querer descansar um pouco. Sorrateiramente escapuliu até o centro da cidadezinha e entrou numa loja de variedades. Queria escolher um presente para Lúcia. Olhou, olhou e não sabia o que comprar. De repente sua atenção voltou-se para uma prateleira que ostentava uma grande quantidade de bichinhos de pelúcia. Encantou-se com um urso branco, de nariz vermelho e cara meiga. O urso era grande, devia medir quase cinqüenta centímetros de altura, gordo, sorridente e macio. Trajava um colete vermelho com uma gola dourada, combinando com a gravata borboleta no mesmo tom. Tinha os olhos escuros e quando se apertava sua pata ele dizia: “I love you, baby”. Ana sorriu e pegou o urso da prateleira, pedindo à balconista que o embrulhasse para presente. Voltou logo para o convento, tratando de entrar escondida de Lúcia. Mal havia tido tempo de colocar o pacote sob a cama em seu quarto e ouviu uma batida na porta.

    – Quem é? – perguntou Ana.

    – Sou eu, a Irmã Celestina. – respondeu a freira baixinho, como se quisesse fazer segredo.

    Ana abriu a porta e a freira entrou.

    – Ana, hoje a Irmã Lúcia está de aniversário e nós vamos fazer uma surpresa pra ela!

    – Pois eu soube do aniversário por ela, somente hoje pela manhã! – respondeu Ana.

    – Na hora da janta vamos cantar “Parabéns a Você” com um bolo lindo que eu vou fazer agora de tarde! E vamos enfeitar o refeitório! Mas pra isso a gente precisa que a distraias até as sete e meia. Pode ser?

    – Claro. Eu arrumo algo pra gente fazer sim. Pode deixar comigo.

    – Então está combinado.

    Naquela tarde Ana inventou de arrumar a sala da manutenção. Resolveu organizar todas as prateleiras, incluindo vidros de parafusos, porcas, pregos, grampos e tudo o mais. Com certeza Lucia e ela ficariam ocupadas por um bom tempo. Antes de começar sugeriu que Lucia trouxesse sua roupa limpa para tomar um banho no banheiro do setor de manutenção mesmo, para não chegarem atrasadas para a janta. E Lucia, sem desconfiar de nada, concordou. Por volta das sete e vinte ambas estavam prontas e Ana ainda enrolou por mais dez minutos até que finalmente foram para o refeitório. Lucia estranhou que o refeitório estava escuro. Porém quando cruzou o marco da porta as luzes se acenderam e um enorme bolo estava colocado no centro da mesa principal, com uma vela com o número 25 faiscando serelepe. Todas cantaram “Parabéns a Você” e Lúcia ficou radiante. Foi cumprimentada por todas após apagar as velinhas. Ana foi a última a abraça-la e ao faze-lo Lúcia lhe perguntou sorridente:

    – Tu sabia de tudo isso, não sabia?

    – Huuummm… Sabia!

    – E não me contou!

    – Estragaria a surpresa!

    – É verdade… – concordou Lúcia – Muito obrigada.

    Depois da janta Lúcia partiu o bolo e o distribuiu para todas. Quando as demais foram se recolher somente Ana ficou com Lúcia no refeitório.

    – Vamos até o meu quarto? Eu tenho uma coisa pra te dar… – disse Ana.

    – Outra surpresa?

    – Pode ser…

    – Aaaiii… Assim fico mal acostumada! Vou querer fazer aniversário todos os dias!

    Ana riu-se. Elas foram caminhando vagarosamente até o quarto de Ana. Esta ajoelhou-se e tirou o embrulho de baixo da cama. Os olhos de Lúcia se arregalaram ao ver o pacote colorido.

    – Pra mim???

    – Não. Pra Irmã Diva! Que faz aniversário sei eu quando!

    Lúcia deu um tapinha no braço de Ana e pegou o presente. Com a expectativa de uma criança abriu o pacote e seus olhos brilharam ao ver o urso branco. Olhou para o presente incrédula e encantada.

    – É lindo!!! – disse efusiva abraçando o urso macio contra o peito – Eu adorei!!!

    – Que bom. Fico feliz.

    – Ana… eu acho que nunca ganhei um presente tão lindo…

    – Para com isso, garota! Não exagera.

    Lúcia abraçou Ana pelo pescoço sapecando-lhe um beijo estalado na face.

    – Muito obrigada! É realmente o presente mais lindo que eu já ganhei!

    Ana limitou-se a sorrir e retribuiu o abraço e o beijo. Lúcia ainda abraçada a seu presente disse:

    – Agora eu vou pro meu quarto. Amanhã a gente tem serviço pela frente, não é mesmo?

    – É. – respondeu Ana.

    – Boa noite então…

    – Boa noite. E feliz aniversário de novo.

    – Obrigada. – respondeu Lúcia sorrindo de orelha a orelha e correndo na direção do convento.

    Ana acompanhou a freirinha com o olhar até que esta desaparecesse de seu campo de visão. Sorriu para si mesma lembrando da expressão de felicidade de Lúcia. De fato acertara na escolha do presente.

    Em seu quarto Lúcia admirava seu novo amigo. Colocou-o sentado no centro de sua cama e atraída pelo adesivo na patinha descobriu que seu mascote falava. Ao escutar o “I love you, baby” sorriu para si mesma emocionando-se com o gesto carinhoso de Ana. Adormeceu abraçada ao seu novo amigo.

    Naquela quarta-feira pela manhã a Madre havia pedido para Ana recolher lenha para a caldeira, uma vez que o fornecedor havia atrasado a entrega e se fazia necessário mante-la funcionando. As baixas temperaturas daquele mês de julho obrigavam a utilização de água quente para quase tudo, sob pena de se ter as extremidades enregeladas pelo frio intenso.

    Lúcia animou-se com a atividade atípica. Auxiliou a encilhar a pequena mula, que vivia ali há bastante tempo, na carrocinha de madeira enquanto Ana afiava a lâmina do machado e pegava a motosserra. A bordo do pequeno veículo de tração animal as duas partiram em direção ao capão de mata nativa com o objetivo de arrumar uma porção significativa de lenha seca.

    Ao penetrarem na parte mais cerrada da vegetação começaram a catar troncos de arvores, pedaços de toras e arbustos. Alguns eram muito grandes e exigiam o corte pela motosserra ou pelo machado. O tempo estava seco havia alguns dias e, embora a umidade natural do inverno prevalecesse naquela região, os pedaços de madeira estavam adequados para a queima.

    As trabalhadoras planejaram almoçar naquele local e retornar ao convento somente no final da tarde com a carroça repleta e lenha suficiente empilhada no mato para somente ser recolhida no dia seguinte.

    Perto do meio dia as duas estavam famintas e trataram de estender uma toalha xadrez esverdeada embaixo de uma árvore frondosa cuja sombra convidava ao descanso. A Irmã Celestina, sabedora do intuito de Lúcia e Ana de só retornar no final da tarde, havia preparado uma cesta de vime com uma farta refeição para as duas. Havia arrumado cuidadosamente dois pratos no fundo da cesta, dois copos descartáveis, talheres e guardanapos de papel. Num pote plástico havia preparado um frango frito com farofa. Outro pote com arroz e um terceiro com folhas de alface e pequenos tomatinhos de jardim. Ainda havia um pote com pastéis de carne e ovos cozidos e alguns pedaços de pizza de atum. De sobremesa havia um bolo de laranja com cobertura de côco ralado e um pote contendo pedaços de um saboroso pudim de leite. Uma garrafa com suco de laranja e uma garrafa térmica para o café da tarde completavam o farnel. Lúcia abriu a cesta e seus olhos brilharam. Ana se divertiu com a expressão de contentamento da loirinha.

