Parte VII – FINAL
por Fator X - LegadoNa semana seguinte à sua mudança para o prédio da escola Lúcia recebeu visitantes que lhe deixaram extremamente feliz. Numa quarta-feira à noite, após terminar seu expediente na secretaria e dirigir-se para o quarto percebeu um bilhete deixado por debaixo de sua porta. Dizia o seguinte: “Hoje vamos bater um papinho? Traremos bolo e refrigerante! Tuas amigas de sempre”. Lúcia sorriu e sabia bem de quem se tratava. Tomou um banho rápido e esperou suas visitantes. Depois de cerca de meia hora ouviu uma batidinha na porta. Eram as Irmãs Celestina e Sebastiana, acompanhadas por Ana que carregava uma cestinha de vime e uma bolsinha térmica.
– Boa noite!!! – disseram sorridentes as freiras mais velhas, enquanto abraçavam Lúcia afetuosamente – Viemos finalmente conhecer o teu novo cantinho. A Ana nos contou que ficou muito bonitinho.
– Entrem, entrem… e sejam bem vindas! – disse Lúcia.
– Mas que amor de lugar! Tão organizado e bonitinho! – disse a Irmã Sebastiana. – Dá até vontade de vir te fazer companhia.
Lúcia nem olhou para Ana, pois poderiam se entregar pelas caras sapecas.
– Pois é… – respondeu Lúcia – Mas vamos sentar.
Ana tratou de colocar a cesta num banquinho e tirar o bolo de dentro dela. Era uma torta de chocolate com morangos que deixou Lúcia de olhos arregalados de gula. Em seguida tirou três cervejas bem geladas de dentro da sacola térmica e um guaraná para Lúcia.
– Bem que eu desconfiei da referência aos refrigerantes!… – brincou Lúcia.
– Me deixa tomar umas aqui porque eu não sei se no céu tem cerveja! – brincou a Irmã Sebastiana – E como eu já estou mais pra lá do que pra cá… – e riu-se.
– Imagina, Irmã, a senhora ainda tem muito chão pela frente! – emendou Lúcia.
– Deus te ouça! – disse a Irmã Sebastiana, sempre sorridente.
– Lúcia, minha filha… – bradou a Irmã Celestina – Eu ando tão preocupada contigo!
– Por que, Irmã? – quis saber Lúcia.
– Você não deve estar se alimentando direito!
– Estou sim. Tomo café aqui mesmo e almoço no Restaurante da faculdade. Depois eu faço um lanche aqui de novo.
– Mas é pouco! – emendou a Irmã Celestina.
Lúcia e Ana riram-se dela. A Irmã Celestina continuou:
– Isso mesmo! Vão rindo! Depois de ficar anêmica não adianta chorar! A partir de amanhã eu vou trazer janta para ti!
– Mas Irmã, não pode… Eu não faço mais parte do convento…
– E eu com isso! – respondeu Irmã Celestina em tom desaforado – Eu faço, e eu sei o que posso fazer. Não adianta só rezar, rezar, e não fazer nada pelos outros! Jesus e São Francisco não ensinaram a partilhar? Pois então! Eu vou partilhar a comida contigo! E tenho dito. Um pouco antes da hora da janta eu separo uma porção pra ti e trago aqui. Deixo na primeira porta desse armarinho no corredor. É hora em que os alunos da tarde já saíram e ninguém vai ver.
– Irmã… Eu não quero que a senhora se incomode por mim… – disse Lúcia.
– Não é incomodação, é um prazer!
Vendo que não adiantaria argumentar, Lúcia se limitou a sorrir e agradecer. De fato depois daquele dia a Irmã Celestina passou a levar-lhe secretamente janta todos os dias, além de frutas, pães e bolos para o café da manhã. A bem da verdade não tão secretamente, pois a Madre se dera conta das fugidas da Irmã Celestina e fazia vistas grossas à iniciativa dela.
Naquela noite as quatro se deliciaram com o bolo e conversaram até quase duas horas da manhã. Nem viram o tempo passar. Ana acompanhou as duas freiras até o portão dos fundos do convento e depois de disfarçar um pouco voltou para o quarto de Lúcia.
