Fanfics sobre Xena a Princesa Guerreira

    Não muito longe dali uma sonora risada ecoou numa sala luxuosa de um apartamento de cobertura. Três homens de ternos escuros e porte avantajado observavam a explosão efusiva daquele homem de meia idade, estatura mediana, cabelos ralos ajeitados com gel, terno Armani, sapatos cuidadosamente engraxados, camisa de seda púrpura e um enorme anel de ouro com uma pedra vermelha no dedo mínimo da mão direita que ostentava uma unha comprida e lustrosa devido ao esmalte incolor. Na lapela um cravo branco destoava completamente do conjunto que, aliás, pecava muito no quesito bom gosto. Além do anel o homem usava uma grossa corrente de ouro com um medalhão circular em cujo centro uma serpente parecia querer saltar do baixo relevo. Um relógio de ouro e duas pulseiras do mesmo metal adornavam o pulso esquerdo.

    – Muito bom, muito bom… – dizia o homem enquanto sua gargalhada continuava a ecoar pela peça luxuosamente mobiliada – Então a nossa brincadeira de esconde-esconde terminou? Nada como ter pessoas certas nos lugares certos. Pelo menos o dinheiro que eu pago pra ter gente de confiança dentro daquele prédio de cagar leis valeu de alguma coisa!

    Os três capangas se entreolharam. O homem mais velho continuou:

    – Bom, enfim aqui está o paradeiro daquela vagabunda. Vocês já sabem o que fazer. E eu não preciso pedir discrição, preciso?

    – Não senhor. A gente sabe como fazer o serviço. E… chefe, é serviço completo?

    Novamente o homem gargalhou.

    – Não, não é preciso. Basta um bom corretivo. Até porque a outra vagabunda, aquela lá de casa, não vale tudo isso. E como já não foi a primeira vez… Mas ela agora já aprendeu a lição. Agora com essa uma aí basta fazer um bom estrago que já vai estar de bom tamanho. Afinal eu sou um homem bom, tenho bom coração. Só não gosto que me façam de bobo… MUITO MENOS DE CORNO!!! – esbravejou batendo na mesa e ficando com a parte calva vermelha como um tomate maduro.

    Logo, porém, recompôs-se, retomou sua postura aparentemente tranqüila e continuou:

    – Então como eu ia dizendo… basta uma boa sova. Daquelas de lembrar a vida toda e mais umas duas ou três reencarnações! – e novamente gargalhou – A vagabunda foi macho o suficiente pra comer a mulher dos outros, agora quero ver se é macho na hora do corretivo! Agora vão, vão…

    Os três homens pediram licença e se retiraram. Embarcaram no veículo preto estacionado em frente ao prédio e rumaram para o endereço fornecido pelo homem do anel.

    O mês de setembro chegara trazendo temperaturas mais elevadas e prenunciando um verão que chegaria mais cedo. Era terça-feira e Lúcia estava na sala dos professores da escola, pois sua turma havia sido dispensada em virtude do conselho de classe. Era pouco mais de dez horas da manhã e a reunião já havia acabado. Os demais se retiraram e ela permaneceu na sala. Ao olhar pela janela deparou-se com a figura de Ana entretida com a pintura do portão de ferro da escola. Pacienciosamente manuseava um rolo com tinta marrom, equilibrada numa escada de cinco degraus que se encontrava aberta e rente à estrutura metálica. O pote de tinta numa mão e o rolo na outra exigia que se equilibrasse na escada. Lúcia não conseguiu deixar de reparar na musculatura das pernas que aparecia por debaixo do abrigo de lycra azul marinho. Aliás, não conseguia deixar de reparar em Ana nas últimas semanas, aonde quer que ela estivesse. Por mais que rezasse e pedisse a Deus para afastar certos pensamentos de sua cabeça, parecia que mais ainda estes lhe afloravam a cada vez que avistava a figura morena que insistia em desviar o olhar do seu. Recordou-se de seu embaraço há dois dias atrás, no domingo, quando após muita insistência da Madre, Ana havia concordado em jogar uma partida de vôlei com elas. Como de costume Ana fazia parte do time de Lúcia. E cada vez que a morena ficava na rede e Lúcia às suas costas a loirinha acabava com os olhos nas curvas dos braços, pernas, ombros e nádegas de Ana. Chegou a perder algumas bolas por conta de sua distração. E cada vez que Ana pulava junto à rede Lúcia ficava observando o movimento de seus cabelos. Mal sabia Lúcia que Ana também passava por maus pedaços quando era obrigada a dar cobertura para a loirinha na rede. Tentava disfarçar a todo custo para não chamar a atenção das demais. Durante todo o jogo não trocaram mais do que três ou quatro palavras, relativas a passes e defesas. Em dado momento quando descansavam sentadas, entre um set e outro, Lúcia sentiu vontade de enxugar as gotículas de suor da testa de Ana, num gesto que já fizera algumas vezes enquanto ainda era simplesmente a ajudante da morena. Mas conteve-se por conta da reação de Ana. A bem da verdade conteve-se por conta de sua própria reação. Não sabia exatamente como os seus sentidos reagiriam ao toque naquela pele quente e macia.

    Lúcia foi trazida de volta à realidade pela voz da Irmã Janete que colocou a cabeça para dentro da sala e lhe disse:

    – Irmã Lúcia, a Madre precisa falar contigo na secretaria.

    – Obrigada, Irmã, já vou lá.