    – Tem comida aqui para um batalhão! – disse Lúcia divertida.

    – Acho que a Irmã Celestina conhece o eleitorado dela! No teu caso, é claro! – provocou Ana.

    – Siiiimmm… Obviamente a “senhora come pouco” vai ficar só olhando, não é mesmo? – respondeu Lúcia fazendo uma careta e puxando o cesto para o seu lado.

    – Nada disso! – respondeu Ana puxando o cesto de volta – Eu vou te dar apoio moral!

    Ambas tiveram de sorrir. Almoçaram e recostaram-se um pouco no tronco da árvore, dando vazão à preguiça que era natural após uma refeição daquelas.

    – Ana…

    – O que é?

    – Tu vai ficar até quando aqui?

    – Por que a pergunta? – quis saber Ana curiosa.

    – Por nada… só pra saber… curiosidade, sei lá.

    Fez-se um silêncio e Lúcia continuou:

    – Na verdade eu queria saber se tu tá gostando daqui.

    – Estou.

    – Vai ficar bastante tempo então…

    – Pode ser…

    – Pode ser?

    – É. Pode ser.

    – Mas tu não tem certeza? – insistiu Lúcia.

    – A única certeza que se tem é que se vai morrer um dia.

    – Credo! Vira a boca pras costas! – disse Lúcia.

    – Mas é verdade.

    – Eu sei que é, mas não precisa falar!

    – Onde está a tua fé na vida eterna, Irmã Lúcia? – provocou Ana.

    – Eu tenho fé na vida eterna… mas é que eu não gosto de pensar na morte…

    – Ninguém gosta.

    – Pois é… mas eu fico angustiada quando penso que posso nunca mais ver uma pessoa que eu amo… – conjeturou Lúcia pensativa.

    – Mas a vida é assim.

    – Eu não me imagino sem os meus pais, os meus irmãos… – continuou Lúcia.

    – Mas você está longe deles.

    – Mas se eu decidir posso ir para casa, e vê-los.

    – Está pensando em ir? – questionou Ana.

    – Não…

    – Então qual o motivo da angustia?

    – Ana… Tu me confundiu! A gente tava falando de outra coisa!

    – É?

    – É! Eu perguntei se tu ias ficar aqui por bastante tempo.

    – E isso te interessa? – perguntou Ana encarando Lúcia.

    – Interessa.

    – E porque?

    – Ora! Porque eu gosto de ti!

    A resposta espontânea pronunciada por aqueles lábios sorridentes e isentas de segundas intenções, pelo menos conscientes, fizeram Ana ficar desconcertada e desviar o olhar. Nos últimos meses Ana vinha se sentindo estranha em relação à Lúcia. Sentia-se atraída pela freirinha, mas sempre que tais sensações afloravam em seu consciente tratava de expulsa-las como se faz com um intruso indesejável. Seu senso de ética não lhe permitia dar forma aos pensamentos que, muitas vezes em sonho, lhe afloravam incontroláveis. E isso a deixava deveras perturbada em certas ocasiões. E sentia um aperto no peito que não sabia definir ao certo o motivo, ou não se permitia definir…

    – Ana… ANA!

    – Ãããhhh? O que?

    – Tá com a cabeça aonde? Eu tô falando contigo! – disse Lúcia.

    – Desculpa. Me distrai. O que foi que você disse?

    – Que eu gosto de estar contigo.

    – Ah, que bom… eu também. – disse Ana.

    Lúcia sorriu encantadoramente. Ana não conseguiu desviar os olhos daquelas gemas cristalinas e esverdeadas como duas esmeraldas. Novamente foi tomada por um sentimento de aperto no peito. Também se sentia mal em não contar para Lúcia a verdade sobre sua estada naquele lugar. Era como se não confiasse naquela criatura encantadora, pior ainda, como se traísse sua confiança ao ocultar uma parte tão dolorida de sua vida. Ana encarou Lúcia e tomou uma decisão: era hora de Lúcia saber o motivo verdadeiro de ela estar ali. Respirou fundo, baixou os olhos e ensaiou mentalmente o que dizer:

    – Lúcia…

    – O que? – respondeu a freirinha sorridente.

    – Eu preciso te contar uma coisa…

    Pelo tom de voz de Ana, Lúcia ergue-se um pouco e encarou a morena.

    – Coisa séria?

    – É. – respondeu Ana – Eu preciso te contar o porque estou aqui. Mas é preciso que você guarde em segredo.

    – Eu juro, ó! – disse a loirinha cruzando os dedos sobre a boca e dando dois beijinhos, como que selando seu juramento.

    – Bom… – suspirou Ana, continuando – …eu estou aqui porque fui mandada para cá.

    – Mandada?

    – É.

    – Mas por quem.

    – Pela Justiça.

    – Como assim? – perguntou Lúcia.

    – Eu cumpro pena aqui. Trabalho comunitário.

    – Pena? Mas o que foi que tu fizeste?

    – Homicídio culposo.

    – O que? Tu matou alguém?

    Ana baixou os olhos antes de responder apenas com um sinal afirmativo de balançar de cabeça.

    – Eu não acredito. – disse Lúcia – Tu não faria isso! Eu te conheço! Tu salvou a Peninha! Não serias capaz de matar ninguém.

    – Mas matei. Indiretamente, mas matei. – disse Ana com um tom amargurado na voz.

    – Por favor, me conta essa história desde o começo. – pediu Lúcia.

    – Já faz algum tempo… eu estava com alguns amigos num bar. A gente tava bebendo, jogando conversa fora… enfim, fazendo nada num fim de noite de sexta-feira. Na saída fui eu que dirigi o carro para uma amiga e a gente sofreu um acidente. Um caminhão me deu uma fechada e eu saí da pista. O carro capotou e eu só acordei no outro dia com alguns hematomas, um corte no braço esquerdo, um galo na testa e só. Eu tava de cinto, mas… a minha amiga não tava… e morreu na hora.

    – Mas foi um acidente! Tu não teve culpa.

    – No hospital fizeram exames… eu tinha bebido. A condenação foi inevitável.

    – Tu tava bêbada?

    – Não… mais ou menos… na verdade eu havia bebido sim. Mas eu era a mais sóbria do grupo! Porra mesmo! Maldita hora que eu peguei aquele carro! – disse Ana escondendo o rosto com as mãos enquanto as lágrimas escorriam por suas faces.

    Lúcia passou o braço sobre o ombro de Ana, aconchegando-a junto a seu peito e abraçando-a. A morena retribuiu o abraço e chorou compulsivamente.

    – Calma… tá tudo bem agora… já passou… – disse Lúcia tentando consola-la.

    – Não passou, não. Não tem um único dia em minha vida que eu não me lembre daquele maldito caminhão na minha frente. E o pior é que ninguém acreditou… Ninguém costuma acreditar nos “bêbados” mesmo. E quem poderia confirmar a história morreu.

    – Ana, não adianta remoer o passado. Ele não volta. É preciso ter fé em Deus e confiar a Ele o futuro.

    Ana sorriu melancolicamente. Quem dera tivesse um décimo da fé de Lúcia. No entanto Ana sentiu-se protegida e amparada na aparente fragilidade daquele abraço. Quisera que o mundo se acabasse naquele momento e pudesse morrer fitando aquelas pérolas esverdeadas tão de perto. Lúcia secou com seu dedo indicador uma lágrima da face de Ana. Afastou-se suavemente, encarou a morena de frente e disse com voz doce:

    – Ana, para mim tu continuas sendo a pessoa boa que eu conheço… o ser humano capaz de se comover com o sofrimento alheio. Pára de te torturar com uma culpa do passado que em nada vai mudar o teu presente.

