Fanfics sobre Xena a Princesa Guerreira

    Era dia dez de setembro e o dia havia amanhecido nublado. A Irmã Diva auxiliou Ana a entrar no fusca do convento que a conduziria até o consultório do Dr. Medina. O médico retirou os pontos do rosto de Ana que já estava quase com a cor normal. Havia apenas alguns pequenos resquícios dos hematomas no lado esquerdo do rosto. As fraturas necessitariam de mais algum tempo até consolidarem-se. Até lá Ana estava proibida de fazer maiores esforços físicos. A retirada dos pontos revelou um trabalho de mestre realizado pela equipe do Dr. Medina. A cicatrização estava perfeita. Provavelmente as marcas ficariam quase que imperceptíveis.

    Ana ainda permaneceu no quarto da clausura por mais três semanas e somente após esse período retornou para seu quarto anexo ao setor da manutenção. A Madre só permitiu seu deslocamento após o Dr. Medina garantir que Ana estava bem, pronta para reiniciar suas atividades normalmente. A única coisa que Ana sentiu falta ao retornar para seu antigo quarto era a presença de Lúcia no colchão ao lado de sua cama. Na verdade desejava Lúcia deitada a seu lado, dividindo sua cama e sua vida. Lembrava das inúmeras vezes que adormecera vislumbrando o rosto sereno e já adormecido de Lúcia. Os cabelos loiros emoldurando o rosto delicado. O nariz levemente arrebitado franzindo-se num sorriso ao acordar a cada manhã. Sentia vontade de tê-la junto a si para sempre. Não lhe saía da cabeça a voz de Lúcia a lhe dizer: “eu senti medo de te perder…”, por certo foram as palavras que Ana mais desejara ter ouvido daqueles lábios. Lamentava, porém, terem sido somente palavras… palavras ditas ao vento…

    Lúcia, por sua vez, deitada em sua cama após tantas noites passadas ao lado de Ana, olhava para o teto pensativa. Faltava-lhe algo. Queria olhar para o lado e dizer: “boa noite”, como fizera por tantos dias. Queria acordar com aquele par de olhos azuis a fitá-la. Queria ouvir a voz grave a contar-lhe histórias de sua infância e a descrever-lhe as belezas da cidade maravilhosa antes de pegar no sono. Queria poder novamente puxar a ponta do cobertor e tapar os ombros morenos para que a aragem da madrugada não resfriasse a convalescente. Queria novamente sentir o gosto daquela boca…

    O gosto da boca… Sim. E a suavidade da pele. Lúcia conseguiu finalmente entender o quanto desejava estar perto de Ana, e o que aquilo significava de fato. Estava apaixonada. E essa tomada de consciência fez com que a jovem freira sentasse na cama de sobressalto. O coração disparado.

    Enquanto a razão a induzia a buscar refúgio nas orações e na penitência por tais pensamentos, o coração lhe incitava a bater no quarto de Ana e pedir para passar a noite com ela. Instantaneamente uma onda de ansiedade a invadiu e Lúcia não sabia o que fazer. Fez uma retrospectiva de toda sua vida até então, de seus sonhos, objetivos, projetos de vida. Reviu seus conceitos e se deu conta de que nunca havia sido tão feliz ao lado de alguém quanto de Ana. Como que num passe de mágica suas dúvidas se transformaram em certezas.

    Olhou para o lado e viu o ursinho que Ana havia lhe dado de aniversário, com a declaração de amor explícita na fala do bichinho que permanecia sentado nos pés de sua cama a contempla-la amorosamente. Se deu conta de que Ana a amava havia muito tempo…

    Respirou fundo, levantou-se, colocou um casaco por cima da camisola de pelúcia, calçou um par de chinelos e saiu pelo corredor a passos lentos, sem fazer ruídos. Sabia perfeitamente o que iria fazer.

    Sem conseguir conciliar o sono Ana teve sua atenção despertada por uma batida quase que inaudível na porta de seu quarto. Aguçou o ouvido e novamente ouviu a batida tímida. Levantou-se e ao abrir a porta deparou-se com a figura de Lúcia a contempla-la com seriedade.

    – Lúcia… aconteceu alguma coisa?

    – Não… sim… quero dizer… posso entrar?

    – Claro, claro. – disse Ana colocando-se de lado para que Lúcia pudesse penetrar no aposento. Após a entrada da loirinha Ana fechou a porta do quarto.

    Entreolharam-se em silêncio por instantes. Lúcia balbuciou:

    – Ana… eu posso… eu posso passar a noite aqui contigo?

    – Ãããnn… como assim?…

    – Posso… dormir aqui? – disse Lúcia aproximando-se de Ana.

    A morena deu um passo para trás e passou a mão pelos cabelos negros:

    – Lúcia… olha só… eu não sei se é uma boa idéia… é que… bem…

    – Ana… eu quero ficar aqui contigo.

    Ana passou as duas mãos no cabelo a partir da testa puxando-os para trás num gesto característico, levantou os olhos para o teto e deu um suspiro forte.

    – Lúcia, por favor… não faz isso comigo.

    – Isso o quê?

    – Você sabe… Lúcia, eu já te falei o que eu sinto por você… Eu não sou de ferro. Por favor… volta pro teu quarto.

    – Ana, tu não tá entendendo. Eu quero ficar contigo.

    Ana colocou as mãos na cintura e sorriu sem jeito, incrédula frente ao que ouvia:

    – Lúcia, eu tô ouvindo bem?

    – Tá.

    – Aliás, eu tô “entendendo” bem???

    – Está.

    – Não pode ser. Eu tô sonhando. Com certeza é sonho. Me belisca.

    Lúcia sorriu e continuou aproximando-se mais de Ana, ficando frente a frente com ela.

    – Não é sonho, é realidade. Ana, eu não consegui pegar no sono… sabe por que?

    – Por quê?

    – Porque eu senti a tua falta. E eu me dei conta que nunca na minha vida eu fui tão feliz perto de uma pessoa quanto eu sou de ti. E eu acho que eu também sinto uma coisa muito forte aqui dentro… – continuou Lúcia levando as mãos ao peito – …e eu acho que é amor.

    – Acha?…

    – Não. Tenho certeza.

    – Mas… e os teus objetivos de vida… você não quer ser Madre?

    Lúcia riu-se timidamente. Logo em seguida encarou Ana nos olhos e respondeu com seriedade:

    – Eu queria ser Madre, antes… Hoje eu me dei conta que eu quero ser outra coisa…

    – O que? – perguntou Ana.

    – Mulher. A tua mulher. – respondeu Lúcia com a voz rouca pela emoção – Eu preciso sentir o gosto do teu beijo de novo…

    Lúcia encostou seu corpo ao de Ana que sentia o coração a lhe bater nas têmporas, chegando a lhe causar uma espécie de vertigem. A morena não saberia conceituar em palavras os seus sentimentos naquele momento. Deixando-se levar pela paixão enlaçou Lúcia suavemente pela cintura, puxando-a de encontro a si. Como quem toma nas mãos um tesouro, uma preciosidade, Ana abraçou-a firme e carinhosa. Fitou-a nos olhos e beijou-lhe carinhosamente a testa. Lúcia abraçou o corpo de Ana enquanto esta beijava o contorno de seu rosto, descendo pelas faces na direção de seus lábios. Muito vagarosamente Ana contornou a boca de Lúcia com a sua. Por fim, com os lábios de Lúcia exigindo mais, capturou sua boca possessivamente. O beijo ardente, misto de desejo, fogo e medo, acendia os corpos que se enlaçavam amorosamente. As pulsações aceleradas, as respirações entrecortadas e as mãos trêmulas e ávidas acariciavam-se mutuamente.

    Ana tinha a sensação de estar nas nuvens. Tudo o que queria na vida era ter aquela pequena mulher em seus braços. E agora o que antes não passava de uma doce e terna ilusão era a mais palpável e feliz realidade.

    Lúcia perdeu-se nos braços de Ana, por inteira naquele sentimento de entrega e desejo. Sentia as mãos de Ana percorrendo suas costas, sua nuca, sua cintura. A boca ávida de Ana como que tentando sugar a sua essência pelos lábios. O movimento da língua a invadi-la, buscando dar-lhe prazer e fazendo-a sentir um fogo interno a consumi-la, sensação nunca antes experimentada.

    Em dado momento, com o peito ainda arfante, Ana conseguiu descolar os lábios dos de Lúcia, fitando-a nos olhos e dizendo:

    – Eu te amo…

    – Eu também te amo… – respondeu Lúcia.

    Ana afastou-se um pouco de Lúcia, contemplando-a de cima a baixo.

    – O que foi?… – perguntou Lúcia.

    – Nada… só tô olhando…

    Lúcia sorriu timidamente:

    – Olhando o que?

    – Você… (…) Lúcia… você tem certeza de que quer realmente fazer o que estamos prestes a fazer?

    – Absoluta. Eu quero ser tua.

    Ana sorriu e novamente aproximou-se dela, tomando as mãos de Lúcia entre as suas. Percebeu que Lúcia estava com as mãos suadas, um pouco frias e trêmulas. Levou as mãos alvas até sua boca e beijou-as carinhosamente, dizendo:

    – Você está com as mãos frias…

    – É que… que… eu tô um pouco nervosa… sei lá. Acho que eu tô com um pouco de medo…

    – Medo de mim?… – disse Lúcia amorosamente.