    A freirinha dirigiu-se até onde a Madre Lídia estava e entrou após uma suave batida na porta:

    – Com licença, Madre? Mandou me chamar?

    – Sim. Eu preciso que alguém aqui da escola vá até Santo Ângelo para comprar alguns materiais didáticos e pedagógicos que não encontrei aqui na cidade. – disse a Madre estendendo uma ampla lista para Lúcia – Tu poderias ir, Irmã? Eu sei que tens aula hoje à tarde, mas a Irmã Teodora tem outra atividade e preciso desse material com urgência.

    – Tudo bem, Madre, eu vou. Como nunca falto eu posso recuperar depois.

    – Muito obrigada, Irmã. – disse a Madre agradecida.

    Nesse momento ouviu-se uma batida discreta na porta.

    – Pode entrar! Está aberta! – disse a Madre.

    A porta entreabriu-se e Ana entrou. Tentou não demonstrar surpresa ao ver Lúcia e limitou-se a cumprimenta-las formalmente:

    – Bom dia.

    – Bom dia – responderam ambas, Lúcia quase que a meia voz.

    – Madre, eu vou precisar de mais tinta marrom. Mais uma lata de um litro basta. Não tem mais no almoxarifado. – pediu Ana – e solvente também.

    Neste momento a Irmã Diva irrompeu na sala:

    – Madre, Madre! Temos um problema com o nosso carro! O pneu está furado! – disse esbaforida.

    – Mas coloque o estepe, Irmã! – retrucou a Madre.

    – Mas aí é que está o problema, Madre!!! O estepe também está furado! – disse a Irmã Diva.

    – Mas como assim? – quis saber a Madre.

    A Irmã Diva gaguejando respondeu:

    – É que… bem… eu esqueci de mandar consertar na outra vez que troquei o pneu…

    – Ai, Irmã… como é que a senhora me faz uma dessas?

    – Desculpe, Madre, eu não sei onde estava com a cabeça…

    – Tudo bem, tudo bem. Dá-se um jeito. – disse a Madre pensativa – Pode ir Irmã Diva.

    A freira saiu esbaforida como sempre. A Madre olhou para Ana e perguntou:

    – Minha filha, não querendo abusar da tua boa vontade, mas se eu te pagasse a gasolina poderias ir até Santo Ângelo buscar um material para a escola? Pois até providenciarmos o conserto dos pneus na cidade já vai ser tarde.

    – Posso sim, Madre.

    – Que bom, aí podes pegar a tinta também. Eu te dou o dinheiro.

    – Eu só preciso de dois minutinhos para mudar de roupa. – disse Ana.

    – Lúcia vai contigo – continuou a Madre – Ela está com a lista do material e sabe bem o que eu preciso. A tinta eu deixo por tua conta.

    Ana ficou um pouco desconcertada, assim como Lúcia. Porém nenhuma delas quis criar polêmicas ou inventar desculpas. Lúcia baixou os olhos e Ana se limitou a responder:

    – Tudo bem.

    Em menos de vinte minutos as duas já estavam a caminho de Santo Ângelo. O clima no interior da Kombi era de constrangimento. O pouco mais de uma hora que as separava da cidade de destino foi vencido quase que em silêncio absoluto. Ana se limitou a responder com monossílabos algumas poucas perguntas genéricas que Lúcia formulou para tentar quebrar o clima tenso que havia. Ao chegarem Ana deixou Lúcia no atacado solicitado e tratou de procurar uma ferragem para comprar a tinta que precisava.

    – Eu te pego aqui daqui há pouco. – disse Ana assim que Lúcia desembarcou.

    – Tá. – respondeu a freirinha ajeitando o hábito que teimava em revoar com um parco ventinho de final de inverno.

    Ao cabo de meia hora Ana estacionou de volta em frente ao local onde havia deixado Lúcia. Não esperou nem quinze minutos e a loirinha apareceu na porta da loja empurrando um carrinho lotado de livros, cadernos, cartolinas, folhas de ofício, papéis laminados, tubos de cola, tintas têmperas, enfim, uma montoeira de material encomendado pela Madre. Ana desembarcou e ajudou Lúcia a ajeitar o material no banco de trás da Kombi. Ao terminar Ana se virou para Lúcia e perguntou:

    – Já é mais de meio dia, tá com fome?

    – Tô. – respondeu Lúcia.

    – Vamos comer alguma coisa por aqui, então.

    – Tudo bem. Vamos sim.

    Lúcia instalou-se no banco do carona e Ana dirigiu-se ao centro da cidade, estacionando perto de um restaurante movimentado.

    – A comida aqui deve ser boa, pelo entra-e-sai. – disse Ana.

    – É, tá com jeito…

    – Podemos comer aqui?

    – Claro! – concordou Lúcia.

    Ambas desembarcaram e entraram no estabelecimento cujo bufê de sobremesas fazia qualquer um arregalar os olhos de contentamento. E Lúcia não foi exceção. Ana a observou e um rompante de carinho a fez pronunciar:

    – Esse olho brilhando é só por causa das sobremesas?

    Lúcia sorriu timidamente, baixou os olhos e respondeu baixinho:

    – Também pela companhia.

    Desta vez foi Ana quem se obrigou a sorrir satisfeita com a resposta. Sentaram numa mesa de canto e após se servirem começaram a conversar, um pouco mais descontraídas. Lúcia pediu um guaraná e Ana uma água com gás. Com os copos cheios Ana levantou o seu e propôs um brinde:

    – À saúde.