    Ana assentiu com a cabeça e esboçou um sorriso, mesmo que triste. Havia conseguido contar uma parte da verdade de sua vida para aquela criaturinha que gostava tanto. A outra parte não se achou com coragem de falar. E muito mais que isso, havia conseguido chorar. Raramente chorava, ainda mais perto de outra pessoa. Sentiu-se aliviada.

    Seguiu-se um breve período de silêncio até que Lúcia levantou-se num pulo e disse animadamente:

    – Vamos lá, dona preguiçosa! Tem muita lenha pra juntar ainda!

    Ana se levantou de onde estava e trataram de colocar mãos à obra. Naquela época do ano o dia era curto e o sol se punha antes das dezoito horas, sendo que depois das quatro horas da tarde já fazia um frio considerável, muito embora as duas estivessem bem aquecidas pelo trabalho braçal.

    Com a carrocinha entupida de lenha retornaram para o convento e combinaram de pegar o restante no dia seguinte, em três ou quatro viagens.

    Descarregaram a lenha no depósito ao lado da caldeira e passaram no galpão da manutenção, após soltarem a mula no pasto, para guardar a carroça em seu devido lugar. Ainda faltava cerca de uma hora para a janta e resolveram matar um pouco de tempo enquanto Lúcia convencia Ana a lhe ensinar a jogar xadrez, depois de haver descoberto por acaso que a morena possuía um tabuleiro com peças de madeira esculpidas por ela mesma.

    – Senta aí. – disse Ana para Lúcia indicando a beirada de sua cama enquanto se posicionava numa cadeira e colocava o tabuleiro entre elas, sobre uma mesinha dobrável.

    Ao se sentar Ana deixou escapar um gemido ao mover o ombro direito para frente.

    – O que foi? Tá com dor? – perguntou Lúcia.

    – Não é nada não. É só um mau jeito que eu dei.

    – Mas tá doendo desde quando?

    – Desde agora a tarde. Mas logo passa. – respondeu Ana.

    Lúcia levantou-se e se posicionou atrás de Ana, dizendo:

    – Tira a jaqueta e baixa o macacão.

    Ana olhou para ela franzindo uma sobrancelha:

    – Pra que?

    – Faz o que eu tô mandando. Me deixa ver o teu ombro.

    – Você não é médica, garota!

    – Mas faço uma massagem maravilhosa…

    – Não precisa.

    – Não tô perguntando se precisa. Tô mandando tirar a jaqueta.

    – E você lá manda em mim? – respondeu Ana desaforada.

    – Agora estou mandando! – disse Lúcia com ambas as mãos na cintura e uma cara enfezada.

    “Petulante”… pensou Ana, mas resolveu fazer o que sua interlocutora ordenava com tamanha firmeza. Tirou a jaqueta sentindo uma fisgada nas costas. Em seguida desabotoou o macacão de brim e baixou a parte de cima. Aproveitou e tirou a blusa de lã ficando apenas com uma camiseta de algodão bem justa. Lúcia ficou de pé atrás dela. Esfregou as mãos uma na outra e em seguida pousou-as com firmeza, mas delicadamente nas costas doloridas de Ana. Iniciou movimentos circulares na musculatura tensa. Ana sentiu o contato daquela mão pequena e quente e não pode evitar um arrepio que lhe desceu da raiz dos cabelos até o dedão do pé. Chegou a ficar constrangida quando os pêlos de seus braços arrepiaram-se, como que delatando aquela estranha sensação de prazer. O toque firme fazia com que gemesse baixinho, enquanto sentia a musculatura dolorida sendo gradativamente aliviada pela pressão forte daqueles dedos pequenos que sabiam o que estavam fazendo. Ana, de olhos fechados, deixou-se levar pela enxurrada de sensações que aqueles toques lhe despertavam. Em dado momento Lúcia fez com que Ana encostasse a parte de trás da cabeça em seu peito e passou a massagear sua face circulando os olhos, o nariz e a boca, e fazendo pressão em alguns pontos específicos. Ana estava completamente absorta e entregue àquelas mãos. Na verdade estava entregue àquela pequenina mulher. Naquele momento, provavelmente pelo efeito relaxante da massagem e da proximidade física, permitiu-se admitir o que vinha sentindo há algum tempo. Deu-se conta que, mais do que amizade e admiração por Lúcia, sentia amor. E desejo.

    Por sua vez Lúcia também percebia algumas mudanças em seus sentimentos. Antes ansiava por concluir seus estudos o quanto antes e preparar-se para assumir maiores responsabilidades na Ordem e na vida religiosa. Porém, de uns tempos para cá, pensava mais nos finais de semana onde poderia passar algum tempo a mais com Ana. Gostava de estar perto dela, de olhar sua figura imponente, de provocar o seu sorriso e as suas caretas de reprovação. Ansiava por ouvir sua voz dizendo: “olha o que tá fazendo, garota!”. Enfim, seus dias vinham se resumindo na espera de rever Ana. E inocentemente não sabia conceituar aquele sentimento, nem tão pouco imaginar o que se passava no coração e na consciência de Ana. Naquele momento, massageando aquelas costas bem definidas e passeando pela superfície daquela pele morena como quem se perde num mar de aconchego, Lúcia não conseguia pensar em mais nada além da sensação da textura da pele sob suas mãos. Sentia o cheiro dos cabelos de Ana e passou a mão suavemente por entre as madeixas escuras, aproveitando para massagear o couro cabeludo.

    O toque nos cabelos fez a pobre Ana novamente arrepiar-se por completo, mais que isso, sentiu um ímpeto de tomar Lúcia nos braços e perder-se naqueles olhos esverdeados. No entanto foi despertada daquele estado de quase inconsciência por um beijo estalado em sua face, que a fez sobressaltar-se.

    – Prontinho! Tu vai ver como a minha massagem é milagrosa! Daqui a pouco não terás mais dor nenhuma. – disse Lúcia alegremente.

    Ana não conseguia pronunciar palavras, apenas fez um sinal afirmativo com a cabeça. Lúcia continuou:

    – Eu vou lá tomar um banhozinho antes da janta. Tô precisada! – disse dando mais um beijinho na face de Ana, que permanecia estática. – Tô indo. Até daqui a pouco!

    E saiu serelepe quarto afora deixando Ana sentada pensativa, ainda com a sensação daquelas mãos mágicas passeando por sua pele. A tomada de consciência dos próprios sentimentos deixou Ana com o peito apertado por um nó. Sabia que não tinha a mínima chance de ter a pequena loira em seus braços, e que jamais seria sua mulher, somente amiga. Tal certeza fez uma lágrima escorrer por seu rosto até o canto esquerdo de sua boca, fazendo-a sentir o gosto de sal daquela gota, verdadeira pérola de amargura. Enxugou a lágrima com a mão e foi tomar um banho, na esperança de que a água levasse embora aquela sensação de desconforto e de angustia. Tivera muitas emoções no mesmo dia. Falar sobre seu passado e perceber-se totalmente apaixonada por um amor impossível eram sentimentos que a estavam deixando quase sem ar. Vestiu-se e foi para o refeitório jantar. Durante a refeição falou pouco e quando questionada por Lúcia respondeu simplesmente que era cansaço.

    Nos dias seguintes Ana esquivou-se como pôde de Lúcia, deixando a pequena freira sem entender o que se passava. No final de semana Ana tratou de sair do convento indo até as cidades vizinhas para conhece-las e só retornando à noitinha, quando todas já haviam se recolhido, inclusive Lúcia.