    – Não… medo de não saber fazer direito…

    – Fazer o que?… – provocou Ana.

    – Aaaaii, Ana, tu sabe o quê…

    Ana sorriu do desconcerto de sua amada e disse ao seu ouvido:

    – Você não precisa ter medo de nada… Tem coisas que a gente nasce sabendo fazer… – e riu-se.

    – Pra ti é fácil falar…

    – Por que pra mim?

    – Porque tu tem experiência… eu não.

    – Posso te confessar uma coisa? – perguntou Ana ainda ao pé do ouvido de Lúcia, fazendo-a arrepiar-se.

    – Pode.

    – Eu também tô com um pouco de medo…

    – Medo??? Tu???

    – É. – concordou Ana.

    – Medo de que? – quis saber Lúcia curiosa.

    – Medo de acordar a qualquer momento e perceber que tudo isto não passa de um sonho…

    Desta vez foi Lúcia quem envolveu Ana pelo pescoço e aproximou-se de sua boca:

    – Não precisa ter medo. Eu sou real… sonhos não fazem isso… – e colou seus lábios novamente aos de Ana, beijando-a com sofreguidão.

    A morena abraçou-a com firmeza e o beijo ardente fazia com que ambas se acariciassem freneticamente. Não conseguindo mais se conter Ana afastou-se um pouco dela. Com os olhos escuros pela excitação tirou o casaco de Lúcia, deixando-o cair displicentemente no chão do quarto. Após desabotoou os três botões da camisola de Lúcia, num clima quase que de ritual, para em seguida puxar a vestimenta tirando-a por cima da cabeça de Lúcia. O que se mostrou foi um peito alvo, com seios pequenos e firmes, de mamilos rosados e rijos de excitação. Ana contemplou sua amada sorrindo-lhe amorosamente. Desta feita tirou a própria camiseta expondo seu torso moreno e nu, para o deleite de Lúcia. Logo em seguida baixou sua calcinha desnudando-se por inteira para a mulher trêmula à sua frente. Desta vez foi a loirinha que a observou extasiada de cima a baixo, admirando aquele corpo que a deixava praticamente sem ar. Novamente Ana aproximou-se de Lúcia e num movimento delicado abaixou-se, como que num cumprimento a uma rainha, e tomou a calcinha de Lúcia nas mãos, levando-a até o chão. A loirinha tirou seus pés de dentro dos chinelos e da calcinha, ficando também completamente nua.

    Ana levantou-se vagarosamente envolvendo-a nos braços, fazendo com que os corpos se tocassem suavemente, sem absolutamente nada a separa-los. Os corações batiam praticamente um dentro do outro. As bocas secas e as respirações entrecortadas demonstravam a urgência que tinham uma da outra. A morena foi conduzindo Lúcia até a beirada da cama, tomando-a nos braços e deitando-a delicadamente. Em seguida esgueirou-se sobre ela, tomando o cuidado de não colocar todo o peso de seu corpo com receio de machuca-la. Lúcia abriu suas pernas, receptiva ao corpo que se deitava sobre o seu. Gemeu baixinho ao sentir o contato do sexo encharcado de Ana de encontro ao seu. Sentiu que uma umidade quente começava a jorrar de dentro de si, a cada toque de Ana em seu corpo.

    A morena passou a beijar o pescoço de Lúcia, descendo até os seios que arfavam de encontro a ela. Abocanhou um por vez, passando sua língua ao redor dos mamilos sugando-os e arrancando gemidos baixos de Lúcia. As mãos exploravam o pequeno corpo que retribuía cada toque com igual intensidade. Ana continuou a beija-la até a cintura e percorreu o caminho do triangulo de pelos dourados. Lúcia abriu-se para a boca de Ana que passou a língua delicadamente no ponto de prazer da loirinha que se contorcia em êxtase. Lúcia jamais ousara sonhar que pudesse existir tamanha sensação de prazer. Ana deu suaves abocanhadas no sexo de sua amada, adorando sentir o seu gosto. Ao perceber que ela estava prestes a atingir o clímax aliviou a pressão dos lábios e subiu novamente em direção à boca de Lúcia. Deitou-se sobre ela e beijou seus lábios avidamente. Pela primeira vez Lúcia sentiu seu próprio gosto na boca de Ana. A morena colocou sua mão entre as pernas de Lúcia e passou a acariciar o sexo de sua parceira em movimentos circulares e sincronizados. Muito suavemente deslizou um de seus dedos pela cavidade molhada penetrando-a vagarosamente, na clara intenção de não machuca-la. Lúcia gemeu e apertou seu sexo contra a mão de Ana, convidando-a explicitamente a continuar sua exploração. Aos poucos Ana foi intensificando os movimentos de vai-e-vem e espalhando a umidade que jorrava de dentro da loirinha. Estrategicamente Ana se posicionou de modo que Lúcia também pudesse toca-la. A pequena mulher sentiu em seus dedos encharcados o quanto Ana estava excitada, e nem bem havia tocado em seu sexo, e a morena já movimentava os quadris na direção de sua amante. Lúcia também explorou a cavidade úmida de Ana, penetrando-a enquanto esta gemia de prazer. Assim como Ana, Lúcia logo localizou o ponto do prazer de sua amada e passou a toca-lo com movimentos intensos e sincronizados. Sentia o volume na ponta de seus dedos aumentando de tamanho conforme a excitação aumentava. Nenhuma das duas conseguia mais segurar a explosão iminente do orgasmo, e com os movimentos dos dedos, acelerados e frenéticos, ambas contraíram-se com gemidos sufocados e com espasmos de prazer lhes percorrendo os corpos suados.

    Lúcia sentia como se a pulsação de seu corpo estivesse concentrada em seu sexo que latejava compassadamente após ter gozado de encontro ao corpo da mulher que amava. Ana deixou-se cair ao lado de Lúcia, abraçando-a e ajeitando-a sobre si na estreita cama de solteiro. Os corpos em êxtase pareciam fundidos num só. Após alguns momentos Ana afagou os cabelos suados de Lúcia e lhe disse baixinho no ouvido:

    – Eu te amo… Tanto… Tanto…

    – Eu também… Eu também te amo muito…

    Ana beijou a testa de Lúcia e perguntou carinhosamente após alguns minutos:

    – E então?… Passou o medo?

    – Passou… – Lúcia respondeu rindo-se e achando-se uma boba.

    – Que bom… O meu também passou. Realmente sonhos não poderiam me fazer sentir o que eu senti há pouco. Lúcia, eu nunca senti isso em toda a minha…

    – Isso o quê?

    – Amor… Paixão… Tesão… tudo.

    – Aposto que tu diz isso pra todas!

    – Lúcia… – respondeu Ana puxando o queixo da loirinha com suavidade fazendo com que a fitasse nos olhos – …eu nunca disse isso pra ninguém. E eu também nunca senti isso antes. Hoje foi a primeira vez na minha vida que eu fiz amor… E eu preciso que você acredite nisso…

    Lúcia se comoveu com a sinceridade daquelas palavras e respondeu:

    – Eu acredito. – E beijou Ana nos lábios.

    Ana continuou acariciando as costas de Lúcia, sentindo a maciez daquela pele alva e intocada até então. Lúcia quebrou o silêncio:

    – Ana…

    – O que?

    – Sinceramente… como eu me saí?

    – Como assim? – disse Ana fingindo-se de desentendida, divertindo-se com aquela pergunta.

    – Aaah, tu sabe… eu… fiz direitinho?…

    – Huuuummm… – murmurou Ana com um tom de suspense na voz. Pegou a mão de Lúcia e a colocou entre suas pernas onde os vestígios do orgasmo recente ainda umedeciam a pele morena. – O que é que você acha???

    Lúcia sorriu maliciosamente para ela enquanto reiniciava os movimentos de encontro ao sexo de sua amada, reacendendo a chama da paixão e dando início a nova seqüência de afagos, carícias e volúpias, enquanto a lua crescente desenhava sua trajetória naquele céu de outubro. Amaram-se até o esgotamento físico e adormeceram uma nos braços da outra.

    Naquele pequeno quarto dormiam duas mulheres completamente felizes e entorpecidas de amor.

    A madrugada já ia alta quando Lúcia despertou aninhada nos braços de Ana. O movimento dela fez com que Ana também despertasse e a apertasse de encontro ao próprio corpo, como que querendo prende-la para sempre perto de si. O contato com a pele nua e quente de Ana dava a Lúcia uma sensação de bem-estar e aconchego nunca antes experimentada. Ela se sentia uma pessoa totalmente diferente do que a Lúcia de algumas horas atrás. Mais que nunca se sentia mulher. Encarou Ana que lhe afagava carinhosamente os cabelos tendo os olhos fechados e uma expressão de serenidade no rosto.

    – Ana… – chamou baixinho.

    – O quê?…

    – Eu não sei que horas são…

    – Nem eu. E importa?

    – Eu não posso amanhecer aqui contigo… – disse Lúcia em tom queixoso.

    Ana abriu os olhos, fitando-a enquanto afagava o contorno de seu rosto.

    – E se eu não te deixar ir?…

    – Mas, meu amor… eu preciso…

    Ana sorriu e respondeu:

    – Eu sei. Peraí que eu vou ver as horas. – disse Ana enquanto esticava a mão para pegar seu relógio de pulso que estava no criado-mudo. – São quase quatro horas.

    – Eu preciso voltar pro meu quarto.