Em seu pequeno quartinho na clausura Irmã Celestina ficou pensativa: não lembrava se havia fechado a porta direito. Por vezes o trinco escapava e os gatos que viviam no pátio do convento acabavam entrando e fazendo xixi no rodapé perto da porta do refeitório. Por isto a Madre havia proibido a circulação dos bichanos pelos corredores do convento. Pé ante pé levantou-se e foi até a porta. Experimentou puxar a maçaneta e estava realmente bem fechada. No entanto resolveu dar uma espiadinha no céu de outubro, pois era noite de lua crescente. Ao espiar pela fresta da porta viu passar o vulto alto e esguio de Ana esgueirando-se na direção da lateral da escola. Sem que a morena a visse fitou sua silhueta curiosamente. Fechou novamente a porta sem fazer barulho e caminhou até seu quarto pensativa. Sentada na cama com seu livro de orações aberto no colo pensava na cena que vira. Fechou o livro, estirou-se na cama e puxou o cobertor sobre si. Mentalmente fez uma retrospectiva dos últimos acontecimentos envolvendo suas amigas, as mudanças que ocorreram na vida de ambas e principalmente as mudanças de comportamento que sabiamente observara. Coçou o queixo, deu um sorrisinho para si mesma, arqueou uma das sobrancelhas, balançou a cabeça, apagou a luz de cabeceira e adormeceu profundamente.
O outono já se despedia naquela metade do mês de novembro e aquela sexta-feira foi bastante corrida tanto para Ana, que havia passado o dia trabalhando na organização da sala de manutenção, quanto para Lúcia, que se preparava para a apresentação de seu trabalho de conclusão de curso na semana seguinte, ao mesmo tempo em que realizava as avaliações finais de sua turma com vistas ao fechamento do ano letivo dali a quinze dias.
Ana pretendia deixar tudo organizado para sua saída antes do final do ano. Já havia conversado com Denise, uma vez que já tinha cumprido as horas prescritas em sua sentença. Aliás, tinha até mesmo horas a mais. Pela Justiça estava finalmente liberada. Sentia-se livre. Era como se houvessem lhe tirado um peso enorme dos ombros. E esse seu sentimento de felicidade era compartilhado por Lúcia. De fato Ana mal cabia em si de contentamento, afinal havia saldado a sua dívida com a Justiça e acima de tudo havia encontrado o amor de sua vida. Na verdade uma coisa havia levado à outra. Ironicamente o destino promovera o encontro de duas almas gêmeas numa situação totalmente inusitada e a princípio bastante sofrida. Mas havia valido a pena. Afinal agora elas tinham projetos, planos e sonhos em comum. E estavam prestes a conseguir materializá-los.
Como de costume Ana esperou que as sombras da noite se projetassem sobre os telhados do lugarejo para então realizar sua ida furtiva para junto de sua amada. Ao entrar no quarto deparou-se com Lúcia adormecida sobre seu trabalho, re-estudando-o pela centésima vez. Aproximou-se dela e abraçou-a carinhosamente, beijando-lhe a face e despertando-a de seu sono.
– Oi amor… – disse a loirinha com voz sonolenta.
– Oi… cansadinha?
– Bastante. Na verdade mais do que cansada, estou ansiosa. – disse Lúcia.
– Eu também.
– Quando penso que daqui a mais ou menos duas semanas podemos ir embora eu sinto um misto de alegria e saudade. – disse Lúcia.
– Eu sei. Mas eu devo confessar que estou contando os minutos.
– Eu também. Mas sei que vou sentir saudades da Irmã Celestina, da Irmã Sebastiana e da Madre.
– Mas a gente pode vir visitá-las… – argumentou Ana.
– Não sei… pois é… talvez.
– Bom, mas que tal a gente pensar nisso depois? Vamos dormir? Eu tô mortinha de cansaço. – disse Ana.
– Vamos sim. Eu também tô acabadinha.
Elas se deitaram abraçadas e adormeceram quase que instantaneamente tamanho o cansaço de ambas.