    No domingo à noite, já aquecida em seus cobertores, Lúcia ouviu o ronco do motor da Kombi de Ana cruzando o portão de entrada do convento. Sua vontade era de levantar-se e ir conversar com Ana. No entanto preferiu tentar conciliar o sono, já que Ana havia saído sem mesmo dizer-lhe para onde iria, deixando-a à sua espera por todo o final de semana. “O que será que eu fiz?”, questionava-se a freirinha enquanto lágrimas também escorriam de suas faces rosadas. Não entendia o repentino afastamento de Ana. A morena não a destratava, porém esquivava-se como que por encanto. Lúcia chegou a pensar que poderia haver um dedo da Irmã Teodora nessa história, porém descartou tal possibilidade uma vez que a mesma havia viajado a pedido da Madre e estava fora há mais de uma semana. Definitivamente não tinha idéia do que poderia estar acontecendo, apenas sentia-se mal, muito mal e entristecida.

    Na segunda-feira reiniciaram as aulas e Lúcia retomou sua rotina normal. Ana passou a fazer suas refeições nas horas que sabia que Lúcia não estaria no refeitório. E só Deus sabe o quanto lhe custou aquela decisão. Chegou a pensar em sair do convento, mas ainda tinha mais um tempo de trabalho comunitário a cumprir e não sabia se estaria a salvo caso retornasse para sua cidade.

    A semana se arrastou tanto para Lúcia quanto para Ana. Na sexta-feira pela manhã Lúcia decidiu que iria conversar com Ana para esclarecer o que se passava. Aproveitaria o final de tarde para isso uma vez que só teria duas cadeiras nas primeiras horas da tarde. Estava decidida a entender o que se passava.

    Retornou para o convento por volta das dezesseis horas e foi informada pela Madre que Ana estava trabalhando no galpão da manutenção, lixando e pintando umas prateleiras de madeira. Dirigiu-se para lá com passos decididos. Entrou no galpão e avistou Ana manuseando a lixadeira elétrica e com uma máscara no rosto para evitar a inalação da poeira da madeira. Aproximou-se e parou a seu lado. Quando a morena percebeu sua presença parou imediatamente o que estava fazendo e tirou a máscara do rosto. Antes que pudesse dizer qualquer coisa Lúcia disparou:

    – Ana, escuta aqui, o que é que tá acontecendo? Pelo amor de Deus, o que foi que eu fiz?

    – Na… nada. Não fez nada. – gaguejou Ana.

    – Então por que é que tu estas me evitando?

    – Eu não tô te evitando. Só tô com muita coisa pra fazer. – tentou argumentar Ana.

    – Tá… agora conta outra!

    – Que outra, garota? É isso aí e pronto! – disse Ana asperamente.

    – Eu não entendo… – respondeu Lúcia sentindo seus olhos se encherem de água.

    Ana permaneceu calada e retomou o que estava fazendo.

    – Ana… – pediu Lúcia com a voz entrecortada pelas lágrimas – Por favor… me fala o que está acontecendo… por favor…

    Novamente Ana largou a máscara e respondeu em tom mais brando, porém seco:

    – Nada, garota. Não esquenta. É encucação minha.

    – Mas me fala o que é… talvez eu possa te ajudar.

    – Já falei que é coisa minha.

    Lúcia olhou para Ana e não conseguiu controlar a enxurrada de lágrimas que teimava em brotar de seus olhos verdes. Ana sentiu novamente aquela mão pesada a lhe apertar o peito. Não suportava ver o sofrimento daquele pequeno ser que amava. No entanto não poderia contar o que se passava. Esmurrou a mesa de madeira e esbravejou:

    – Porra mesmo! Droga de vida! – E saiu porta à fora para que Lúcia não a visse chorar novamente.

    Pegou sua carteira e saiu do pátio caminhando rápido em direção à cidade. Lúcia sentou-se num banco de madeira e ficou durante muito tempo pensativa, enquanto as lágrimas lhe queimavam as faces. Anoiteceu e Lúcia não conseguiu jantar. Percebeu que Ana não havia retornado. Por volta de onze horas da noite respirou fundo e tomou uma decisão: iria atrás de Ana. Não passaria mais nenhum dia sem saber o que se passava, nem que precisasse espremer a morena para lhe extrair a verdade. Colocou um casaco grosso sobre o hábito e desceu a escadaria do convento silenciosamente, para que ninguém notasse sua escapadela, tomando o rumo do centro da cidadezinha.

    Não foi difícil para Lúcia localizar as pegadas da morena, afinal naquele lugarejo remoto pouca coisa havia para se fazer num final de semana à noite. E poucos lugares permaneciam abertos naquele adiantado da hora. Lúcia percorreu a praça principal na esperança de encontrar Ana sentada em algum dos bancos envernizados em volta do monumento central. A praça estava vazia e não havia viva alma nas ruas além de alguns poucos cães que viviam perambulando pela cidade e eram alimentados pelos comerciantes locais e por alguns moradores mais benevolentes. A igreja matriz estava com as portas fechadas desde as vinte horas, após a missa. Lúcia continuou caminhando. Percorreu algumas vielas até que avistou a luz do bar que costumava reunir os notívagos, os jogadores de bilhar, os pinguços, as moças de vida fácil e os arruaceiros de plantão. De dentro do bar vinha uma música animada e o burburinho de vozes era entrecortado pelo som seco das tacadas de bilhar e pelos olés ou vaias conforme a precisão das jogadas. Lúcia aproximou-se cautelosa. Não acreditava que Ana pudesse estar ali, porém por via das dúvidas, resolvera checar o local. Para sua surpresa, ao parar em frente à porta de acesso, viu Ana com um bastão de bilhar na mão preparando-se para encaçapar a bola sete. Deu a tacada e acertou em cheio. Os que estavam em volta vibraram e Ana pegou um copo que estava na borda da mesa, entornando o líquido amarelado de uma vez só. Lúcia não gostou do que viu. Sentiu vontade de tirar Ana dali a tapas. Ficou muito indignada com a cena, principalmente quando uma moça de vestido preto e minúsculo se aproximou por trás de Ana abraçando-a pela cintura e colocando-lhe nos lábios um cigarro aceso, no qual Ana deu uma longa tragada enquanto olhava a fumaça se desvanecendo enquanto subia em direção ao teto.

    Sem titubear Lúcia irrompeu no recinto. Frente a entrada de uma freira no local os freqüentadores fizeram um silêncio sepulcral, olhando para ela sem entender o que se passava. Afinal, o que estaria fazendo uma freira naquele lugar? A música, cujo som era um misto de saracoteio e chiado, era o único som que se ouvia naquele momento. As vozes se calaram por completo e Ana não acreditava no que via. Não era possível que Lúcia houvesse tido a ousadia de vir atrás dela, pensava.

    – Deseja alguma coisa, Irmã? – perguntou com cordialidade o bodegueiro.

    – Desejo sim! – respondeu Lúcia colocando as mãos na cintura.

    E antes que ela continuasse a falar Ana caminhou rapidamente em sua direção tomando-a pelo braço e a conduzindo para a rua. Instantaneamente o burburinho de vozes reiniciou-se no interior do bar, contrastando com a música e o som dos copos no balcão.

    – O que é que você pensa que tá fazendo, garota???!!! – esbravejou Ana entre dentes, ainda com Lúcia segura pelo cotovelo.

    – Eu vim te buscar! A gente precisa conversar!

    – Conversar um cacete!!! Desde quando eu te dei a liberdade de vigiar os meus passos? O que é que você tá pensando???

    – Tu tá machucando o meu braço. – disse Lúcia.

    Ana caiu em si e soltou o braço de Lúcia.

    – Desculpa. Eu não quis te machucar. – disse mais brandamente.

    – Vamos para casa. – pediu Lúcia.

    – Eu vou pra onde eu quiser, você não manda em mim.

    – Ana… tu bebeu…

    – Bebi! E daí? Fumei também, porra! Só não trepei ainda! Não posso? Vai proibir, “Irmã Lúcia”?

    Lúcia ouvia o discurso de Ana dando o desconto das doses a mais de bebida que ingerira.