    Lúcia também levantou timidamente seu copo e respondeu:

    – À nossa saúde.

    – E a tua felicidade – completou Ana.

    – À nossa felicidade – respondeu Lúcia.

    – A minha felicidade é te ver feliz – disse Ana antes de levar seu copo aos lábios.

    Lúcia simplesmente sorriu. Depois de uns momentos perguntou:

    – Ana… como é que tu estás?

    – Ããh… em que sentido?

    – Tu sabe.

    – Como é que você acha que eu estou?

    Lúcia não respondeu. Ana continuou:

    – Eu vou sobrevivendo.

    Novo silêncio se fez, desta vez quebrado por Ana:

    – E você? Como está?

    – Indo… Me preparando pra formatura no final do ano… e pros meus votos definitivos no ano que vem… – respondeu titubeando nas últimas palavras.

    Ana não conseguiu disfarçar o sentimento de nó no peito ao ouvir a colocação de Lúcia. Soltou o garfo e bebeu mais um gole de água, cabisbaixa. Não trocaram mais nenhuma palavra até o final do almoço. Ao se dirigirem para o caixa Ana disse:

    – Eu pago, eu que convidei.

    – Não senhora! Não tem graça nenhuma ficar pagando a conta dos outros. – argumentou Lúcia.

    Ana segurou a mão de Lúcia que já procurava uma nota de dez reais em sua carteira e disse em tom grave e baixo olhando a loirinha nos olhos:

    – Você não é “outros”… você é a mulher que eu amo. Deixa ao menos eu te pagar um almoço…

    Lúcia engoliu em seco e baixou os olhos. Aquelas palavras haviam lhe causado uma sensação de frio no estômago. Não poderia dizer que se sentiu mal ao ouvi-las. Na verdade sentiu um nó no peito indefinível.

    Embarcaram na Kombi em silêncio e durante o trajeto de volta só se ouvia o barulho do motor contrastando com a sonoridade de uma fita K7 de música instrumental que Ana havia colocado no aparelho de som do veículo.

    Quando faltavam cerca de vinte minutos para completar a viagem de volta, e elas passavam por uma parte mais deserta da estrada, a atenção de Ana voltou-se para um veículo preto luxuoso que se aproximava por trás delas levantando poeira da parte sem asfalto do trajeto. Ana sobressaltou-se e tratou de pisar no acelerador da Kombi, aumentando consideravelmente a velocidade. As mãos de Ana apertavam nervosamente a direção da Kombi enquanto os olhos se revezavam entre a atenção na estrada e o retrovisor, controlando o veículo que as seguia. Lúcia percebeu que algo estava ocorrendo e questionou:

    – O que foi? O que está acontecendo?

    – Olha só… fica calma, mas eu acho que a gente tem visita.

    Lúcia olhou para trás e viu que um veículo preto se aproximava cada vez mais.

    – Tu sabe quem é o pessoal desse carro? – quis saber Lúcia.

    – Desconfio…

    – Pelo amor de Deus, me diz o que tá havendo? Não vai me dizer que é o que eu estou pensando…

    – Pior que eu acho que é. – disse Ana pisando mais no acelerador – Olha só, Lúcia, me ouve e não me contraria: haja o que houver fica na Kombi, não te mete que a bronca é comigo.

    – Mas eles vão te machucar!

    – Na melhor das hipóteses…

    – E tu acha que eu vou ficar parada olhando???

    – Por favor, pelo menos uma vez na vida não me contraria! Fica na Kombi, não reage, não faz nada, deixa que eu me viro!

    – Mas…

    – Lúcia, cala a boca! Eu não quero que nada te aconteça! Por favor…

    Nesse instante o carro preto acelerou e ultrapassou a Kombi desacelerando logo em seguida e obrigando Ana a sair para o acostamento e estacionar. Ana sentia o coração bater na garganta, suas mãos suavam. Ela temia pela segurança de Lúcia. Na verdade pouco se preocupava com ela própria naquele momento. Não suportava a idéia de que pudessem tocar em sua pequena amada.

    Do carro negro desembarcaram três homens cuja circunferência e altura fariam inveja a qualquer halterofilista. Lúcia arregalou os olhos. Ana segurou sua mão e disse antes de desembarcar:

    – Fica aqui!

    Ana deu cinco passos em direção aos homens e parou colocando as mãos na cintura. Ao se aproximarem um deles disse aos demais:

    – É essa aí, sim. Pela placa do carro e pela foto é ela.

    – E pelo jeito machão também! – disse o terceiro e todos gargalharam.

    Ana manteve-se impassível. Na Kombi Lúcia acompanhava a aproximação dos homens, estática.

    – Os rapazes estão querendo alguma coisa? – perguntou Ana com seriedade.

    – Digamos… acertar umas contas pro nosso patrão! – respondeu um deles.

    – Eu não sei do que vocês estão falando – blefou Ana.

    – Ah, dona, que memória fraca…

    E os três foram cercando Ana. Nesse momento Lúcia não se conteve e saltou do veículo, pulando em defesa de Ana:

    – ESCUTA AQUI, EIN? O QUE É QUE VOCES ESTÃO PENSANDO???

    Ana virou-se para ela, fuzilando-a com o olhar:

    – Puta que pariu! Volta pra Kombi! – esbravejou Ana entre dentes.