No dia seguinte, sábado, elas se acordaram por volta das oito horas. Tomaram café e decidiram ir até a cidade. Ana queria trocar o óleo da Kombi e fazer alguns telefonemas para amigos na capital, já preparando a ida delas para o início do mês de dezembro. Arrumaram-se e saíram pelo corredor deserto da escola. Num gesto automático Ana pegou a mão de Lúcia e levou-a aos lábios fitando-a amorosamente enquanto caminhavam na direção da porta da rua. Como a escola permanecia fechada no final de semana saíram de mãos dadas pelo corredor despreocupadamente. No entanto, ao passarem pela porta da secretaria, esta se abriu rapidamente para a passagem da Irmã Teodora que havia resolvido trabalhar na correção das provas de seus alunos naquele final de semana. Ao vê-las de mãos dadas a freira estancou e fitou-as com um olhar de incredulidade e reprovação. E embora Lúcia tenha soltado a mão de Ana instantaneamente ao perceber o barulho da porta, o movimento foi percebido pela freira que disparou:
– Mas o que significa isso?
Tanto Lúcia quanto Ana ficaram emudecidas. Lúcia empalideceu enquanto Irmã Teodora continuava num tom baixo e entre dentes:
– Mas que pouca vergonha é essa? Então foi esse o motivo da tua saída do convento, sua depravada? – disse dirigindo-se à Lúcia.
– Peraí! – interveio Ana – Olha lá como fala!
– E você, sua… sua…
– Sua o quê??? – desafiou Ana.
– Sapatona! Depravada! Eu sempre soube! Desde a primeira vez que te vi eu sabia que era uma sem-vergonha! Eu não me engano!
– Olha aqui… Você é uma freira, é mais velha do que eu, mas me respeita! Senão eu não respondo por mim! – disse Ana indo na direção da freira enquanto Lúcia a segurava pelo braço e pedia:
– Ana, por favor… não…
– Me solta, Lúcia! Essa mulher não vai ficar nos ofendendo assim não!
Irmã Teodora sorriu sarcasticamente e continuou:
– E ainda tem coragem de me ameaçar?…
– Não é ameaça! É um aviso! – disparou Ana enfurecida.
– Acho que a Madre deve ficar sabendo disso… – disse a freira enquanto se virava e caminhava na direção da porta principal da escola.
Ana se desvencilhou de Lúcia que tentava segura-la e foi atrás da Irmã, caminhando a passos largos. Ao alcança-la segurou-a pelo cotovelo fazendo com que ela se virasse para trás, encarando-a.
– Me solta, sua… ordinária! – disse a freira.
Ana continuou segurando-a pelo braço com firmeza.
– Muito bem… – disse Ana – Então se é pra falar com a Madre vamos nós duas! Eu também tenho umas revelações para fazer a ela.
Aos poucos foi soltando o braço da freira, enquanto continuava a falar agora num tom de voz mais baixo, porém com segurança e frieza:
– Se é para a Madre ficar sabendo sobre paixões… acho que ela deveria ser a primeira a saber quem é apaixonada por ela, ou não deveria?
– Eu não sei do que tu estás falando. – respondeu a Irmã Teodora ficando com o rosto descolorido gradualmente.
Ana continuou:
– Pois eu tenho certeza que sabe. Você diz que logo percebeu que eu era uma… sapatona? Não é mesmo? Pois eu tenho a mesma capacidade de reconhecer quem é igual a mim! Aliás, igual a mim um cacete! Muito pior que eu! EU sou mulher o suficiente para assumir o que eu sinto e não me esconder atrás de um hábito e de um véu, como umas e outras por aí!
Nesse instante a Irmã Teodora ficou lívida de fúria e levantou o braço na intenção de esbofetear Ana. No entanto a morena segurou seu braço no ar firmemente e continuou a falar em voz baixa e séria:
– Nunca mais faça isso!… – e foi baixando o braço da freira gradualmente, deixando a marca de seus dedos no pulso da mulher mais velha. – Acho realmente que a Madre deve ficar sabendo que uma de suas subordinadas morre de ciúmes dela e chega ao cúmulo de perseguir gratuitamente quem é estimada de forma especial por ela. Também deve ficar sabendo quem é capaz de qualquer coisa para ficar perto dela. Também deve ficar sabendo quem é a sapatona enrustida desse convento! A senhora não acha, Irmã?…
Nesse momento Lúcia chegou até elas. Estava pálida e trêmula. Não teve coragem de pronunciar uma palavra sequer. Ana ainda continuou:
– Olha aqui, a gente vai embora daqui a alguns dias… é só uma questão de poucos dias… e eu não estou com vontade de me incomodar até lá. Fui clara?