    – Ana… vem pra casa comigo. Por favor… – pediu Lúcia com suavidade.

    O tom de voz de Lúcia fazia com que Ana se sentisse cada vez pior. Preferiria que ela a insultasse ou lhe batesse na cara. Mas não. Lúcia era doce como uma fada, incapaz de ofender a quem quer que fosse. Ana se virou e começou a andar em direção ao convento sendo seguida por Lúcia que continuava tentando conversar:

    – Ana… o que é que está havendo? Me fala, por favor… Eu sou tua amiga. Confia em mim. Não me deixa com esse sentimento de ter feito algo de errado.

    Ana continuava caminhando a passos largos, calada. Lúcia exaltou-se com a indiferença da morena:

    – AFINAL O QUE É QUE ESTÁ HAVENDO??? – gritou Lúcia – O QUE É QUE TU ESTAVA PROCURANDO NAQUELE LUGAR? BEBER ATÉ CAIR??? ESQUECER O PASSADO??? DIVERSÃO??? SEXO??? O QUE É QUE TU QUERES AFINAL??? O QUE É QUE TU PROCURAS???

    Frente à explosão de Lúcia, Ana estancou e virou-se para ela respondendo em tom sofrido, baixo e grave:

    – Eu não tô procurando nada… Eu tô fugindo!

    – Fugindo? Do quê? – quis saber Lúcia.

    Ana calou-se e aproximou-se dela ficando com o corpo quase colado ao da loirinha. O efeito do álcool acabou liberando o que Ana tentava a muito custo conter em seu íntimo. E como as águas de uma represa que se rompe Ana envolveu Lúcia pela cintura puxando-a fortemente de encontro a seu corpo. Com a outra mão segurou a nuca da pequena indefesa e olhou-a nos olhos respondendo a sua pergunta:

    – Eu fujo disso. – disse Ana enquanto capturava a boca de Lúcia num beijo sôfrego e ardente.

    Lúcia ficou totalmente sem ação. Limitou-se a sentir a boca de Ana de encontro à sua. O calor dos lábios da morena e o movimento de sua língua invadindo aquela boca que nunca havia sido beijado antes fazia com que Lúcia permanecesse imóvel. Ana, por sua vez, sentia como se estivesse sendo levada a um universo paralelo onde só existissem as duas, nada mais. A princípio a boca de Lúcia permaneceu estática, no entanto, aos poucos, foi correspondendo àquele beijo, de uma forma tímida, mas amorosa. Ana foi percebendo que gradativamente a língua de Lúcia procurava a dela. A boca ansiava em ser capturada e os lábios exigiam ficar unidos aos dela. Nenhuma das duas saberia precisar o tempo de duração daquele ósculo tão desejado por Ana. Nem tão pouco Ana havia suposto que pudesse ser correspondida, como o foi. Ambas sentiram o coração bater na boca e as pernas bambas. Ambas também sentiram a umidade que brotava das próprias entranhas, com a diferença de que Ana sabia perfeitamente do que se tratava e para Lúcia era uma sensação até então desconhecida. Ana sentiu o calor do corpo de Lúcia espremido junto ao seu e cada curva se moldava como se houvessem sido feitas uma para a outra. A noite estava fria, como o eram as noites de agosto, porém Lúcia sentia seu corpo pegando fogo. Não pensava em nada, nem em seus votos, nem em suas crenças, nem em pecado. Somente sentia um calor prazeroso vindo daquela boca que a possuía e daquele corpo que a aprisionava junto a si. Desejou ficar ali para sempre.

    Quando finalmente as bocas se separaram elas se fitaram nos olhos, caladas. Ana, num lampejo de lucidez, afastou-se de Lúcia dando um passo para trás. Levou ambas as mãos à cabeça, pousando-as nos cabelos negros e olhando para o céu. Fechou os olhos e suspirou. Lúcia permanecia olhando fixamente para Ana, incapaz de esboçar qualquer movimento, ainda com a sensação do prazer causada pelo beijo e pelo contato do corpo de Ana. Sentia-se flutuar.

    Ana virou-se vagarosamente e seguiu para o convento, sem conseguir pronunciar uma palavra sequer. Não sabia o que dizer. Realmente havia bebido um pouco, porém sabia perfeitamente o que havia feito, e mais, o que havia sentido. Lúcia caminhava um pouco atrás dela, também em silêncio total, tentando ordenar os pensamentos e entender o que havia ocorrido. Cada qual se recolheu ao seu respectivo quarto no mais absoluto silêncio.

    Ana, com os olhos fixos no teto, pensava: “meu Deus…o que foi que eu fiz? E agora?”, e não encontrava respostas. De fato não sabia o que fazer de sua vida agora que havia provado o gosto daqueles lábios e sentido o toque daquele corpo. Não conseguia imaginar o que lhe aguardava o dia de amanhã. Sentia-se totalmente perdida.

    Lúcia, por sua vez, também fitava as tábuas do teto e pensava nas sensações de momentos atrás. O que mais a assustava era que não havia sentido repulsa por haver sido beijada por uma mulher. Muito pelo contrário: havia gostado. Aliás, nunca havia sido beijada antes e jamais imaginara que pudesse ser tão… quente. Não sabia nem se deveria pedir perdão a Deus, ou se confessar, ou fazer penitência, ou quem sabe sucumbir novamente ao prazer de um beijo… Também sentia-se totalmente perdida.

    No dia seguinte Lúcia e Ana encontraram-se de passagem no refeitório. Ana estava muito desconcertada e não conseguiu encarar Lúcia nos olhos. De fato não sabia o que fazer, nem o que falar. Ao passar por ela murmurou um “bom dia” quase que inaudível, com os olhos fixos no chão, obtendo uma resposta no mesmo tom.

    Naquele dia Ana trabalhou no prédio da escola, no entanto não cruzou com Lúcia pelos corredores no turno em que a mesma lecionava. A freirinha estrategicamente se esquivou o quanto pode do setor onde Ana estava. À tarde Lúcia foi para a faculdade e a noite trabalhou na secretaria da escola até bem tarde. Não chegou nem mesmo a jantar naquele dia. Não queria encontrar Ana. Precisava pensar.

    Ana também tratara de afastar-se de Lúcia. Também necessitava de um tempo para pensar.

    A semana transcorreu sem que elas tivessem oportunidade de trocar mais do que dois ou três olhares e tímidos “ois”. No sábado Ana havia combinado com a Madre que trabalharia o dia todo na manutenção de alguns problemas surgidos no forro do prédio da escola.

    Lúcia, por sua vez, passou a manhã recolhida à capela, em oração. Estava de fato confusa. Sua cabeça parecia um turbilhão tamanha quantidade de sensações novas que vinha experimentando na última semana. Desde aquele fatídico beijo não conseguia mais pensar em outra coisa. Conjeturou acerca de todas as suas crenças até então. E o que mais a angustiava era a indefinível sensação de prazer que o contato com a boca de Ana lhe causara. Ao invés de repulsa havia sentido prazer. E era exatamente esse sentimento que a deixava angustiada e confusa. Pensava em toda a sua trajetória até aquele dia. Lembrou-se dos seus votos e do propósito que tinha desde a adolescência de entregar sua vida à vocação religiosa e a servir ao próximo. E de repente tudo isso vinha sendo questionado por causa de um único beijo. E dado por uma mulher! Quanto mais rezava e pedia que Deus a iluminasse, mais se sentia confusa. Por que Ana havia feito aquilo? Ela era mulher. Porque raios então a havia beijado? Será que Ana já havia beijado alguma outra mulher antes? Por que ela? Tais perguntas ecoavam em sua mente e não a deixavam um segundo sequer em paz. Vinha se esquivando de Ana o quanto podia, mas não podia fazê-lo para sempre. Precisava conversar com ela para esclarecer algumas coisas e tentar entender o que se passava. Resolveu que não a procuraria, no entanto pararia de se esquivar. E quando a oportunidade surgisse conversaria com ela.