    – Ora, ora… a mulher-macho tem uma freira defensora! – debochou um dos homens fazendo um sinal para o motorista do carro preto que desceu e caminhou rápido na direção de Lúcia.

    Percebendo a intenção do motorista de segurar Lúcia, Ana voou em cima dele impedindo-o de tocar nela. Os outros homens a seguraram com força. O motorista que também era um homem enorme pegou Lúcia pela cintura suspendendo-a no ar. Ela se debatia e gritava:

    – SOLTA ELA, SEUS DESGRAÇADOS!!!

    Os três homens começaram a bater em Ana de uma forma covarde. Enquanto dois a seguravam um deles a esmurrava. Lúcia desesperada parecia um tigre furioso se debatendo numa jaula. Como um felino conseguiu dar uma mordida no braço de seu algoz, que o fez deixa-la cair. Ela correu e jogou-se no pescoço do homem que batia em Ana, fazendo com que se visse atrapalhado com os tapas e as mordidas que passou a levar nas costas e nas orelhas.

    – TIRA ESSA DESGRAÇADA DESSA FREIRA DAQUI!!! – gritava o homem.

    – MAS ESSA INFELIZ ME MORDEU!!! – dizia o motorista tentando puxar Lúcia de cima do homem que batia em Ana.

    – DÁ UMA PORRADA NELA ENTÃO E PÕE PRA DORMIR!

    – EU NÃO! NÃO VOU DAR PORRADA NUMA FREIRA!!! VAI QUE DÊ AZAR!

    – AZAR TU VAI VER SE NÃO TIRAR ESSA VACA DE CIMA DE MIM!!!

    O motorista pegou Lúcia novamente pela cintura e puxou-a de cima do homem, imobilizando-a enquanto ela gritava:

    – DESGRAÇADO!!! EU VOU TE ROGAR UMA PRAGA PIOR QUE AS SETE PRAGAS DO EGITO, TU VAI VER SÓ!

    – Vira a boca pras costas, Irmã! – disse o motorista segurando-a firmemente.

    O homem que batia em Ana desferiu-lhe um violento tapa no rosto:

    – Esse é pela dentada que eu levei da freira! E esse é pelo estrago que ela fez no meu terno!

    Quando finalmente o homem parou de bater em Ana os outros dois a soltaram. Ela caiu de joelhos, encolhida sobre o ventre, quase inconsciente. O rosto sangrava muito, mas num lampejo de lucidez conseguiu ver o momento em que soltaram Lúcia e esta correu até ela, ajoelhando-se a seu lado e amparando-a.

    – Bom, agora o recado do chefe: se tu sumir das vistas dele as contas estão acertadas. Mas se aparecer de novo no terreiro dele a nossa conversa não vai ser tão amigável! – disse um dos homens.

    Ana mal conseguia respirar, tamanha a dor que sentia. Mas, mais forte que a dor era a sensação de alívio ao ver que nada havia acontecido com Lúcia. Os quatro homens embarcaram no veículo que se afastou levantando poeira do chão. Lúcia, com Ana em seus braços, estava desesperada:

    – ANA, ANA, FALA COMIGO!

    Ana abriu os olhos e balbuciou:

    – Tá… tá tudo… tudo…bem…

    – Mas tu tá sangrando muito!

    – Eu… tô… bem…

    – RAIO DE ESTRADA QUE NÃO PASSA NINGUÉM!!! – esbravejou Lúcia.

    O rosto de Ana sangrava muito e seu olho esquerdo estava semicerrado pelo edema que já havia se formado.

    – Lu… Lúcia… – sussurrou Ana.

    – O que, meu amor, fala!

    Ao ouvir Lúcia dizer “meu amor” Ana sentiu como se uma mão quente houvesse pousado em seu coração. Sabia que provavelmente fora um simples modo de falar, devido ao momento de desespero, mas havia gostado imensamente de ter escutado aquelas palavras de seus lábios. Ana poderia morrer ali, naquele momento, que morreria feliz. Esboçou um sorriso e pediu:

    – Fa… fala… que foi… tenta…tiva de… assalto. Senão eu… eu tô… encrencada…

    – Tá, tá, mas agora fica quietinha até eu conseguir ajuda!

    Nesse momento Lúcia ouviu um barulho de motor. Era um trator que se aproximava. Lúcia gritou:

    – POR FAVOR, ALGUÉM ME AJUDE!

    Imediatamente os dois homens que estavam no trator saltaram e correram na direção das duas mulheres.

    – Por favor, algum de vocês poderia dirigir a Kombi até o hospital?

    – Claro! – disse um deles – Mas, o que foi que houve?

    – Assalto! – respondeu Lúcia – Tentaram levar a Kombi e ela reagiu, aí os bandidos bateram nela e fugiram.

    – Credo, Irmã, que estrago que fizeram na moça! – disse um dos homens – Baita covardia!

    Os homens aproximaram-se de Ana para ajuda-la a se levantar. Nesse momento ela desmaiou. Lúcia se desesperou:

    – ANAAA!!! NÃÃÃÃO!!!

    – Calma, Irmã, vamos pro hospital! – disse um dos homens tomando Ana nos braços cuidadosamente e colocando-a no banco intermediário da Kombi. O outro assumiu o volante do trator e seguiu no rumo de Vale Verde, enquanto a Kombi rumava para o hospital a toda velocidade.