Ana soltou o pulso da freira que tinha a face rubra como um tomate maduro. As veias de seu pescoço pareciam estar prestes a explodir. A raiva saltava dos olhos dela. Virou-se abruptamente e deixou Lúcia e Ana em silêncio. Podia-se ouvir o som de suas passadas rápidas pelo corredor afastando-se rapidamente. Lúcia sentia o coração bater na garganta. Conseguiu respirar fundo e perguntar:
– E agora? Ela vai contar pra Madre!
– Não vai. – disse Ana.
– CLARO QUE VAI! – bradou Lúcia.
Ana aproximou-se dela abraçando-a e repetiu baixinho em seu ouvido:
– Não vai. Eu conheço a natureza humana. Ela não vai falar nada.
– Como tu tem tanta certeza?
– Por que tenho.
– Ana, é verdade o que tu disse pra ela?
– Claro que é! Eu tenho um “gaydar” muito apurado!
– Gaydar? O que é isso? – perguntou Lúcia.
Ana sorriu e respondeu:
– Um radar pra detectar gays.
– Eu nunca imaginei… – disse Lúcia boquiaberta.
– Pois eu sempre percebi. Bom, mas vamos parar de falar nessa senhora e vamos tocar a nossa vida. A cidade nos espera.
– Mas… Ana… E se ela falar pra Madre? – insistiu Lúcia.
– A gente vai embora hoje mesmo. Ficamos num hotel na cidade até a semana que vem, tu termina esse raio desse curso e a gente se manda! Eu tô liberada mesmo! Tu não deve nada pra ninguém, Lúcia! O máximo que a Madre pode fazer é te mandar embora, aliás, nos mandar embora.
– Mas eu não queria que fosse assim…
– Tudo bem, nem eu. E eu acho que não vai ser assim. Mas se for, paciência, ok?
– Tudo bem.
Ana abraçou Lúcia bem forte contra o peito e após conseguir deixa-la mais calma rumaram para a cidade. Ao retornarem, no fim da tarde, tudo estava tranqüilo. De fato a Irmã Teodora ficara quieta. Ana não havia se enganado.
Depois de quatro dias Lúcia fez sua argüição e conseguiu a aprovação em seu curso. Na semana seguinte as aulas findaram no colégio e somente alguns poucos alunos que ficaram em recuperação fizeram mais algumas aulas. Ao término da primeira semana de dezembro Lúcia estava definitivamente com suas atividades encerradas. Decidiu que não participaria da cerimônia de formatura, faria sua colação de grau em gabinete no decorrer do mês de janeiro. Seus pais não poderiam mesmo vir para a cerimônia de formatura. Além do quê ela e Ana estavam ansiosas para providenciar a mudança para a capital. Assim sendo decidiram partir na segunda-feira, dia nove de dezembro.
Ana combinou sua saída com a Madre e no domingo foi feito um almoço de despedida para ela. Lúcia não falou nada para ninguém que iria junto. Resolvera despedir-se por carta, depois de haver partido. Na verdade a despedida de Ana valeu como sendo sua também. Somente a Irmã Teodora não participou do almoço, alegando estar indisposta e ficando recolhida em seu quarto durante todo o dia.
Na segunda-feira bem cedo Ana já estava com tudo pronto em sua Kombi. Despediu-se da Madre e de suas grandes amigas, Irmã Celestina e Irmã Sebastiana. Irmã Celestina preparou uma grande quantidade de bolos, doces, pães e sanduíches para a viagem. Fez Ana prometer que as visitaria com freqüência.
A morena virou a chave na ignição e acenou para as freiras que cercaram seu veículo. Dirigiu na direção do portão principal vagarosamente olhando pelo retrovisor a paisagem e as pessoas que estava deixando para trás. Ao fazer a segunda curva da estrada avistou uma figura pequena com três malas, uma valise de mão e um urso branco embaixo do braço a espera-la na beira da estrada. Sorriu e estacionou o veículo. Perguntou sedutoramente:
– A moça está sozinha?…
– Estava. Agora acho que não mais. – respondeu Lúcia embarcando na Kombi e jogando suas malas no banco de trás.
Empoleirada no último banco da Kombi, em cima de umas caixas de ferramentas, Peninha cacarejava alegremente. Parecia entender que estavam se dirigindo para um começo de vida, para uma busca de felicidade, para um final feliz como nos contos de fadas.