    Ana, por sua vez, também se encontrava numa situação de angustia e de conflitos internos. Recriminou-se mais de mil vezes por ter feito o que fizera. “Eu não tinha o direito…”, pensava. No entanto estava feito. Não podia voltar o tempo. Angustiava-a pensar no que estaria se passando na cabeça e no coração de Lúcia. Estaria ela a odiá-la? Estaria sentindo repulsa pelo que fizera? Não, repulsa não. Ana sentira que Lúcia havia correspondido ao seu beijo. Ela era uma mulher vivida e sabia perfeitamente quando uma pessoa se entregava ao prazer. E Lúcia havia se entregado à sensação daquele beijo sim. Disso Ana tinha certeza. Mas daí por diante tudo eram dúvidas. A única certeza que Ana tinha naquele momento era de que nunca, jamais, havia sentido nada igual em sua vida. Nunca uma boca lhe fora tão desejada. Nunca um contato, mesmo que tão efêmero, despertara uma reação tão forte nela quanto aquele. Se deu conta que, pela primeira vez em toda a sua vida, estava de fato amando. Já tiveras inúmeras mulheres em seus braços, porém nenhuma delas foi capaz de fazer com ela sentisse aquela explosão interna de sentimentos, como o fizera a pequena Lúcia. Nunca seu corpo e sua alma haviam desejado tanto uma pessoa. Nunca ansiara tanto estar perto de alguém, mesmo que fosse somente para observar o encanto dos sorrisos e dos pequenos gestos do cotidiano. Sentia muito mais do que paixão, sentia de fato amor. Na verdade jamais se imaginou numa situação como aquela: estar à mercê de duas pequenas pérolas esverdeadas que conseguiam dela o que bem entendiam. Era impossível não ceder aos encantos e aos pedidos daquela criaturinha encantadora. E toda a angustia de Ana se resumia no fato de que poderia tê-la magoado com sua atitude e que jamais a teria como desejava: como sua mulher. Sentia seu peito doer e uma sensação enorme de impotência a invadia. Ana era uma mulher bela, cujo porte sedutor sempre colocara a seus pés as mulheres que havia desejado, bastava manifestar interesse e seus belos olhos azuis e sorriso enigmático sabiam como arrastar qualquer uma para a cama. Mas com Lúcia era diferente. Ana a queria sim, mas para partilhar mais do que a cama, desejava partilhar a vida com ela. E se dava conta de que isso jamais seria possível. Restava-lhe ao menos a certeza de que devia se desculpar com Lúcia. Ana precisava ao menos sentir recuperado o respeito que tinha por aquela pessoa tão especial. Não suportaria saber que ela a considerava indigna de confiança. Como desalento lhe bastaria a certeza de um imenso amor que nunca seria correspondido. Decidiu que procuraria Lúcia para uma conversa definitiva.

    Na hora do almoço, no refeitório, quando Ana serviu seu prato, percebeu que Lúcia já estava sentada numa mesa num canto, sozinha e cabisbaixa. Com seu prato nas mãos foi até ela e pediu em voz baixa:

    – Posso sentar aqui?

    – Pode. – concordou Lúcia sem olhar para ela, mantendo seu olhar no prato de sopa que estava à sua frente.

    Ana sentou-se, porém não conseguia tocar na comida. Tentava evitar deixar transparecer seu embaraço, pois sabia que a Madre era uma pessoa perspicaz e poderia notar algo diferente entre elas. Isto sem falar na Irmã Teodora. Disfarçando, Ana esboçou um sorriso e disse:

    – O dia tá bonito hoje…

    – Ah-rã… – respondeu Lúcia ainda sem encarar sua interlocutora.

    Fez-se um silêncio até que Ana falou novamente:

    – Lúcia… eu preciso… a gente precisa conversar.

    Lúcia permaneceu em silêncio, um silêncio perturbador. Ana insistiu:

    – Por favor… eu só quero conversar. – E baixando o tom de voz – Eu quero me desculpar… eu quero esclarecer algumas coisas… Prometo que depois eu saio da tua vida.

    Ao pronunciar esta última frase os olhos de Ana se encheram de lágrimas e ela disfarçou fingindo assoar o nariz:

    – Desculpa… eu tô meio gripada.

    Neste momento Lúcia olhou para ela e respondeu com o mesmo tom meigo de sempre:

    – Eu também preciso conversar… eu preciso entender…

    Ana assentiu com a cabeça. Lúcia continuou:

    – Só não pode ser aqui. Não quero correr o risco que escutem nossa conversa. Podemos nos encontrar na queda d’água, as duas horas, pode ser?

    – Pode.

    As duas baixaram os olhos e tentaram comer a sopa de aletria que esfriava nos pratos. Ana não conseguiu sequer tomar duas colheradas. Deixou seu prato sobre a mesa e pediu licença, retirando-se. Não queria atrapalhar o almoço de Lúcia.

    Antes das duas horas Ana já estava sentava numa raiz de árvore, na margem direita do pequeno córrego, mirando a alegre movimentação das águas correndo apressadas sobre as pedras tomadas pelo limo. As folhas, flores e ramos que porventura caíam na superfície cristalina da água, eram arrastadas com o mesmo frisson das ondulações que se formavam pela forte correnteza. No inverno a sensação de umidade era ainda maior e a água chegava a brotar das pedras da encosta, juntando-se ao pequeno córrego que borbulhava alegremente, totalmente alheio à expectativa e à tristeza de Ana.

    Em seu quarto Lúcia caminhava de um lado para outro. Uma frase de Ana não saía de sua cabeça: “depois eu saio da tua vida”. Lúcia não sabia se queria ou não que Ana saísse de sua vida. A idéia de nunca mais ver a figura morena e imponente a consumia por dentro. “Mas por que?”, questionava-se a loirinha ingenuamente. Resolvera passar na capela antes de conversar com Ana.

    No ambiente solene e de penumbra da pequena ermida Lúcia ajoelhou-se em frente ao altar e contemplou a imagem de Cristo de braços abertos, como que abençoando a quem se aproximasse. A imagem de Maria também parecia olhar diretamente para ela e Lúcia tentava descobrir se a expressão da santa era de compreensão ou de reprovação pelo que vinha sentindo. Não conseguiu definir. Na verdade ela própria não sabia definir os seus sentimentos, ou tinha medo de fazê-lo. Temia tomar consciência de seus desejos mais íntimos, os quais não admitia nem para si mesma. Baixou os olhos e tapou o rosto com as mãos. Algumas lágrimas teimaram em escorrer de suas faces. Nesta hora percebeu que não estava sozinha. Olhou de viés e viu uma figura alta a lhe observar atentamente. Era a Irmã Teodora que resolvera dedicar alguns instantes para a oração. A freira aproximou-se e perguntou a Lúcia:

    – Tudo bem, Irmã?

    A pergunta foi formulada num tom brando que causou estranheza à Lúcia, acostumada a ser tratada com certo rechaço por ela. Possivelmente tenha notado as lágrimas abundantes e se comovido com a dor alheia, afinal ninguém é de todo mau.

    – Tudo bem, obrigada, Irmã Teodora. Com licença. – respondeu Lúcia retirando-se.

    A Irmã Teodora acompanhou Lúcia com o olhar até que esta desapareceu de sua vista. Tratou de acomodar-se num dos bancos frontais e abriu seu livro de rezas.

    Lúcia havia perdido um pouco a noção de tempo e quando se deu conta já eram duas horas. Apurou o passo e dirigiu-se para o local combinado.