    Sentada no banco do veículo tendo a cabeça de Ana apoiada em seu colo Lúcia sentia as lágrimas quentes escorrendo por suas faces. O sangue de Ana havia tingido de rubro o hábito cinzento. Lúcia afagava o rosto de Ana e pedia baixinho em seu ouvido:

    – Por favor… reage… não desiste… por favor… não vai embora…

    Lúcia estava desesperada frente ao lastimável estado de Ana. A morena estava com o rosto desfigurado e haviam batido muito em seu ventre. Lúcia temia o pior. Enquanto a Kombi se deslocava rapidamente Lúcia rezava pedindo a Deus e à Virgem Maria que deixassem Ana viver.

    Quando a Kombi estacionou na ala restrita da emergência do pequeno hospital de Vale Verde logo dois enfermeiros acudiram empurrando uma maca para depositar a paciente. Entraram com Ana por uma porta de vai-e-vem, na qual Lúcia foi impedida de entrar.

    – Aqui a senhora não pode entrar, Irmã. Por favor, espere nesses bancos. Aguarde que o doutor vem falar com a senhora depois. – disse um enfermeiro entrando logo em seguida.

    Passaram-se cerca de três horas, que para Lúcia pareceram séculos, até que o Dr. Medina, conhecido de Lúcia, veio falar com ela. Ao vê-lo a freira levantou-se de sobressalto.

    – Dr. Medina! É o senhor que está de plantão! E então? Como está a Ana?

    – Boa tarde Irmã Lúcia. – disse cordialmente o médico – Vamos passar aqui no gabinete da emergência.

    O coração de Lúcia disparou de ansiedade. O que teria acontecido com Ana? Lúcia estava com as mãos geladas e tremia por dentro.

    – Sente-se Irmã. – disse o médico.

    – Pelo amor de Deus, doutor! Como ela está?

    – Fora de perigo.

    – Graças a Deus!!! – exclamou Lúcia aliviada.

    – Mas vai passar a noite aqui conosco. Irmã, afinal o que aconteceu de fato com a moça?

    – Eu já falei na portaria: tentativa de assalto. Como os homens não puderam levar a Kombi porque Ana reagiu, eles bateram nela. Depois fugiram.

    O médico coçou o queixo.

    – Bom, Irmã… eu vou avisar ao Posto Policial para que seja registrada ocorrência de agressão.

    – Mas… é preciso? Afinal os ordinários fugiram mesmo…

    – É preciso sim.

    Lúcia não quis polemizar a situação e mudou de assunto:

    – Eu posso vê-la?

    – Pode. Ela está sob efeito de sedativos, mas a senhora pode entrar. Pela quantidade de hematomas, eu não sei como não houve danos aos órgãos internos. Fizemos todos os exames e só constatamos fraturas em duas costelas, além de cortes no supercílio e boca. Acredito que em duas ou três semanas ela esteja bem. O resultado da tomografia também foi bom, nada de lesões na cabeça. Sua amiga teve muita sorte.

    – É que ela é muito forte. E Deus ajuda as pessoas boas!

    – Sem dúvida, Irmã, sem dúvida. – respondeu o médico.

    Uma das enfermeiras do setor acompanhou Lúcia até o Box onde se encontrava Ana. A morena dormia profundamente e havia curativos em seu rosto. O lado esquerdo da face estava edemaciado e podia-se ver a extremidade do fio de sutura dos pontos que levara na boca. Os braços apresentavam hematomas arroxeados. Lúcia aproximou-se e não conseguiu conter um soluço ao ver a morena com as marcas de tamanha crueldade. Debruçou-se sobre ela e lhe deu um suave beijo na testa, cochichando baixinho em seu ouvido:

    – Obrigada por não ter ido embora…

    Em seu estado de inconsciência, anestesiada da dor, Ana sentiu o calor da vida pulsando em suas veias. Pareceu também ouvir a voz de um anjo a conforta-la.

    “Meu Deus! A Madre! Esqueci de ligar pra Madre!”, pensou Lúcia num sobressalto. Afagou novamente a mão de Ana que estava sobre a coberta de linho e saiu para procurar um telefone.

    – Alô! Madre? Aqui é a Irmã Lúcia… (…) Eu sei, eu sei, Madre. Eu sei que já é tarde… Mas aconteceu uma coisa horrorosa! – e Lúcia contou o ocorrido para a Madre que tratou de dirigir-se ao hospital o mais rápido que pôde.

    Ao desligar o telefone a recepcionista pediu que Lúcia a acompanhasse até o Posto Policial, no prédio anexo ao hospital. O escrivão já a aguardava para tomar seu depoimento.

    – Muito bem, Irmã, a senhora poderia me descrever o ocorrido?

    – Claro, claro. Como eu já disse na portaria nós fomos abordadas por homens que queriam roubar a Kombi, acho. Como a Ana reagiu eles bateram nela e depois fugiram.

    – E quantos homens eram?

    – Quatro. – respondeu Lúcia.

    – E eles estavam encapuzados? Se não, a senhora reconheceu algum deles? É gente daqui?

    Lúcia parou para pensar no que responderia. Precisaria manter a mesma versão posteriormente.

    – Bom, eu fiquei muito nervosa e não lembro de quase nada. Fiquei em estado de choque. Mas eles não usavam máscaras não. E não reconheci nenhum deles, não são conhecidos.

    – E como eram esses homens?

    – Enormes!

    – Sim, mas tente descreve-los.

    – Ora, eram homens grandes, tipos normais…

    – Eram brancos? Negros?