    – Lúcia… o que vai acontecer agora? – perguntou Ana deixando transparecer uma certa preocupação em sua voz.

    – Eu não sei… na verdade eu sei pouca coisa. Mas eu tenho uma certeza…

    – Qual?

    – Que eu sou tua. E eu quero continuar sendo.

    Ana sorriu e a apertou forte contra o peito.

    – Eu também… – respondeu Ana – …eu também sou incondicionalmente tua. A gente agora precisa pensar com calma no que vai fazer, certo?

    – Certo. – concordou Lúcia – Agora eu preciso ir.

    Lúcia beijou os lábios de Ana e esta a aprisionou de forma a impossibilitar que se levantasse. Lúcia sorriu e disse:

    – É assim que a senhora pensa em me deixar pensar com calma sobre o nosso futuro?

    Ana teve de sorrir.

    – É mais forte do que eu. Eu não consigo te soltar. – disse a morena.

    – Mas é preciso…

    Vagarosamente Ana deixou Lúcia se desvencilhar, mesmo que a contragosto, de seu abraço. A loirinha levantou-se e pegou suas roupas no chão do quarto, enquanto Ana observava a silhueta nua a movimentar-se com a graça e o encanto que lhe era peculiar. Ana mal cabia em si de felicidade e por vezes custava a crer que os momentos de amor que passara há pouco fossem de fato reais. Parecia que acordaria de seu sonho a qualquer momento. No entanto ao sentir o calor da boca de Lúcia de encontro a sua e aquele encantador semblante a lhe sorrir e dizer: “eu te amo”, teve a certeza de que aquela era a mais pura e doce realidade.

    – A gente se fala durante o dia… – disse Lúcia já vestida e roubando-lhe mais um beijo antes de sair.

    – Tá… – respondeu Ana colocando sua camiseta por sobre o corpo e abrindo uma fresta da porta para espiar para fora.

    A noite estava estrelada e clara. Tudo e todos dormiam profundamente.

    – Tá limpo. – disse Ana envolvendo Lúcia pela cintura e capturando-lhe novamente os lábios com avidez. Ao terminar o beijo continuou – Agora pode ir.

    – Eu te amo… – disse Lúcia.

    – Eu te amo… – respondeu Ana.

    Lúcia olhou para ambos os lados no pátio e correu na direção do convento, sendo observada por Ana da porta de seu quarto. Pé ante pé, sem fazer o menor ruído, retornou para seu pequeno quarto na clausura do convento. Ao se deitar em sua cama sorriu e suspirou profundamente. Ainda com a sensação do toque da pele e do gosto de Ana em seu corpo, adormeceu profundamente. Havia decidido que pensaria em sua vida somente após o amanhecer.

    Ana deitou-se novamente assim que Lúcia desapareceu na curva da viela ladrilhada que levava ao convento. Ainda sentia o cheiro de Lúcia em seu corpo e na roupa de cama. Sentia-se flutuar. De fato considerava-se a mulher mais feliz do mundo. A aragem da noite fez com que puxasse sua coberta sobre os ombros e se aconchegasse no leito que havia servido de ninho de amor. Em seus pensamentos só havia lugar para uma pessoa: Lúcia, a sua Lúcia, a pequena jovem que ela havia feito mulher naquela noite.

    Naquele momento nada poderia tirar dela a sensação de completude e êxtase que vivenciava. Nem mesmo a complexidade da situação poderia roubar-lhe o sentimento de confiança nas palavras de Lúcia: “eu sei que eu sou tua… e quero continuar sendo”. Essa certeza lhe bastava.

    A claridade da manhã fez com que Lúcia despertasse num sobressalto. Já eram sete horas, ela estava atrasadíssima. Não participara das orações na capela e precisaria correr para ter tempo de tomar um café antes de iniciar suas aulas no período matinal. Foi até o banheiro e despiu-se para tomar uma ducha rápida. Num canto do banheiro havia um espelho grande e ovalado. Lúcia parou e contemplou-se nua. Olhando-se de cima a baixo parecia enxergar outra pessoa. Em todos os anos que passara ali nunca chegara a observar-se daquela maneira, provavelmente por conta de seu freio inibitório que lhe incutia a idéia de pecado na contemplação do nu. Sorriu para si mesma e dirigiu-se para a ducha quente. A água escorria em suas costas e Lúcia sentia a energia fluindo com as gotículas que ricocheteavam em seu corpo.

    Quando Lúcia entrou no refeitório, esbaforida, Ana já estava instalada na mesma mesa de canto que costumavam ocupar. Ao ver sua preciosidade irromper no recinto, com os cabelos semi-revoltos, sorriu para ela, tentando disfarçar sua expressão apaixonada, para não levantar suspeitas. Lúcia fez a mesma coisa. Serviu seu café e foi sentar-se à mesa com Ana. A morena percebeu que Lúcia estava sem véu, aliás, sem o hábito. Vestia uma saia cinza que lhe caia até abaixo do joelho e uma blusa branca e discreta de mangas compridas ajeitada para dentro da saia.

    – Bom dia! – disse Ana com a voz baixa e um sorriso carregado de segundas intenções.

    – Muito bom… – respondeu Lúcia ruborizando-se.

    Ana baixou os olhos para sua xícara de café e riu-se da situação.

    – Tá rindo de que? – perguntou Lúcia à meia voz.

    – Da tua cara…

    – Quer fazer o favor?… – pediu Lúcia fingindo um tom de censura.

    Ana somente sorriu e abocanhou seu pedaço de pão caseiro com uma espessa camada de geléia de morangos. Tomaram o café em silêncio, evitando inclusive de trocarem olhares, com receio de que os olhos delatassem os sentimentos escondidos nos corações. Em virtude do seu atraso Lúcia praticamente engoliu seu café e despediu-se de Ana com um aceno, indo para a escola. Ao cruzar com a Madre na porta do refeitório percebeu o olhar inquiridor de sua superiora estranhando a ausência do hábito. Nem deu tempo à Madre de formular qualquer questionamento. Em menos de quinze minutos estava pegando seu material didático no armário da sala dos professores.

    Na hora do almoço Lúcia e Ana também mantiveram certa distância e evitaram a troca de olhares e de diálogos muito longos. À tarde Lúcia foi para a faculdade e à noite fez sua atividade na secretaria muito rapidamente, pedindo licença para a Madre para retirar-se em virtude de estar muito cansada.

    – Tu estás bem, Irmã Lúcia? – perguntou a Madre, sem questionar o porquê da ausência do hábito.

    – Estou, Madre. Só estou cansada mesmo. Posso me retirar?

    – Pode… – respondeu a Madre fitando-a pensativa.

    A superiora percebeu que algo estava acontecendo com Lúcia, porém considerou adequado dar tempo ao tempo e deixar que a própria jovem resolvesse se abrir com ela.

    Lúcia entrou em seu quarto e fechou a porta. Eram pouco mais de nove horas da noite. Pegou uma roupa limpa e foi tomar um banho. Na volta sentou-se na pequena cadeira estofada ao lado de sua cama e colocou os pés sobre duas almofadas estampadas. Nas últimas horas só o que fizera foi pensar em sua vida e em como proceder dali para frente. Havia tomado algumas decisões e queria conversar com Ana, mais que isso, precisava conversar com Ana. Para tal esperou que reinasse absoluto silêncio nos corredores da clausura, após todas as Irmãs haverem se recolhido aos seus respectivos aposentos. Novamente esgueirou-se pelas sombras da noite e foi bater na porta do quarto de Ana.

    Nem bem havia dado a primeira batidinha e a porta entreabriu-se rapidamente. Um braço forte a puxou para dentro e mãos ávidas a suspenderam num abraço apertado.

    – Nooossa, que recepção! – disse Lúcia após separar seus lábios dos de Ana, que havia lhe roubado um beijo sôfrego.

    – Eu quase morri de saudades hoje… – disse Ana apaixonadamente.

    – Eu também… – respondeu Lúcia enquanto Ana a colocava no chão. – Ana… sabe, eu pensei muito hoje e nós precisamos conversar…

    – Tem razão. – respondeu Ana sentando-se na beirada da cama para ouvi-la.

    Ana percebeu a necessidade de deixar Lúcia desabafar e estava disposta a ouvi-la sem interrompe-la. Lúcia sentou-se numa cadeira de frente para Ana e desatou a falar:

    – Não é de hoje que eu penso em nós… quero dizer, em mim… no que eu sinto por ti… e somente ontem tive a coragem de assumir. Bom, eu não tenho como negar que já me passou tudo pela cabeça, inclusive a idéia de que eu vou penar no quinto dos infernos por conta desse sentimento – e riu-se timidamente.

    Ana também sorriu e Lúcia continuou:

    – Mas depois, pensando em tudo o que eu já vivi até aqui, pensando no conceito e na idéia que eu tenho de Deus eu cheguei a conclusão que eu de fato não sou a pior das criaturas. E que Deus também não deve ser tão rígido e intransigente com um sentimento como o nosso, que é amor. Até por que se Deus for condenar os que amam, o que restará para os que odeiam? E eu me dei conta que não acredito num Deus que castiga, um Deus preconceituoso, e sim num Deus benevolente com aqueles que não prejudicam os seus semelhantes e a natureza. E a gente não está prejudicando ninguém… a gente simplesmente se ama. E se isto for errado eu realmente não consigo entender nada da vida. Bom, até aí tudo bem… Mas depois eu pensei na situação que a gente se encontra. Tu precisas terminar a tua prestação de serviços. Eu tenho uma faculdade por concluir neste semestre. Mais que isso: eu fiz votos. Tudo bem que são votos temporários, mas são votos. E eu quebrei um deles. Mas eu não posso voltar no tempo para consertar isso. Me resta proceder de forma correta daqui para frente.