Quando a Madre instalou-se em sua mesa na secretaria da escola e abriu a sua gaveta para pegar seu material de trabalho, deparou-se com um envelope branco onde se lia: “Para Madre Lídia”. Reconheceu a letra de Lúcia e estranhou o fato dela ter deixado uma correspondência ali. Abriu o envelope, colocou seus óculos de aros dourados na ponta do nariz e começou a ler o conteúdo redigido naquela caligrafia tão conhecida:
“Querida Madre,
Antes de qualquer coisa eu gostaria de dizer-lhe o quanto a sua amizade, a sua compreensão e o seu apoio foram fundamentais para mim, ajudando-me a superar todas as dificuldades que se apresentaram no tempo em que passei aqui com vocês, no convento. A senhora, com toda a certeza, foi a minha segunda mãe, e eu aprendi a amá-la e a respeita-la por suas atitudes e condutas frente à vida. Sua fé me deu forças e sua bondade me deu exemplo. E eu quero lhe dizer que jamais conseguirei expressar em palavras o quanto lhe sou grata, para sempre. Hoje, minha querida amiga, estou deixando definitivamente esta cidade que eu aprendi a amar e estou dando um novo rumo à minha vida. E se lhe deixo estas palavras como despedida foi por absoluta falta de coragem de dize-las pessoalmente. Infelizmente não tenho a sua firmeza e a sua força. Já fazia algum tempo que eu vinha questionando o rumo que daria à minha vida. Até pouco tempo atrás eu tinha a firme convicção de que serviria a Deus como freira. Hoje tenho certeza que não é este o meu destino. Na verdade desde que eu conheci a Ana me dei conta de que o mundo é imensamente maior e mais diversificado do que eu ingenuamente imaginava que fosse. E percebi várias outras coisas também… uma delas, e certamente a mais importante de todas, é que eu quero ficar com ela. E hoje estamos indo embora juntas. Por favor, eu lhe peço que não me queira mal por isso, nem a ela. Ana é certamente uma das pessoas mais corretas e de melhor caráter que eu já conheci. E eu sei que a senhora sabe disso. Um dia, quem sabe, voltarei para visitá-la, se a senhora o permitir. A manterei informada sobre meu endereço, assim que o tiver em definitivo. Peço que me desculpe se frustrei as suas expectativas a meu respeito e se não fui a pessoa que a senhora gostaria que eu fosse. Mas tenha a certeza absoluta que, aonde quer que o destino me leve, eu a levarei comigo dentro do meu coração, como uma das melhores pessoas que eu já conheci. Do fundo do meu coração eu lhe agradeço tudo o que fez por mim. Muito obrigada mesmo. Um grande e afetuoso abraço desta eternamente grata, Lúcia”.
A Madre terminou de ler a pequena carta, tirou seus óculos e os depositou cuidadosamente sobre a folha de papel que acabara de ler. Com o semblante sereno limitou-se a balançar a cabeça num gesto que exprimia um misto de lamento e aceitação de um fato consumado. Novamente dobrou o pedaço de papel colocando-o entre as páginas de sua agenda pessoal. Respirou fundo e disse em voz baixa, para si mesmo: “Que Deus te acompanhe, minha filha”. Levantou-se e tratou de dar andamento às suas atividades diárias na escola e no convento.
Na cozinha e na rouparia as Irmãs Celestina e Sebastiana acharam duas cartas de igual teor, cada qual com sua especificidade e seu agradecimento especial. A Irmã Celestina deu uma risadinha sapeca e guardou a carta dentro do bolso de seu hábito cinzento. A Irmã Sebastiana, com sua ingenuidade, pensou: “Que bom que a Lúcia arrumou uma boa amiga”… E também guardou seu bilhete dentro de seu livro de rezas.
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Três anos depois…
Fazia bastante calor naquele final de tarde de dezembro. No dia seguinte a nova estação faria sua entrada oficial no calendário e o dia mais longo do ano marcaria o solstício de verão.
Lúcia tirou o pão-de-ló do forno e montou a torta de abacaxi e fios de ovos, a preferida de Ana. A cobertura branca de merengue recebeu alguns confeitos coloridos e uma vela com o número 36. Lúcia apressou-se, pois queria terminar sua obra de arte antes que Ana chegasse em casa. Depois de colocar a torta na geladeira tomou um banho rápido e se vestiu para espera-la. Era o terceiro aniversário de sua mulher que passavam juntas. Logo Ana chegaria do trabalho e elas haviam combinado de jantar juntas numa churrascaria.