    – Eram três brancos e um negro. Acho… já disse que não vi direito.

    – E eles estavam armados?

    – Acho que sim.

    – Acha?

    – É, não cheguei a reparar bem.

    – Bom… e eles as abordaram como?

    – De carro. Passaram por nós e obrigaram Ana a estacionar.

    – E como era esse carro?

    – Escuro. – respondeu Lúcia.

    – Que cor?

    – Azul eu acho…

    – E a senhora teria por acaso visto e memorizado a placa?

    – Não.

    O escrivão coçou a cabeça e mexeu-se na cadeira enquanto digitava o depoimento de Lúcia. “Essa freira não tá ajudando muito”, pensava o homem.

    – E depois, Irmã, o que ocorreu?

    – Bom, eles puxaram a Ana de dentro do carro… e a mim também. Aí a Ana reagiu, deu um pontapé num deles e eles começaram a bater nela. Aí eu comecei a gritar para que parassem. Aí a gente escutou um barulho de motor ao longe. Acho que os bandidos se assustaram e voltaram para o carro deles, e fugiram. Era o barulho do trator do rapaz que dirigiu a Kombi até aqui. E acho que é só.

    – Irmã, a senhora não lembra de mais nenhum fato que possa auxiliar a identificar os agressores? É importante.

    – Acho que não. Mas se eu lembrar eu volto aqui para contar, pode ser?

    – Pode. – respondeu o escrivão com desânimo. – “Outro caso sem solução”, pensou.

    Neste meio tempo a madre chegou ao hospital e encontrou Lúcia quando esta retornava para onde Ana estava.

    – Madre! – exclamou Lúcia abraçando-se à freira mais velha – Eu tive tanto medo!

    – Está tudo bem agora, Irmã. O Dr. Medina me colocou rapidamente que ela está fora de perigo. Mas afinal o que foi que houve? – perguntou a Madre.

    Lúcia respirou fundo e repetiu a história que havia contado ao escrivão. Ao terminar a Madre somente exclamou:

    – Que barbaridade!

    – Eu vou passar a noite aqui com ela, Madre. – disse Lúcia.

    – Mas não vai adiantar ficar aqui. Vais ficar sentada no corredor? Vamos para o convento, tu precisas descansar. Aqui ela está bem cuidada.

    – Eu vou, tomo um banho, mudo de roupa e volto, Madre. Quando ela acordar alguém tem que estar aqui!

    Frente ao tom decidido da voz de Lúcia a Madre achou melhor deixa-la passar a noite ali. De fato seria bom ter alguém conhecido por perto quando Ana recobrasse a consciência.

    Lúcia retornou com a Madre Lídia ao convento e como haviam combinado tomou um banho e estirou-se em sua cama por quinze minutos, colocando os pés para cima a fim de relaxar. O hábito sujo de sangue foi deixado no cesto de roupas para lavar. Lúcia mal podia olhar para aquelas marcas. Fechou os olhos e as cenas da agressão sofrida por Ana não lhe saíam da cabeça. Sentiu raiva daqueles homens, muita raiva. Poderia esfola-los vivos se tivesse oportunidade. A intensidade daquele sentimento de revolta chegou a assusta-la. Imediatamente voltou seu pensamento ao Altíssimo e agradeceu do fundo de seu coração o fato de Ana estar viva. Este era outro sentimento que vinha lhe causando assombro: o fato de sentir uma necessidade quase que vital de estar próxima daquela mulher que se dizia apaixonada por ela. Sentia imensa vontade de vê-la, ouvi-la, admirar seus trejeitos e rir de suas implicâncias. E agora ela estava lá naquele leito de hospital, vítima de uma agressão por conta de seu passado, mas ao menos sem apresentar risco de vida.

    Com esses pensamentos Lúcia dirigiu-se à cozinha, para ver se comia alguma coisa. Não queria passar pelo refeitório para evitar ter de dar maiores explicações às demais freiras que certamente já estavam sabendo do ocorrido. Encontrou a Irmã Celestina com os olhos avermelhados, evidenciando ter chorado recentemente. Ao vê-la correu e perguntou ansiosamente:

    – Irmã Lúcia, como está a Ana? Não me esconda nada!

    – Agora está bem, Irmã… mas devo confessar que fiquei muito apreensiva antes de falar com o Dr. Medina. Ela está fora de perigo, graças a Deus!

    – Graças a Deus mesmo!!!

    – Eu vou passar a noite lá. – disse Lúcia.

    – Quando ela acordar diga que estou rezando para que ela venha logo pra casa… – disse a freira mais velha caindo num choro sentido.

    Lúcia a abraçou e disse:

    – Calma, Irmã Celestina… A Ana vai voltar logo,logo. Tenha fé.

    Irmã Celestina limpou as lágrimas em seu avental amarelo e tratou de dar andamento na janta. Chegou a sugerir que Lúcia levasse uns biscoitinhos caseiros para Ana, ao que esta argumentou ser melhor deixar para o dia seguinte, afinal Ana deveria seguir a dieta prescrita pela equipe médica.

    Após comer alguma coisa Lúcia dirigiu-se novamente ao hospital, desta vez sendo levada pelo fusca do convento com a Irmã Diva na direção.