    Ana mexeu-se na cama impaciente. Será que Lúcia estava cogitando a possibilidade de não deixar que a tocasse até saírem dali? Seria dificílimo para ela, mas se essa fosse a condição de Lúcia ela aceitaria, afinal amava aquela mulher mais que tudo na vida e jamais faria qualquer coisa que a deixasse magoada ou incomodada. Lúcia respirou fundo e continuou seu monólogo:

    – Tu reparou que eu não usei meu hábito hoje?

    – Reparei. – respondeu Ana.

    – E eu não vou mais usa-lo. Amanhã eu vou conversar com a Madre e contar-lhe a minha decisão de sair da Ordem.

    – E você vai falar da gente pra ela? – perguntou Ana incrédula.

    – Não. Eu não posso. Pelo menos por enquanto. Por ti. Por ela. E por mim também. Eu sei que ela vai querer saber o que está havendo. E eu vou explicar de forma a não aprofundar muito o assunto. Eu sei também que ela vai querer me dar um tempo, que vai argumentar que eu pense melhor. Eu vou propor continuar com minhas aulas na escola e com meu trabalho na secretaria. Mas vou precisar receber por isso, afinal vou ter que alugar uma peça para morar.

    Ana estava de fato espantada com a coragem de Lúcia. Por trás de sua aparente fragilidade se descortinava uma mulher decidida e valente.

    – Lúcia, eu posso te ajudar também. Eu tenho alguma grana e se você precisar a gente aluga um lugarzinho aqui perto pra gente. – disse Ana.

    – Ana, tu não vai poder morar comigo…

    – E por que não?

    – Por que vão botar um letreiro luminoso na fachada da nossa casa: “lésbicas”! – respondeu Lúcia colocando as duas mãos na cintura. – Aí a Madre te manda embora daqui e me afasta de vez da escola. Aí estamos com uma mão na frente e outra atrás! Olha, eu não quero ser desonesta, mas também não podemos abrir mão de coisas importantes pro nosso futuro. Uma vez formada eu posso dar aula em qualquer lugar. E uma vez livre desse processo tu podes ir para qualquer lugar também. Aí a gente pode construir a nossa vida, Ana.

    Ana sorriu frente à praticidade daquela garota, ou melhor, daquela mulher. Ela de fato tinha razão. Não era hora de ser passional e sim de fazer as coisas certas. Lúcia continuou:

    – Hoje o que eu mais quero é tu. Mas eu não posso ir contra o que eu considero ético. Me desculpa…

    – Eu não tenho o que desculpar. Muito pelo contrário, eu só tenho a me orgulhar de você. E cada vez mais eu me dou conta do porquê de eu te amar tanto. Eu nunca conheci uma pessoa como você.

    – Tão boba?

    – Não. Tão maravilhosa.

    Lúcia sorriu encabulada. Ana perguntou:

    – Você vai falar com a Madre amanhã?

    – Vou. Sem falta. – respondeu Lúcia.

    – Lúcia, eu não vejo a hora da gente ter o nosso cantinho. – disse Ana sorrindo – Sabe, eu não cheguei a comentar, mas eu tenho um terreninho num loteamento na zona sul de Porto Alegre. Comprei há algum tempo atrás como investimento. Na época paguei barato, em prestações a perder de vista, mas está escriturado, tudo direitinho. O lugar era ermo, porém agora parece que já está bem habitado e urbanizado. Não é lá grande coisa, mas a gente pode construir alguma coisa pra nós. O que você acha?

    – Eu acho que qualquer lugar, estando contigo, vai ser o meu lugar.

    Ana aproximou-se de Lúcia, ajoelhou-se à sua frente, tomou-lhe as mãos beijando-as e disse:

    – Eu te prometo que a gente vai ser feliz, minha garota.

    – Garota?

    – Não… – riu-se Ana – …Mulher, minha mulher. – e abraçou-a beijando-lhe a boca.

    Ambas sentiram o fogo da paixão acendendo-se e antes que não conseguisse mais se controlar Lúcia afastou-se e pediu:

    – Amor, me deixa fazer o que deve ser feito antes…

    Ana respirou fundo e afastou-se, com os batimentos cardíacos acelerados e uma sensação de umidade entre suas pernas.

    – Tudo bem. Se você quer assim, assim será. Eu faço todas as vontades da minha garota, quero dizer, da minha mulher.

    Lúcia sorriu encantadoramente levantando-se e ensaiando uma saída estratégica.

    – Agora eu vou pro meu quarto. – disse Lúcia suspirando.

    – E eu vou ficar aqui me consumindo de tesão…

    – E tu acha que eu não???…

    – Então porque não fica??? – pediu Ana sedutoramente.

    – Aaaaiii, não me tenta, mulher! Eu já te falei dos meus motivos.

    – Tudo bem, tudo bem, desculpa. Vai lá então. Você tem um minuto pra sair correndo, depois eu te prendo e não te solto mais… – disse Ana em tom de brincadeira.

    – Então tchau! – disse Lúcia dando um selinho na boca de Ana antes de sair correndo porta afora, deixando a morena ainda perplexa com suas convicções.

    – Puta que pariu! Raio de ética! – riu-se Ana enquanto preparava um banho frio antes de tentar conciliar o sono.

    No outro dia bem cedo, uma quinta-feira, Lúcia entrou na sala da Direção da escola antes de iniciar sua aula. A Madre estava sentada em sua cadeira de espaldar alto e fazia um registro num livro de atas. Estava com os óculos na ponta do nariz e ao perceber a entrada de Lúcia sorriu-lhe afetuosamente:

    – Bom dia, minha filha.

    – Bom dia, Madre… Ããnnn… a senhora vai estar muito ocupada hoje no primeiro horário da tarde? – perguntou Lúcia deixando transparecer um certo grau de ansiedade.

    – Bom… depende. Aconteceu alguma coisa?

    – Não, Madre… é que eu preciso falar com a senhora. E tem que ser hoje.

    – Mas então aconteceu algo?

    – É. Aconteceu. Mas não se preocupe, não é nada grave. Mas é algo que eu preciso lhe falar.

    A Madre encarou-a com uma expressão preocupada.

    – Tem certeza que não é nada grave? – insistiu a Madre.

    – Tenho. São coisas minhas, que eu preciso lhe contar. Podemos conversar a sós aqui? Lá pelas duas horas?

    – Tu não vais para a faculdade?

    – Não. Hoje não.

    – Então conversamos às duas horas. – assentiu a Madre.

    – Obrigada. E com licença. – disse Lúcia retirando-se para assumir sua turma que logo estaria em fila no pátio interno da escola.

    A Madre ficou pensativa. “O que estará acontecendo com essa menina?”, pensava a freira. Uma ruga de preocupação formou-se em sua testa. Não adiantava conjeturar, era necessário esperar para ouvi-la.

    No almoço Lúcia serviu seu prato e foi sentar-se na mesa com Ana. Cabisbaixa falou a meia voz:

    – Eu vou conversar com a Madre agora às duas horas.

    Ana assentiu com a cabeça e respondeu:

    – Boa sorte. E… Lúcia, você sabe que pode contar comigo para qualquer coisa. Até para cair fora daqui hoje mesmo se for preciso.

    Lúcia sorriu-lhe:

    – Eu sei. Mas acho que não chegará a tanto o “depois” de nossa conversa.

    – Tudo bem, mas é só pra você ficar tranqüila.

    – Eu estou tranqüila. Ana, eu tenho certeza do que eu quero. E é exatamente essa certeza que me deixa tranqüila.

    – E você tem certeza do que? – provocou Ana baixinho.

    Lúcia olhou-a nos olhos desconcertando-a, coisa rara de acontecer, e respondeu num tom que só a morena ouviu:

    – Do teu amor… do nosso amor.

    Ana sorriu e baixou os olhos para seu prato. Depois que terminaram de almoçar Ana voltou para seus afazeres na manutenção da lavanderia e Lúcia aproveitou o tempo para ir até a capela rezar um pouco e pensar na vida. A penumbra da pequena ermida tinha um efeito calmante para Lúcia. Sempre gostara daquele ambiente, principalmente nos dias claros, quando os raios do sol penetravam timidamente no recinto filtrados pelo colorido dos vitrais. Por vezes, conforme o ângulo de projeção do sol, as cores refletiam-se no chão ladrilhado ou nas paredes levemente azuladas. Perto do tempo do solstício de verão os raios do sol a pino penetravam pela abóbada central e caíam diretamente sobre o Ostensório que ocupava o centro do altar. O brilho do metal dourado espargia os raios solares como se aquela luminosidade brotasse do âmago do próprio Altíssimo. Já nos períodos dos equinócios a luz emanada dos pores-de-sol penetrava diretamente através do vitral que retratava a Assunção de Maria aos céus, sendo conduzida por anjos e flutuando entre as nuvens. O prisma de luz irradiava direto na auréola da Santa dando um efeito quase que mágico àquele vitral. Inúmeras vezes Lúcia havia se questionado se havia sido proposital a disposição daquelas placas de vidro e de metal. Assim como acreditava ser premeditada a abertura para a irradiação da luz sobre o altar nos solstícios de verão. De fato, além de arquiteto, o projetista daquele lugar deveria ter sido um estudioso da natureza.