    Sentada na raiz de árvore Ana olhava impaciente o seu relógio de pulso. “Duas e quinze, ela não vem…”, pensava enquanto uma fisgada dolorida lhe atingia o peito. Arremessou alguns cascalhos na direção da água vendo-os afundarem enquanto algumas gotículas respingavam formando uma miniatura de um efêmero chafariz.

    Ao chegar bem perto da cachoeira Lúcia diminuiu o passo e aproximou-se em silêncio. De longe observou a figura sentada num tronco e jogando pedras na água distraidamente. Foi invadida por um sentimento de carinho ao perceber a tristeza estampada naqueles olhos azuis que refletiam a cor das águas revoltas. Aproximou-se vagarosamente até que Ana a avistou e levantou-se num salto. Os olhos azuis se acenderam como fagulhas. Sem saber direito que atitude tomar, nem onde colocar as mãos, gesticulou mecanicamente apontando um pedaço de tora de madeira em formato de banco. Lúcia se sentou. Novamente Ana acomodou-se no tronco de árvore que ficava a uma distância segura de onde Lúcia estava, cerca de um metro e meio.

    – Pensei que você não viesse… – disse Ana.

    – Eu falei que vinha.

    Fez-se um período de silêncio onde nenhuma das duas tomava a iniciativa. Foi Ana quem quebrou o silêncio constrangedor:

    – Lúcia… eu sei que te devo um pedido de desculpas…

    – Não precisa se desculpar de nada, tu tinhas bebido.

    – Olha, eu preciso que você me escute. Por favor. Eu preciso te falar algumas coisas…

    – Eu vim aqui justamente para ouvir. – respondeu Lúcia.

    – Bom, então por favor não me interrompe. Deixa eu falar tudo o que está aqui entalado. Depois você pode me bater na cara se quiser, mas me escuta calada.

    Lúcia assentiu com a cabeça. Ana respirou fundo e continuou:

    – Lúcia… eu não sou uma bêbada. De fato no dia em que eu te… bom… na semana passada, eu tinha me excedido um pouco sim. Mas eu estava consciente do que fiz. Há anos atrás eu tomei muitos porres, e fumei muito também, e transei muito também. Só que depois do acidente que eu te contei a minha vida mudou radicalmente. Daquele momento em diante eu passei a maneirar na bebida. Eventualmente eu tomo uma cervejinha, principalmente com as parceiras que eu arrumei lá no convento. Mas é só.

    Lúcia foi obrigada a sorrir lembrando-se das Irmãs Celestina e Sebastiana.

    – A verdade é que eu nunca fui alcoólatra. E o que aconteceu naquele dia… entre a gente… bem… não posso atribuir ao álcool. Eu sabia o que estava fazendo. – Ana respirou fundo e continuou – Aliás, nos últimos tempos eu ando politicamente correta. Eu não fumo faz anos, parei com o cigarro antes que ele acabasse comigo… nem sexo eu tenho feito, pode?… Bom, tem uma outra parte da minha vida que eu preciso te falar. Eu vim para cá, como eu já te disse, para cumprir pena, mas precisei vir para um lugar tão distante para me esconder por uns tempos.

    Lúcia a olhou curiosa, mas não a interrompeu. Ana continuou:

    – Tem um cara barra pesada atrás de mim. Um cara metido com tráfico de drogas. Mas calma, eu não tô metida nesse negócio de drogas não. Eu me meti foi com a mulher do cara. Transei com a dona, e agora o sujeito quer a minha cabeça.

    – Então tu é mesmo… é…

    – Lésbica.

    – E posso saber por que tu nunca me contou? – questionou Lúcia.

    – Por que você nunca me perguntou.

    – Se eu perguntasse teria contado?

    – Teria. – assentiu Ana e Lúcia percebeu o tom verdadeiro de sua voz.

    – A Madre sabe? – perguntou Lúcia.

    – Não. Quero dizer, acho que não.

    – Mas como é que viestes parar aqui no convento?

    – Por ironia do destino a Assistente Social que é responsável pelo acompanhamento da minha prestação de trabalho comunitário é uma amiga minha de infância, que eu reencontrei depois de anos, e é sobrinha da Madre Lídia.

    – Não acredito…

    – Mas é verdade. Agora deixa eu continuar. – disse Ana tomando fôlego para dar continuidade a seu discurso – Lúcia, eu sou lésbica sim. Na verdade eu me descobri homossexual muito cedo, entre doze e treze anos.

    – Só isso??? Mas tu era uma criança!

    – Grande coisa, você não entrou para o convento com a mesma idade? – retrucou Ana.

    – Mas é diferente!

    – Diferente por que? São situações que vão definir a tua vida toda.

    – Eu posso não ser freira a vida toda. – respondeu Lúcia, desconhecendo-se naquelas palavras.

    – Mas eu sou homossexual muito provavelmente para a vida toda… – respondeu Ana. – Mas dá pra fechar essa matraca e me ouvir?

    – Tá, desculpa.

    – Bom, continuando… Na minha vida eu tive muitas mulheres. Eu reconheço que sou uma galinha mesmo! Não querendo ofender a Peninha.

    Lúcia teve de sorrir novamente e Ana continuou:

    – Mas em todos os meus relacionamentos eu de fato nunca me entreguei por completo. Tive ótimas transas, mas pouquíssimos envolvimentos. Acho que sempre tive medo desse lance de entrega, de sofrer, sabe? O exemplo que eu tenho em casa, de relacionamento duradouro, não é lá grande coisa… Meus pais estão juntos ainda, mais de trinta anos de casados. O velho é uma pessoa muito difícil. Sempre quis ter um filho homem. Ironicamente teve três filhas mulheres! Eu sou a mais velha. A minha vida toda ouvi meu pai meio que jogando isso na cara da minha mãe, não de uma forma muito explícita, mas nas entrelinhas, e eu não sei o que é pior, o que machuca mais. A coitada é uma “Amélia”, diz sim e amém pra tudo o que ele diz. E o velho tem umas idéias muito retrógradas. Eu decidi sair de casa quando ele expulsou a minha irmã mais nova, na época adolescente e grávida. Decidi que não esperaria para ser expulsa quando ele se desse conta da minha homossexualidade e caí fora por minha conta. Levei a minha irmã junto, a gente alugou um kitnet e depois ela se ajeitou com o pai da criança. Eu segui a minha vidinha sozinha mesmo. Nunca quis ninguém me dando ordens ou regulando a minha vida. – Ana suspirou – Bom… no meu último caso amoroso deu aquele bafafá todo com aquela dona, a mulher do traficante, e eu novamente me dei conta de que não é isso que eu quero pra minha vida. Não nasci pra viver perigosamente. Eu gosto de calma e sossego, de fazer o meu trabalho e voltar pra casa tranqüilamente. Aí vim cair nesse pedaço de mundo e conheci uma realidade totalmente diferente da que estava acostumada. E pra mim foi uma barra, pois se bobear eu não sei nem fazer o sinal da cruz direito. No princípio eu até pensei em cair fora, mas fui gostando daqui, do lugar… das pessoas. E eu conheci você. Você que em princípio quase me enlouqueceu com a sua tagarelice, mas que aos poucos foi me conquistando e me mostrando um outro lado da vida. E a cada dia que passava eu me acostumava mais à tua presença. Lúcia, você passou a ser muito importante na minha vida. Você me mostrou a beleza e o encanto das pequenas coisas, me ensinou verdades até então desconhecidas para mim. Você me transformou num ser humano diferente. Eu passei a contar os minutos que faltavam pra te ver diariamente. Só que… o que eu não consegui evitar foi o fato de me apaixonar por você… mais que isso, eu te transformei no meu norte, no meu caleidoscópio para ver o colorido do mundo. Eu me dei conta que o meu desejo não é só dividir um beijo contigo, ou a cama… meu desejo é dividir a minha vida contigo. Pobre de mim. E eu te peço perdão por isso. Eu preciso que você me perdoe aquele beijo… Eu não consegui me controlar… Mas eu juro por tudo quanto é mais sagrado que eu não quis te desrespeitar, nem te magoar, nem te ofender. Eu preciso que você acredite nisso, pois é a mais pura verdade. Eu sei que você é uma freira, que tem o seu destino definido, que é uma pessoa destinada a servir a Deus e só. Mas infelizmente a gente não consegue controlar os sentimentos. Eu que sempre tive as mulheres que desejei na minha cama, ironicamente jamais terei a mulher que eu de fato amo, e com a qual eu gostaria de passar todos os dias da minha vida. Ironias do destino… Mas, Lúcia, eu te falei tudo isso porque eu não vou mais mentir pra você, nunca mais, nem te esconder nada. E pode ficar tranqüila que eu jamais vou comentar isso com ninguém. Nem tão pouco vou me aproximar de você. E quando eu terminar o meu tempo aqui eu vou embora e nunca mais te procuro. Prometo. Eu só preciso que você me perdoe. Por favor.