    – Irmã Lúcia… eu estive pensando… – disse a Irmã Diva com a voz entrecortada – …se eu não tivesse esquecido de consertar o pneu… eu é que teria te levado para a cidade… e aí aqueles bandidos não teriam tentado roubar a Kombi… e a Ana estaria bem…

    – Irmã… – disse Lúcia brandamente – pare de se culpar, afinal nem a senhora e nem ninguém tem bola de cristal! Ninguém tem culpa do que ocorreu, além daqueles bandidos, é claro.

    – Tu achas mesmo, Lúcia?

    – Claro que eu acho. Foi uma fatalidade.

    – Mas eu não consigo deixar de pensar… – disse a Irmã Diva.

    – Mas deveria. Ao invés de se culpar, reze. Peça a Deus pelo pronto restabelecimento de nossa amiga.

    – É isso mesmo que vou fazer. Hoje mesmo vou começar uma novena para o Sagrado Coração de Maria.

    – Isso mesmo, Irmã, isso mesmo.

    Lúcia chegou de volta ao hospital antes das dez horas da noite. Ana ainda dormia profundamente. Por ser amiga do Dr. Medina, e por haver poucas baixas naquele setor, lhe foi permitido ficar ao lado de Ana, sendo que colocaram uma cadeira para que pudesse se instalar. Os leitos daquele setor eram separados por biombos de napa azulada, que isolavam cada Box como se fosse um mini-quarto. Naquele espaço de aproximadamente 2 x 2,5m havia, além do leito, uma gama de aparelhagem necessária a um atendimento de emergência.

    Lúcia não conseguiu pregar o olho. Ficou o tempo todo olhando para Ana, observando sua respiração e seus movimentos. Em dado momento aproximou-se dela e afagou de leve seus cabelos. Já passava das três horas da madrugada e não se ouvia nenhum ruído além do som do bip baixo e contínuo da aparelhagem de monitoramento dos pacientes. Lúcia estava praticamente debruçada sobre Ana, tomando o cuidado de não tocar nela para não acorda-la. Num impulso aproximou seu rosto do de Ana e sussurrou em seu ouvido:

    – Tu não tá sozinha… eu tô aqui contigo.

    Ana permaneceu imóvel e Lúcia, que estava a menos de meio palmo de seu rosto, aproximou seus lábios dos de Ana e suavemente beijou-lhe a boca. Um ósculo delicado e fugaz, porém que fez o coração de Lúcia disparar em seu peito. Lúcia afastou-se um pouco enquanto Ana permanecia adormecida. No entanto um quase que inaudível suspiro deu à Lúcia a certeza de que Ana sentira sua proximidade, mesmo que inconsciente.

    Perturbada pelo que acabara de fazer Lúcia sentou-se em sua cadeira enquanto seus batimentos cardíacos voltavam gradualmente ao ritmo normal. “Meu Deus, o que é que tá havendo comigo?”, pensava Lúcia.

    Passou-se mais uma hora e Lúcia percebeu uma leve movimentação de Ana. Levantou-se e segurou sua mão com suavidade. A luz fraca e esbranquiçada da lâmpada fluorescente que se encontrava acesa no painel sobre o leito permitia a Lúcia visualizar o rosto de Ana. Muito lentamente a morena abriu os olhos, parecendo fazer um reconhecimento de onde estava. Lúcia exalou um suspiro de alívio ao vê-la acordar. Quando os olhos de Ana encontraram os dela Lúcia abriu um sorriso encantador e disse baixinho:

    – Oi…

    Ana não respondeu. Limitou-se a esboçar um sorriso, porém sentiu a boca doer e contraiu-se numa careta.

    – Calma… – disse Lúcia afagando a testa de Ana carinhosamente – Não fala nada. Fica quietinha. Tá tudo bem agora. A gente tá no hospital e eu vou ficar aqui contigo… Tenta dormir de novo.

    Ana fechou os olhos novamente e foi invadida por uma sensação de bem estar. Mesmo com a vaga lembrança do ocorrido no dia anterior sentia-se confortada por uma mão quente e carinhosa que lhe afagava a testa e os cabelos. Também tinha uma vaga recordação de haver sentido um gosto latejante de amor em seus lábios…

    Já havia amanhecido quando Ana finalmente despertou de seu sono induzido. Abriu os olhos e deparou-se com um par de olhos esverdeados a observa-la atentamente.

    Ao vislumbrar o azul profundo que parecia querer mergulhar naquele mar esverdeado, Lúcia abriu-se num sorriso e disse alegremente:

    – Bom dia!

    Desta vez Ana conseguiu sorrir timidamente e respondeu:

    – Bom mesmo…

    – Mas poderia estar melhor. – completou Lúcia – Se estivéssemos em casa.

    – Mas em casa eu não estaria sendo cuidada por um anjo…

    – Tá… já tá apelando – riu-se Lúcia.

    – Mas é verdade… – sorriu Ana.

    O falar fez com que Ana tentasse tossir, contraindo-se de dor.

    – Fica quietinha… eu vou chamar a enfermeira.

    – Não… não precisa… Fica aqui comigo… – disse Ana segurando a mão de Lúcia.

    A freirinha passou a mão pelos cabelos negros e perguntou:

    – Tu lembra o que aconteceu ontem?

    – Lembro. – respondeu Ana com a voz baixa.

    – Olha só, eu tive que depor no posto policial – disse Lúcia à meia voz – depois eu te conto o que eu falei. Se te perguntarem não responde nada antes de falar comigo, tá?

    – Tá.

    – Agora fica quieta.

    – Então para de fazer perguntas…

    – Já tá boa mesmo! – Lúcia riu-se.