    Lúcia contemplou silenciosamente as imagens sacras e os vitrais coloridos e seu coração aquietou-se. Fez uma oração pedindo luz para seu caminho:

    – Meu Deus, – orou Lúcia mentalmente – Virgem Maria, Mãe de Cristo e nossa mãe, volta teus olhos misericordiosos para nós e nos envolva com Teu manto de amor. Perdoai-me se porventura ajo contra a vontade de teu Amado Filho… Mas eu não posso deixar de seguir o que o meu coração ordena. Se pecado o for, perdoa-me por amar. Se não, dá-me forças para enfrentar o que está por vir, hoje e sempre. Ilumina os meus passos e, aonde quer que o Teu amor e o destino por Ti traçado me levem, faça de mim um instrumento de paz, um instrumento da Tua palavra. Que eu nunca me separe de Vós, e que eu possa ser o alento do meu irmão que chora, o amparo do meu irmão que sofre… que eu nunca perca a capacidade de me comover com a miséria humana e que eu possa sempre, por toda a vida, cumprir a missão de amar o meu próximo e lutar para a construção de um mundo mais justo e melhor para se viver. E, caso ainda me reste algum crédito, eu Vos peço, fazei-me feliz. A mim e a minha Ana. Amém.

    Lúcia ajoelhou-se, fez o sinal da cruz, respirou fundo e saiu da capela em direção à escola.

    A Madre já a aguardava. Irmã Teodora também estava na sala da Direção e quando Lúcia entrou a Superiora pediu educadamente:

    – Irmã Teodora, a senhora poderia nos dar licença um momento? Eu gostaria de falar a sós com a Irmã Lúcia.

    – Pois não. – respondeu a freira retirando-se para a sala dos professores.

    – Por favor, Lúcia, sente-se. – disse a Madre apontando para a poltrona à sua frente.

    Lúcia sentou-se e respirou fundo. Fez-se um período de silêncio enquanto a Madre observava Lúcia. Ela estava aparentemente calma. Séria, porém calma.

    – Bom, Irmã Lúcia, eu sou toda ouvidos. – disse a Madre.

    – Madre, eu nem sei bem por onde começar…

    – Que tal do princípio?

    – É… bem, eu não quero roubar muito o seu tempo e vou tentar ser breve. Nos últimos tempos eu tenho pensado muito sobre a minha vida, Madre. Sobre o que eu quero para o meu futuro, sobre a minha vocação.

    – E isso é perfeitamente normal, Irmã, ainda mais agora que se aproxima o tempo de proferir seus Votos Permanentes.

    – Pois é justamente isso, Madre… Eu não vou proferir os meus Votos Permanentes.

    – Como?

    – Eu não vou proferi-los, Madre. Eu decidi que não quero mais ficar na Ordem.

    – Mas Irmã Lúcia, porque essa decisão tão brusca assim de repente? Tu nunca tinhas me falado sobre dúvidas, e parecia que estavas convicta e feliz.

    – Pois é, Madre. Mas eu decidi.

    – Lúcia, quem sabe tu não dás mais um tempo, pensa melhor. É uma decisão que afeta todo o teu futuro. E tudo o que investistes na tua formação religiosa até agora? Pensa bem…

    – Madre, eu fui muito feliz até aqui. Aliás, eu continuo feliz. Só não quero mais ser freira. E esses anos todos de dedicação e estudo ficarão comigo sempre, guardados no meu coração.

    – Lúcia, o que foi que aconteceu para tomares essa decisão? O que te levou a pensar em desistir da vida religiosa?

    Desta feita Lúcia baixou os olhos. Não estava disposta a mentir, mas também não queria expor Ana. A Madre percebeu sua perturbação e insistiu:

    – E então, filha, te abre comigo. O que foi que desencadeou essa tua decisão?

    Lúcia encarou a Madre e por muito pouco não lhe contou a verdade. Desviou o olhar e disse:

    – Coisas minhas, Madre. Coisas internas e minhas. E eu gostaria de guarda-las comigo. Pelo menos por enquanto.

    – Bom… eu devo respeitar esse teu direito. E, Lúcia, o que pensas fazer? Vais voltar para a casa dos teus pais?

    – Madre, eu pensei… bem… eu gostaria de me formar esse ano. Portanto preciso ficar por aqui. Eu gostaria de saber se… bem… se a senhora poderia me contratar como professora e auxiliar de secretaria, afinal eu vou precisar me manter, alugar uma peça para mim, comer, pagar contas, enfim…

    A Madre a encarou com seriedade por alguns instantes para então responder:

    – Lúcia, tu sabes que eu sempre gostei muito de ti. E eu não posso negar que essa tua fala me deixou deveras… decepcionada. Eu continuo achando que isso é só uma fase e que vais acabar voltando para o convento, pois eu tenho certeza que darás uma ótima freira, de fato já és uma excelente freira. Mas eu respeito a tua vontade e acho que tens o direito de ter pelo menos um tempo para pensar. Eu acho viável te contratar sim. Mas sabes que o que podemos pagar é o mínimo, afinal a escola luta com dificuldades para se manter…

    – Eu sei, Madre…

    – Mas eu acho que poderias ocupar o quartinho do zelador da escola, que está vago desde que o Bonifácio se aposentou há dois anos e nunca conseguimos alguém adequado para substituí-lo. Assim economizas no aluguel e nas contas de água e luz. Aí vais precisar gastar somente com comida, afinal terás que te organizar fora do convento, isso inclui o refeitório.

    Lúcia ficou agradecida pela boa vontade da Madre. Sabia que de fato a Madre Lídia sentia um afeto especial por ela, quase filial, e era recíproco. Talvez por isso ela estivesse se sentindo mal em não contar toda a verdade para a Madre. Mas sabia que era o melhor a fazer, pelo menos por enquanto. Lúcia tomou as mãos da Madre entre as suas e levou-as aos lábios:

    – Muito obrigada, Madre. Eu nem sei como agradecer.

    – Não precisa agradecer nada, minha filha.

    – Eu gostaria de fazer a minha mudança neste fim de semana, pode ser?

    – Pode. Mas quero deixar claro que não concordo com isso. A meu ver isso é só uma fase e vais acabar voltando para nós. E as portas estarão abertas te esperando.

    – Eu sei, Madre. Mas eu não vou voltar.

    A Madre, em sua sapiência, resolveu não discutir. Abraçou a loirinha e lhe deu um beijo afetuoso na testa.

    – Que Deus te abençoe, minha filha.

    – Amém, Madre. Amém.

    – Eu vou pedir para a Ana dar uma ajeitada no quarto do zelador. E ela pode te auxiliar na mudança. – disse a Madre.

    Lúcia precisou usar todo seu autocontrole para que a Madre não desconfiasse de nada, afinal reagira quase que com um sobressalto frente à colocação da mulher mais velha. Limitou-se a responder um discreto e disfarçado: “tudo bem”. Pediu licença e voltou para seu quarto, na clausura, aliviada por ter conseguido conversar com a Madre e colocar seu posicionamento. Agora se iniciava uma nova etapa em sua vida. Precisava falar com Ana. Não queria atrapalha-la no serviço e resolveu deixar para a hora da janta.

    Em plena atividade, tendo a Irmã Janete a tagarelar em seus ouvidos enquanto tentava puxar uma extensão bifásica num canto da parede, Ana se consumia de curiosidade e ansiedade. Pensou em largar tudo e ir ter com Lúcia, mas achou melhor por fim aguardar que ela a procurasse.

    Finalmente na hora da janta ao sentarem-se frente a frente Lúcia lhe disse baixinho:

    – Tudo resolvido. Vamos conversar mais tarde. – e desconversou em seguida.

    Durante o jantar conversaram sobre assuntos diversos, a fim de não levantarem suspeitas.

    Por volta da meia noite Lúcia foi bater novamente à porta do quarto de Ana, que já a aguardava ansiosamente:

    – Graças a Deus! Pensei que não era pra hoje! – disse Ana enquanto tomava Lúcia em seus braços num abraço apertado.

    Elas se beijaram com volúpia e urgência. Afagaram-se amorosamente até que Lúcia se afastou dando um passo para trás.

    – Vamos conversar! – disse a loirinha enquanto procurava sentar-se na beirada da cama de Ana.

    A morena sentou-se ao seu lado ansiosa por saber das novidades:

    – E então? – quis saber Ana.

    – Bom… Falei com a Madre. Comuniquei a ela a minha decisão de deixar a Ordem.

    – E ela?

    – A princípio ficou contrariada, mas entendeu, ou melhor, acabou aceitando. Mas a parte que me deixou bastante aliviada foi que concordou em me contratar como funcionária da escola. E mais que isso, me ofereceu o quartinho do zelador da escola para morar, por enquanto. Eu só preciso ajeita-lo. E adivinha quem a Madre sugeriu pra me ajudar?

    Ana riu-se e respondeu em tom de deboche:

    – Nem imagino…

    – Tu não faz idéia da minha cara quando ela disse que falaria contigo pra verificares as condições de habitabilidade da peça! Eu simplesmente perdi o rebolado.