    Ana calou-se e Lúcia não conseguia proferir palavras. Apenas balbuciou:

    – Eu te perdôo, sim. Embora acho que não tenha motivo para faze-lo… E, Ana… eu não sei se eu quero que vás embora…

    Ana olhou para Lúcia sem entender sua colocação. Não queria se iludir e fantasiar uma segunda intenção que provavelmente existia somente em sua cabeça. Lúcia levantou-se e disse em voz baixa:

    – Eu preciso ir… eu tenho que pensar…

    Ana ficou calada, somente assentiu com a cabeça enquanto duas lágrimas rolavam por suas faces morenas. Lúcia tomou o caminho de volta, totalmente alheia à paisagem da tarde ensolarada que se descortinava ao seu redor. As palavras de Ana não lhe saíam da cabeça. A revelação de Ana de estar apaixonada por ela havia abalado todas as certezas que Lúcia tinha até então em sua vida. Sua cabeça parecia oca por dentro e seus sentidos anestesiados pelo choque das palavras que ouvira. Tentava racionalizar e conceituar seu sentimento, mas não conseguia. Precisava, de fato, de tempo para pensar. O tempo… Senhor de todas as curas.

    Depois de quase duas horas foi a vez de Ana retornar para seu trabalho na escola. Precisou também de um tempo para se recuperar e conseguir concatenar suas idéias e ter forças para retornar à sua rotina. E foi o que fez.

    No domingo pela manhã Ana foi despertada por uma leve batida na porta de seu quarto. Era a Irmã Margarida que lhe sorria paramentada com seu abrigo azul marinho:

    – Bom dia, senhora dorminhoca!

    – Bom dia, Irmã… Houve alguma coisa? A Madre mandou me chamar?

    – Sim… não… quero dizer, a Madre pediu que eu a chamasse, mas não houve nada de mais. É que nosso time de vôlei precisa de sua técnica e melhor jogadora! – disse a freira animadamente.

    – Ah, Irmã, me desculpe, hoje não vai dar não. Eu não tô me sentindo muito bem. – disse Ana tentando arrumar uma desculpa para não ver Lúcia.

    – O que é que tu tens, minha filha? Queres um chazinho? Eu posso fazer.

    – Não, Irmã, muito obrigada. É só uma indisposição passageira mesmo. Acho que é cansaço.

    – Minha filha, esse teu serviço não é coisa para uma moça. Tu fazes muito esforço, levantas peso, enfim, coisa pra homem.

    – Mas eu tô acostumada, Irmã. Daqui a pouco já tô melhor.

    – Olha, mais tarde eu passo aqui pra te ver, certo?

    – Não precisa, não se preocupe.

    – Eu faço questão. – insistiu a freira.

    – Tudo bem então.

    A Irmã Margarida caminhou na direção do campo e quando referiu que Ana não se sentia bem uma ruga de preocupação formou-se no semblante de Lúcia, que questionou:

    – Mas afinal, o que ela tem, Irmã? Será que precisa de alguma coisa? Ir ao médico, quem sabe.

    – Acho que não, minha filha. Acredito que realmente seja um mal estar passageiro.

    Lúcia, frente as colocações da Irmã Margarida, compreendeu o que se passava e quais seriam os reais motivos de Ana não querer participar daquele momento de recreação. Entristeceu-se pelo fato de ser ela, mesmo que involuntariamente, a causadora de toda aquela situação. Lúcia jogou somente um set e alegou sentir dor no pulso, retirando-se para o convento. Ao passar pela manutenção viu que Ana estava sentada à sombra de uma enorme figueira que cobria parte do galpão. Estava recostada numa cadeira de praia e seu olhar estava perdido no nada. Ao passar por ela Lúcia pronunciou um tímido “oi”. Ana respondeu com um meio sorriso e um olhar que deixou Lúcia arrasada. Lúcia dirigiu-se ao seu quarto, estirou-se na cama e começou a chorar copiosamente. O fato de Ana estar triste a deixava com um sentimento de culpa. Além disto, sentia vontade de ficar perto de Ana, de vê-la sorrir, de ouvir sua voz. Pela primeira vez ficara claro para ela o quanto se importava com Ana, ao vê-la abatida e triste. Mais que isso, se deu conta que também desejava ficar ao lado dela. Lúcia admitiu para si mesma que tinha vontade de que Ana a beijasse outra vez. Tal pensamento fez o mundinho de Lúcia virar de cabeça para baixo. Por tudo que aprendera e vivenciara até aquele momento tal pensamento lhe soava inconcebível e por que não dizer pecaminoso. No entanto lhe causava muito mais angustia pensar em nunca mais ver a figura morena que lhe havia sido tão franca no dia anterior e em cujos braços, e lábios, experimentara uma sensação nunca antes imaginada. Decidiu que o melhor naquele momento seria rezar. Rezar muito.

    Ana, perdida em seus próprios devaneios, tentava definir objetivos em sua vida. Decidira que ficaria o tempo necessário no convento até que se extinguisse sua pena. Depois iria embora e possivelmente iria voltar para o Rio de Janeiro, ou para outro lugar qualquer que a ajudasse a tirar Lúcia de seus pensamentos. Até lá lhe restaria contemplar a figura angelical de Lúcia de longe, como uma imagem sacra disposta num altar, como uma tela famosa exposta num museu. Verdadeira preciosidade, fonte de vida, manancial de encantos, bela, mas inatingível e intocável. “Triste sina a minha”, pensava Ana.

    Bem distante dali, numa segunda-feira pela manhã, na primeira semana de setembro, quando Denise chegou ao Fórum para iniciar sua semana de trabalho e colocou a chave na fechadura de sua sala, estranhou o fato de ter descerrado a porta com uma única volta na fechadura. Denise era extremamente metódica e sempre fechava sua sala dando duas voltas na chave. “Bobagem”, pensou, “devo ter me esquecido na sexta-feira, afinal eu estava muito cansada”. Entrou na sala e tudo permanecia aparentemente nos seus devidos lugares, excetuando-se sua cadeira que estava levemente desencostada da mesa. “Vai ver eu deixei assim, eu saí com pressa mesmo”, pensava Denise. No entanto passou a examinar mais detalhadamente o seu material de trabalho. Tudo ali, os processos, os livros de registros, os arquivos com informações sigilosas de apenados, estudos sociais em andamento, enfim, tudo parecia em ordem. “É, vai ver foi distração minha, mesmo”, conjeturou Denise, mas ainda assim com a pulga atrás da orelha, “acho que preciso de férias!”.

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