    Ao cabo de aproximadamente duas horas o Dr. Medina veio ver sua paciente. E gostou do que viu. Ana estava lúcida e orientada.

    – Muito bem, – disse o médico – pelo que vejo a senhorita nasceu de novo.

    – Parece… – respondeu Ana.

    – Eu só não entendo como o estrago não foi maior – brincou o médico.

    – Bom, – respondeu Ana – parece que meu empenho no boxe desde a adolescência valeu para alguma coisa. Pelo menos eu aprendi a apanhar!

    – Aaah… Esta pode ser uma explicação plausível! – concordou o médico.

    – Doutor… até quando eu vou ficar aqui? – perguntou Ana.

    – Se tudo correr bem, até amanhã.

    – Ainda? – reclamou Ana.

    – Somente! – respondeu o médico – Afinal a senhorita está com duas costelas fraturadas. E somente terá alta porque a Madre me garantiu que no convento terá os cuidados necessários para seu restabelecimento.

    – E eu lá preciso de babá? – retrucou Ana.

    – Viu como é desaforada, doutor? – disse Lúcia em tom de brincadeira.

    O médico assentiu sorridente e continuou:

    – Vou querer vê-la daqui a uma semana, para tirarmos esses pontos do rosto. Pode passar no meu consultório, a Madre já deixou hora marcada.

    – Tudo bem, não tenho escolha mesmo…

    Dr. Medina despediu-se de ambas:

    – Estou saindo do plantão agora. Só volto daqui ha três dias. Meu colega assumirá o caso já ciente de tudo o que foi feito e da previsão de alta para amanhã. Se precisarem de mim a Madre tem meu telefone.

    – Obrigada, doutor. – disse Lúcia.

    – Obrigada. – disse Ana.

    – Um bom dia para as duas. – respondeu o médico antes de sair.

    Após a saída do Dr. Medina Lúcia retrucou:

    – Sempre ranzinza! Custava não reclamar ao menos por um dia?

    – Força do hábito… – respondeu Ana.

    Lúcia teve de sorrir e disse:

    – Eu vou ficar aqui contigo até amanhã.

    – Não precisa… você deve estar cansada. Volta pro convento e descansa, eu tô legal.

    – Não senhora, eu fico.

    – Então tá. – concordou Ana.

    – Milagre! – exclamou Lúcia – Concordou sem maiores argumentações.

    Ana esboçou uma careta. Sentindo a face repuxar pediu:

    – Lúcia… me consegue um espelho.

    – Pra que?

    – Quero ver o tamanho do estrago.

    – Melhor não… – disse Lúcia.

    – Mas eu quero ver.

    – Ta bom. Vou ver o que posso fazer.

    Lúcia saiu de perto do leito e retornou logo com um pequeno espelho retangular.

    – O que tu me faz fazer! Tive que pedir pra meio mundo até conseguir emprestado esse aqui no posto de enfermagem! Usa duma vez que eu tenho que devolver. – disse Lúcia estendendo o espelho para Ana, tentando disfarçar sua contrariedade.

    Ana olhou-se e disse:

    – Puta que pariu! É melhor você nem olhar muito pra mim.

    – Por quê?

    – Tô parecendo a prima irmã do Frankstein.

    Lúcia riu e disse em tom de brincadeira:

    – Exagero teu. Tu até que tá bonitinha com essa tonalidade roxo beliscão. Parece maquiagem de baile de carnaval…

    – Ôôô… animador!

    – Ana, – disse Lúcia em tom sério – eu tive tanto medo…

    – Eu também.

    – Tu sentiu medo de morrer? – perguntou Lúcia.

    – Não. – respondeu Ana – Eu senti medo que te machucassem. Se tivessem encostado num fio dos teus cabelos eu jamais me perdoaria.

    – Eu senti medo de te perder… – disse Lúcia.

    – Me perder?…

    – É… jeito de falar… senti medo que te matassem… que eu nunca mais te visse…

    – E isso importa pra você? – perguntou Ana encarando Lúcia.

    A freira baixou os olhos e respondeu baixinho:

    – Claro que importa.

    Ana limitou-se a sorrir, satisfeita com a resposta.

    Conforme o previsto Ana teve alta no dia seguinte. No convento a Madre havia preparado para ela um quarto na clausura, perto do seu. Nos primeiros dias formou-se uma verdadeira equipe para acompanhamento da doentinha. Até mesmo a Irmã Teodora se ofereceu para auxiliar no cuidado de Ana, causando admiração em todas. As irmãs se revezavam durante o período do dia e à noite era Lúcia quem assumia o posto, dormindo num colchão ao lado de sua cama.

    Um dia antes da revisão com o Dr. Medina, Lúcia se preparava para dormir enquanto Ana tomava um copo de leite morno.

    – Eu fiquei mal acostumada com esse paparico todo. – disse Ana.

    – Mas é bom desacostumar porque daqui ha poucos dias a senhorita retoma a sua rotina! – respondeu Lúcia.

    – Mas eu bem que gostaria de ter essa companhia sempre no meu quarto… – provocou Ana.

    – Essa comitiva toda?

    – Não, só a companhia na hora de dormir bastaria… – disse Ana encarando Lúcia nos olhos.

    A freirinha enrubesceu e tratou de puxar a coberta sobre o rosto dizendo:

    – Boa noite!

    – Boa noite… – respondeu Ana sorrindo para si mesma.

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