    Ana foi obrigada a rir da expressão de Lúcia e brincou:

    – Tadinha… foi pega no contrapé.

    – Não debocha. Foi uma situação que me deixou constrangida. Tu sabe a consideração que eu tenho pela Madre.

    – Desculpa. Eu sei sim. Mas então amanhã mesmo eu vou dar uma olhada nessa peça. – disse Ana.

    – Espera. Deixa a Madre falar contigo. E tenta disfarçar a cara de satisfação!

    – Vou tentar!

    – A única coisa com a qual eu vou ter que me preocupar é com as refeições. Como vou sair do convento não vou poder continuar a freqüentar o refeitório. Eu posso almoçar no restaurante universitário, na faculdade. Aí só preciso me preocupar com o café da manhã e o lanche da noite.

    – Olha só, eu tenho um fogãozinho de duas bocas que você pode usar. A gente dá um jeito, ok? O certo é que a minha mulher não vai morrer de fome, isso eu garanto. E conhecendo a Irmã Celestina eu acho que você não vai precisar se preocupar com comida não. – disse Ana chegando bem perto de Lúcia e abraçando-a. – Mas agora que tal a gente aproveitar o tempo com menos conversa?… Eu tô morrendo de saudade de você…

    – Ana… – disse Lúcia enquanto colocava sua pequena mão entre a boca de Ana e a sua – A gente só vai se tocar de novo quando eu sair daqui do convento.

    – Puta sacanagem, ein? – reclamou Ana – Mas eu faço tudo o que você quer mesmo… Tô virada numa babaca, num pau mandado. Nem pareço a velha Ana de antes. Mas não faz mal… Tudo pra ver a minha mulher feliz.

    Lúcia sorriu encantadoramente e Ana continuou:

    – Mas quando é que finalmente vamos fazer esse raio de mudança? Amanhã?

    – No sábado.

    – Puta merda, mas ainda faltam dois dias! – exclamou Ana.

    – O que são dois dias pra quem esperou mais de meio ano? – argumentou Lúcia. – Amor, me desculpa… Eu só te peço que me entendas.

    – Tudo bem… – disse Ana sorrindo-lhe – Eu entendo. Posso ficar me consumindo de tesão, mas entendo.

    – Obrigada. Eu te amo.

    – Eu também te amo… mais do que tudo nessa vida. – disse Ana.

    – Eu sei. Agora eu vou pro meu quarto.

    Elas ainda trocaram um beijo apaixonado e custaram a se desvencilhar do abraço que as unia. Porém Lúcia estava convicta do que deveria fazer, ou melhor, de como deveria proceder. Era uma questão de princípios. E embora Ana tivesse a tentação de arrancar avidamente as roupas de Lúcia, e faze-la sua mulher novamente, conseguia se controlar por amor. De fato amava Lúcia incondicionalmente e fazia qualquer coisa para deixa-la bem.

    A sexta-feira se arrastou para Ana. A Madre a chamou pela manhã e lhe pediu que desse uma olhada na dependência destinada ao zelador da escola, a qual Lúcia ocuparia, orientando-a a fazer os reparos que fossem necessários. Contou brevemente à Ana a decisão de Lúcia de desistir da vida religiosa e a morena teve que se esforçar para não deixar transparecer o quanto sabia daquela história toda.

    A Madre lhe alcançou a chave e Ana foi até o local. A tal dependência era na verdade uma pequena suíte: um quarto razoável e um banheiro anexo. Ana testou as tomadas, repôs uma lâmpada que faltava e checou a parte hidráulica. Tudo estava funcionando perfeitamente. O local precisava somente de uma boa limpeza. Sabendo que era Lúcia quem iria providenciar a limpeza resolveu ajuda-la. Queria fazer uma surpresa. Armou-se de balde, esfregão e detergente e colocou mãos à obra. Lavou as paredes desde o teto, e a pintura num tom de verde bem claro realçou-se sem a camada de pó que a escondia. Ajeitou a cama e colocou o colchão no sol. Limpou o pequeno guarda roupas por dentro deixando as portas escancaradas para arejar. Por volta das duas e meia da tarde já estava com a peça limpa e organizada. Foi até a manutenção e transportou um pequeno armário de madeira e uma mesinha de fórmica após falar com a Madre. Também tratou de deixar separado um suporte de madeira que serviria para colocar o fogãozinho que emprestaria à Lúcia. O quarto arejado e limpo estava com outro aspecto. O interessante naquele aposento era sua localização, com a janela e a parede externa voltada para o sol da manhã. A construção era antiga e estava em boas condições, sem vazamentos ou infiltrações de umidade. Encontrava-se em perfeito estado de habitabilidade. Ana ficou contente com o resultado de sua faxina. Na verdade não conseguia afastar do pensamento que aquele seria o refúgio delas, o lugar onde poderiam ficar juntas até o dia de irem embora definitivamente. Estava ansiosa para que Lúcia retornasse da faculdade e pudesse ver o resultado de seu trabalho naquele dia. Lúcia, no entanto, chegou da cidade somente na hora da janta. Havia permanecido na biblioteca por mais tempo para dar andamento no seu trabalho de conclusão de curso. Quando entrou no refeitório Ana já estava jantando.

    Ao avista-la a Madre acenou para que se sentasse ao seu lado e Lúcia sabia o porquê. Por certo comunicaria às demais a sua saída do convento. A Madre pediu que todas permanecessem no refeitório após a janta. Somente Ana tratou de terminar sua refeição e sair pela tangente, antes passando pela Madre e pedindo licença para se retirar:

    – Madre, eu gostaria de me recolher, estou cansada. E acho que não preciso permanecer aqui.

    – Com certeza, Ana. Pode se recolher sim.

    A morena saiu pronunciando um discreto “boa noite” para a Madre e para as demais que estavam perto, incluindo Lúcia.

    Quando todas terminaram a Madre se levantou e iniciou seu pronunciamento:

    – Irmãs, é a contragosto que eu venho comunicar a todas o teor de uma decisão tomada por nossa Irmã Lúcia.

    Reinou um silêncio absoluto no recinto e todos os olhares se voltaram para a pequena freirinha que se sentiu sumir na cadeira. A Madre continuou:

    – Nossa companheira de tanto tempo me procurou ontem e me falou sobre uma decisão que mudará o curso de sua vida, ela pretende deixar a Ordem.

    Neste momento formou-se um burburinho de conversas paralelas e balançares de cabeça.

    – Por favor, eu peço que me ouçam – disse a Madre num tom mais alto para que pudesse ser ouvida – Eu sei que Lúcia é muito bem quista por todas nós, e por mim também… Mas é necessário que respeitemos sua vontade e sua decisão. Amanhã ela procederá a sua mudança daqui.

    Novo burburinho de vozes. Desta vez a Madre bateu com seu talher sobre o tampo de madeira da mesa: “toc, toc, toc, toc”.

    – Silêncio, por favor! Lúcia permanecerá dando aula na escola e trabalhando na secretaria, no entanto não fará mais parte de nossa congregação religiosa. Temporariamente ocupará as dependências da zeladoria da escola até que decida onde fixará residência definitiva, ou retorne para cá após uma maior reflexão. – disse a Madre – Lúcia, tu gostarias de dizer algumas palavras?

    A loirinha assentiu com um movimento de cabeça. Levantou-se e olhou para cada uma das Irmãs que a encaravam ainda incrédulas.

    – Queridas, eu quero que saibam que eu passei aqui com vocês os melhores anos da minha vida. E não me arrependo de nenhum minuto compartilhado nesta congregação, muito pelo contrário. No entanto, eu penso que o meu lugar não é mais aqui. Pretendo continuar minha amizade com cada uma de vocês, mas não posso mais partilhar da mesma missão. A minha missão agora é outra. Mas eu quero que saibam que cada uma de vocês está ocupando um espaço definitivo no meu coração. Muito obrigada por tudo.

    Lúcia emocionou-se e não conseguiu dizer mais nada. A Madre a abraçou e todas as outras vieram despedir-se dela e desejar-lhe boa sorte. Somente a Irmã Teodora ficou sentada em seu lugar observando Lúcia atentamente. Matutava quais seriam os motivos de Lúcia para sair da Ordem. Quando quase todas já haviam se retirado dirigiu-se à Lúcia e lhe estendeu a mão formalmente:

    – Boa sorte. – disse secamente.

    – Obrigada. – respondeu Lúcia sentindo o olhar perscrutador da Irmã Teodora como que querendo invadir seus pensamentos. Tratou de desviar o olhar e puxar conversa com a Madre.

    – Lúcia, eu pedi para a Ana organizar o quarto do zelador e ela me disse que deixou tudo em perfeitas condições de uso. Inclusive ofereceu-se para te auxiliar na mudança amanhã.

    Lúcia sentiu seu rosto ficar corado e teve a nítida impressão que a Irmã Teodora, ainda plantada ao lado da Madre, havia percebido.

    – Obrigada, Madre. – respondeu olhando para o chão. – Agora eu gostaria de ir para meu quarto para começar a arrumar minhas coisas.

    – E o trabalho na secretaria da escola? – questionou Irmã Teodora.

    – Eu te dispenso por hoje. Pode arrumar as tuas coisas sim, e descansar, pois o dia amanhã vai ser longo. – respondeu a Madre dirigindo um olhar de reprovação para a Irmã Teodora. – “Ela não aprende mesmo!”, pensou a Madre, “não consegue deixar de opinar mesmo quando não é chamada a faze-lo… mas o que eu posso fazer? São coisas dela…”.

    Lúcia recolheu-se a seu quarto e colocou suas poucas roupas e pertences pessoais distribuídos em sacolas. Deixou seus hábitos cinzentos cuidadosamente dobrados sobre uma cadeira, pois seriam os únicos pertences a permanecer ali. Arrumou seus livros, material da faculdade, fotos, dois quadrinhos e uma pequena imagem de Nossa Senhora Aparecida. Colocou seu urso, a quem chamava carinhosamente de Betinho, sentado em cima de sua sacola de roupas. Em seguida deitou-se, embora não conseguisse pegar no sono. Seus pensamentos estavam totalmente voltados para a figura morena que deveria estar fazendo a mesma coisa que ela: consumindo-se de amor e ansiosa pelo dia de amanhã.

    Em seu quarto Ana somente se convenceu de que Lúcia não bateria à sua porta quando seu relógio marcou duas horas da madrugada. Suspirou olhando o teto e disse para si mesma: “calma, Ana, calma…”.

    No sábado de manhã bem cedo Lúcia se levantou e antes que o café fosse servido no refeitório foi até a cozinha. Queria dar um abraço especial na Irmã Celestina. Para sua surpresa Ana estava na cozinha e ajudava no preparo do café. Lúcia a encarou com um olhar inquiridor:

    – Bom dia. – disse a loirinha – Ana, que surpresa! O que você faz aqui tão cedo?

    – Tô consertando o sino da capela… não tá vendo? – disse sorrindo em tom debochado enquanto mexia o leite para evitar que transbordasse na panela enorme.

    – Engraçadinha… – disse Lúcia franzindo o nariz encantadoramente.

    Ana tratou de olhar para dentro da panela.

    – Minha querida, eu vou sentir tanto a sua falta! – disse a Irmã Celestina enquanto a abraçava carinhosamente.

    – Mas eu vou ficar aqui pertinho…

    – Mas perto não é aqui! – retrucou a freira.

    – Eu prometo que venho lhe visitar. E a senhora pode me visitar também à noite!

    – A Irmã Sebastiana, Ana e eu já combinamos de visitá-la seguido – disse a Irmã Celestina baixando o tom de voz, quase num cochicho – E vamos levar uma cervejinha para comemorar!

    Ana riu-se, de costas para elas.

    – Mas isso é um complô? – disse Lúcia brincando – Mas eu vou adorar! – e riu-se divertida.

    – Eu já tô pronta pra te ajudar na mudança. – disse Ana ainda de costas para Lúcia e cuidando do leite – Hoje fico totalmente à tua disposição.

    “Cachorra”, pensou Lúcia, “faz um comentário desses e não fica nem vermelha”.

    A Irmã Celestina se ocupou do café enquanto Lúcia se aproximou de Ana pelas costas. Disposta a provocá-la perguntou:

    – Dormiu bem?

    – Não. – respondeu Ana – Tinha mosquito.

    – Ãããnnn… – debochou Lúcia.

    – E você? Conseguiu pregar o olho? – quis saber a morena.

    – Também não.

    – E posso saber porque?

    – Calor… muito calor… – respondeu Lúcia.

    Ana a olhou com o canto dos olhos e disse baixinho:

    – Pra isso tinha jeito…

    Lúcia a cutucou com o cotovelo discretamente. A morena continuou:

    – Era só me chamar…

    Novo cutuco de Lúcia, dessa vez mais forte, enquanto ficava enrubescida.

    – …Que eu te emprestava o meu ventilador portátil. – emendou Ana.

    Lúcia sorriu sem jeito e tratou de se afastar de Ana. Foi para o lado da Irmã Celestina, auxiliando-a e tagarelando com ela.

    Ana e Lúcia foram as primeiras a tomar café naquela manhã de sábado e quando a Madre entrou no refeitório a Irmã Celestina informou que ambas já haviam ido proceder a mudança de Lúcia.

    O dia estava ameno, bastante agradável. As poucas nuvens que apareceram no início da manhã se dissiparam por completo, descortinando um céu de brigadeiro. Como Lúcia não possuía muitas coisas, em menos de duas horas elas levaram tudo para seu novo quarto. Ana levou seu pequeno fogão com um liquinho e o instalou num canto da peça.

    Lúcia havia ficado encantada com a organização e o asseio de seu novo aposento. Ana havia feito um ótimo serviço. Lúcia já havia se preparado para fazer a limpeza pela manhã, mas foi poupada por sua amada de fazê-lo. Tiveram o trabalho somente de organizar os pertences. Por volta de onze e meia já estava tudo ajeitado e organizado. Ana foi até o jardim e colheu alguns botões de rosa, colocando-os em um pequeno vaso de vidro e depositando-o no centro da pequena mesa de fórmica em frente à janela do quarto de Lúcia.

    – São para dar sorte… – disse a morena.

    Aquele singelo gesto deixou Lúcia encantada. Ana era capaz de atitudes extremamente doces, que chegavam a contrastar com sua figura forte, quase rude. Esses gestos, porém, eram reservados a pouquíssimas pessoas. E Lúcia sabia disso. E se dava conta que amava Ana cada vez mais.

    – Já que está tudo arrumado, que tal a gente ir até a cidade para almoçar. E para comprar algumas coisas também, afinal você tem um armário de mantimentos totalmente vazio! – disse Ana.

    – Não vai dar… eu não tenho dinheiro… a Madre ainda não me pagou, aliás eu comecei meu trabalho remunerado somente há dois dias, lembra?!

    – Bom, mas você não pensa que eu vou vir para cá e passar fome! Só de amor ninguém vive! – retrucou Ana.

    – Mas… e quem foi que te disse que eu vou abrir a porta para ti?… – provocou Lúcia com uma cara deslavada.

    – Experimenta não abrir… pra ver se eu não pulo a janela.

    – E se a janela estiver trancada? – continuou Lúcia provocativa.

    – Eu pedalo a porta. Hoje nada vai me manter fora desse quarto, entendeu minha queridinha?…

    Lúcia teve que rir da pose de Ana, argumentando com as mãos na cintura. E antes que a morena partisse pra cima dela, arriscando serem surpreendidas pela Madre, Lúcia disse apressadamente:

    – Tudo bem então! Vamos para a cidade. Depois que eu receber te pago o que a gente pegar no armazém, certo?

    – Mas eu cobro juros… – disse Ana puxando Lúcia para junto de si pela cintura.

    – E aceita negociação na forma de pagamento?… – perguntou Lúcia maliciosamente.

    – Com certeza… com toda a certeza. – respondeu Ana capturando os lábios de Lúcia num beijo.

    A loirinha retribuiu o beijo, mas logo se desvencilhou do abraço:

    – Tá doida? A Madre pode vir aqui a qualquer momento! – disse Lúcia.

    – Então vamos sair logo daqui… senão eu não respondo por mim! Vamos logo, ô tentação! – disse Ana dando um tapinha nas nádegas de Lúcia, e empurrando-a de brincadeira na direção da porta.

    Elas almoçaram na cidade e somente retornaram para o convento quando o sol já havia se posto. Combinaram que Ana jantaria no refeitório, para todos os efeitos se recolheria cedo. Lúcia faria um lanche em seu quarto, embora tivesse se alimentado muito bem na cidade. Havia um parque de diversões, esses parquinhos de interior, e as duas andaram de roda gigante, carro-choque, chapéu mexicano e se empanturraram de pipocas, algodão doce e maçã do amor.

    Ana esperou até as vinte e três horas e desta feita foi sua vez de esgueirar-se furtivamente pelas sombras da noite até a porta do quarto de Lúcia. Elas haviam providenciado uma cópia da chave da porta lateral da escola para Ana, assim como cópia da chave da porta do quarto.

    Ao escutar o barulho da fechadura Lúcia levantou-se num salto para abraçar Ana que entrava sorridente no quarto recém arrumado. A morena trazia nas mãos um buquê de flores do campo colhidas por ela após o jantar. Ao ser abraçada por Lúcia tratou de cuidar para não amassar as flores enquanto suspendia a loirinha que se dependurava em seu pescoço. Beijaram-se avidamente como que querendo recuperar o tempo perdido naqueles últimos dias. Quando finalmente conseguiram separar os lábios Ana percebeu o olhar de Lúcia escurecido pelo desejo. O verde assumira uma tonalidade quase oliva em virtude da pouca luz que havia no ambiente. Lúcia ligara somente o abajur do seu criado-mudo, uma vez que estava recostada na cama descansando enquanto esperava por Ana. Esta última, num gesto quase teatral, puxou o buquê de flores do campo ofertando-as à Lúcia:

    – Trouxe para a mulher mais linda deste continente…

    – Booom… então não devem ser para mim… – brincou Lúcia.

    – É evidente que são. – respondeu Ana fitando-a com veneração.

    – Mas a mulher que EU acho a mais linda do continente tem olhos azuis… – disse Lúcia.

    – Aposto então que é a Irmã Sebastiana! – brincou Ana.

    Lúcia gargalhou:

    – Boba!!! Realmente a Irmã Sebastiana é o meu xodozinho… mas eu me refiro a outra pessoa… – disse a loirinha.

    Ana fez uma cara de desentendida enquanto Lúcia pegava o buquê. Assim que ela pegou as flores, Ana, meio sem jeito, levou a mão ao bolso de sua calça e pegou uma pequena caixinha de veludo negro. Timidamente dirigiu-se a Lúcia:

    – Lúcia… Olha só… – disse Ana – Eu queria… bem… eu queria te dar isso… – e estendeu a caixinha para sua amada.

    – O que é isso?

    – Abre e olha, ué!

    Lúcia pegou a caixinha olhando para Ana que sorria timidamente desviando o olhar para as tábuas do assoalho. Apesar de seu jeito despachado, em certas situações Ana era extremamente acanhada. Lúcia abriu cuidadosamente o presente e deparou-se com duas alianças douradas. O metal cujo formato era arredondado e fino reluzia com a luz artificial do ambiente.

    – Mas o que é isso?… – perguntou Lúcia boquiaberta e de olhos arregalados.

    – São duas alianças, não tá vendo?

    – Mas… – disse Lúcia e não conseguiu mais pronunciar palavras.

    Duas pequenas lágrimas escorreram do canto de seus olhos verdes enquanto um sorriso de felicidade se estampava em seu rosto. Ela sabia perfeitamente o que aquilo significava.

    – Êêê… – disse Ana – …Se eu soubesse que você ia chorar não tinha dado as alianças!

    – Mas é de felicidade… – disse Lúcia.

    – Mesmo assim. Eu não gosto de te ver chorar. – respondeu Ana que continuava encabulada, meio sem saber onde colocar as mãos e o que dizer. – E então… Qual é a resposta?

    Lúcia a encarou sorridente, seu olhar deixando transparecer todo o amor e admiração por aquele gesto tão significativo e respondeu:

    – Ana… Eu nem sei o que dizer… eu…

    – Diz que sim e pronto.

    Lúcia riu-se e aproximou-se de Ana. Fitando-a nos olhos respondeu amorosamente:

    – Sim.

    Ana sorriu sem jeito, ainda com as mãos na cintura, no cós das calças. Lúcia pegou as alianças e tomou a maior em suas mãos. Com delicadeza pegou a mão esquerda de Ana e colocou a aliança em seu dedo anular, beijando-a em seguida. Logo após, colocou a aliança menor na palma da mão de Ana e lhe estendeu sua mão esquerda. Com as mãos um pouco trêmulas a morena colocou a aliança em seu dedo e também levou a mão de Lúcia aos lábios. Elas se entreolharam e sorriram, totalmente cientes do pacto que haviam firmado a partir daquele momento. Sem pronunciar palavras, pois não se faziam necessárias, elas se beijaram com amor e cumplicidade. O beijo ardente fez reacender o desejo e os corpos ansiosos por um contato mais íntimo pulsavam um de encontro ao outro.

    As roupas foram arrancadas rapidamente, uma vez que se configuravam em empecilhos do roçar de corpos. Betinho foi empurrado delicadamente de sua posição estratégica na cabeceira da cama. No leito perderam-se em meio às carícias e aos beijos afoitos. As mãos exploravam as curvas e as texturas da pele. Mergulhavam na maciez da carne e na umidade que jorrava das entranhas. Bebiam da essência uma da outra, sugavam-se avidamente, penetravam-se como se quisessem fundir os corpos num só, num mesmo ser, numa única e profunda intimidade. Os gemidos de prazer e êxtase, abafados pelas espessas paredes, podiam ser ouvidos somente pelas amantes que, excitadas, arfavam e contorciam-se voluptuosamente. Por fim, após atingirem o clímax do ato amoroso e saciarem o ardor que as consumia, acariciavam-se languidamente, aconchegadas nos braços uma da outra.

    Lúcia, deitada sobre o peito de Ana, olhou para sua própria mão, admirando a fina aliança que lhe adornava o dedo. Levantou seus olhos na direção dos da morena, sorriu amorosamente e disse a meia voz:

    – Agora eu me sinto de fato casada…

    – E tá achando o quê da situação?… – perguntou Ana sorrindo enquanto passava a ponta dos dedos pelo contorno do rosto de Lúcia.

    – Eu tô amando… – respondeu a loirinha – …Ana, quando foi que tu compraste essas alianças?

    – Ontem. Como tudo por aqui estava mais ou menos em ordem, depois que eu terminei de arrumar aqui o quarto peguei a Kombi e fui até Santo Ângelo. Cheguei lá a tempo de pegar o comércio aberto.

    – Mas… decidiste ontem?… – quis saber Lúcia curiosa.

    – Não… Acho que no dia que a gente fez amor pela primeira vez. E como eu passei a me sentir casada… e não sou acostumada a ver casamento sem alianças… então… fui lá buscar. – respondeu Ana.

    Lúcia sorriu e disse amorosamente:

    – Tu não existe, mulher… Eu te amo.

    – Pára com isso que eu tô ficando sem jeito. – disse Ana fingindo uma cara mal humorada.

    – Mas é verdade. Tu não para de me surpreender. – disse Lúcia beijando a boca de Ana. – Amor… eu nunca imaginei que amar pudesse fazer a gente se sentir tão… tão… completa.

    Ana sorriu e brincou:

    – Amar… e dar uma boa trepada, né?

    – Boba! – disse Lúcia dando um tapinha no braço de Ana. – Mas, tudo bem, não deixa de ser verdade…

    – Mas claro que é! – respondeu Ana apertando Lúcia de encontro a si – Mas certamente “fazer amor” não é um privilégio de muitos…

    – Ana… tu já tinha… é… bom… transado com uma mulher virgem?

    – Sei lá! Acho que não… Mas, por que a pergunta?

    – Curiosidade só…

    – Quer saber uma coisa curiosa? – instigou Ana.

    – Quero! – respondeu Lúcia olhando-a nos olhos.

    – Bom… é… você também se deitou com uma virgem, sabia?

    – O que?

    – É. Isso porque teoricamente eu sou virgem.

    – Como assim?

    – Virgem. Nunca transei com homem nenhum, sabia?

    Lúcia foi obrigada a rir.

    – Verdade?

    – Verdade.

    – Bom, menos mal… Assim não me sinto tão inexperiente! – brincou Lúcia.

    Ana foi obrigada a rir. Lúcia continuou:

    – Mas… se formos falar em conquistas femininas… né, dona Ana?…

    A morena fez uma cara de inocente:

    – O que é que tem?

    – Melhor a gente mudar de assunto, pois este já tá me dando uma gastura! – disse Lúcia com uma carinha invocada.

    Ana gargalhou e disse apaixonadamente:

    – Só o que me faltava era isso: arrumar uma mulher ciumenta!… Meu amor… vamos deixar o passado para trás. O que importa é que a gente se encontrou, só isso. E eu esperei por isso a vida toda, tenha certeza.

    – Eu também. Na verdade eu tava te esperando, Ana. Embora eu não soubesse, eu te esperava.

    – E é só isso que importa. – disse Ana beijando Lúcia nos lábios.

    Novamente reacendeu-se a chama da paixão e elas se amaram até as estrelas ficarem com a luz enfraquecida pela claridade da aurora. Como o dia seguinte era domingo não se preocuparam em Ana voltar para seu quarto, afinal ninguém iria bater à sua porta em seu dia de folga. E certamente ninguém também iria procurar por Lúcia. Assim sendo adormeceram tranqüilamente e despertaram quando o sol já estava alto e a claridade invadia o quarto pelas frestas da persiana de madeira.

    Como elas haviam comprado mantimentos no dia anterior Ana preparou o café da manhã para elas, uma vez que havia acordado antes. Levantou-se em silêncio tomando o cuidado de não despertar Lúcia que ressonava compassadamente, dormindo de bruços. Ana ferveu o leite e passou o café. O cheirinho de café passado na hora acabou por despertar Lúcia que esfregou os olhos e sorriu para Ana que a beijava amorosamente nas costas.

    – Bom dia… – disse Ana.

    – Huuummm… bom dia… – respondeu a dorminhoca.

    – O café está pronto.

    – Que bom… eu tô morrendo de fome!

    Lúcia se levantou e jogou sua camisola sobre o corpo nu. Não conseguiria tomar café despida. Ana serviu as xícaras com o líquido fumegante. Elas saborearam o café com pedaços de bolo de laranja feito pela Irmã Celestina. Decidiram que iriam até a queda d’água para dar uma caminhada. Tomaram o cuidado de não serem vistas saindo juntas da escola e foram passear. Estrategicamente saíram no horário da missa dominical, onde todas as irmãs estariam naquela hora. Passaram o domingo passeando e novamente Ana jantou no convento, para somente depois de reinar o mais absoluto silêncio dirigir-se furtivamente ao aposento de sua mulher.

    Estrategicamente combinaram de guardar as alianças para usa-las somente quando saíssem definitivamente dali, por motivos óbvios, afinal algumas pessoas podiam ser ingênuas, mas não cegas. Por isto Lúcia as guardou cuidadosamente na caixinha, enquanto aguardava ansiosamente o dia em que pudessem usa-las definitivamente.

    Na madrugada daquela segunda-feira Ana tratou de voltar a seu quarto antes que o sol nascesse. Daquele dia em diante Ana passou a dormir com Lúcia diariamente, sendo que nos finais de semana elas não precisavam se preocupar com os retornos estratégicos de Ana ao seu quarto antes do nascer do sol. Na verdade elas passaram a contar os dias para o final do ano, quando poderiam enfim deixar a cidadezinha de Vale Verde e rumar para a capital, para iniciar uma nova vida, juntas.

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