Colocou um vestido verde que realçava a cor de seus olhos e borrifou o perfume preferido de Ana na nuca. Queria estar bela para receber seu amor naquele dia especial.
Assim que terminou de pentear os cabelos ouviu o barulho do portão de casa e identificou o ruído do motor do Gol branco estacionando em frente à porta de entrada. Desceu a escadaria correndo e se jogou nos braços de Ana assim que esta cruzou o marco da porta.
– Feliz Aniversário, amor!!!
Ana sorriu e a suspendeu no ar enquanto a beijava com paixão.
– Huuummm… que recepção calorosa… – disse Ana ainda com Lúcia suspensa nos braços.
– A minha mulher merece!
– Huumm… e falando em mulher… que mulher mais perfumada… – disse Ana enquanto acarinhava a nuca de Lúcia com o nariz – …e linda! – arrematou.
– São teus olhos… – disse Lúcia modestamente – Agora anda, vai te arrumar pra gente sair!
– Sim senhora! É pra já. – respondeu Ana.
Enquanto a morena tomava um banho relaxante, após um dia árduo de serviço, Lúcia colocava a torta sobre a mesa para lhe fazer uma surpresa. Subitamente viu-se fazendo uma retrospectiva mental dos últimos três anos. Lembrava-se perfeitamente do dia em que chegaram a Porto Alegre e Ana a levara para mostrar-lhe o terreno que possuíam. Recordava-se de ter se encantado com o lugar. Apesar de ter uma boa infraestrutura, aquele bairro não havia perdido o ar de interior devido a imensa quantidade de árvores e a inexistência de prédios altos. Ficaram por duas semanas na casa de um amigo de Ana, até que a casinha popular pré-fabricada de madeira que adquiriram fosse montada bem nos fundos do terreno. Foi o que o dinheiro que Ana tinha guardado deu para comprar. Mudaram-se em seguida e Ana logo fez uma boa clientela ajudada pela propaganda boca a boca que seu trabalho minucioso e caprichado lhe oportunizava. Lúcia foi contratada como professora numa escola particular lecionando nos turnos da manhã e tarde. Com as duas trabalhando começaram a adquirir material de construção para a casa que planejavam fazer dentro em breve. Nesta ocasião a sorte sorriu para as duas. Atraídas por anúncios de concursos públicos, ambas se inscreveram. Ana para o cargo de motorista do Tribunal de Justiça, que exigia ensino médio e Lúcia para professora em escola municipal. Estudaram exaustivamente e o resultado foi o esperado. Em menos de um ano residindo na capital haviam conseguido uma colocação formal no mercado de trabalho, com salários que possibilitavam concretizar o sonho de ver a nova casa sendo edificada. Ana trabalhava no centro da cidade e Lúcia havia conseguido um contrato de 40 horas em escola do município que lhe pagava difícil acesso, embora não ficasse muito longe de sua casa.
Lúcia e Ana fizeram o desenho da planta da casa nova juntas, e sonharam cada parte da construção, desde o jardim até a sacada em “U” que possibilitava vislumbrar tanto o nascente quanto o poente. A casa que construíram era uma residência simples, porém muito confortável. Tinha dois pisos, sendo que na parte de baixo havia uma cozinha e sala ampla, um quarto e um banheiro, além de um quartinho anexo à área de serviço usado para guardar materiais de limpeza e afins. No andar de cima havia dois quartos, um deles suíte, e um lavabo. No fundo do quintal ainda existia a pequena casa de madeira, que Ana transformou em oficina. Ao lado da casa elas fizeram uma garagem espaçosa com uma churrasqueira e um pequeno banheiro. Assim o sonho de terem o cantinho delas estava enfim materializado.
Lúcia já havia levado Ana para conhecer a sua família, porém a apresentou como uma amiga com a qual dividia a casa na capital. Achou melhor não falar aos seus pais sobre o relacionamento com Ana, uma vez que eram pessoas simples do interior e não entenderiam a escolha delas. Por certo acabariam sofrendo. Preferiram não entrar em detalhes, afinal não conviviam perto mesmo e nas eventuais visitas não viam necessidade de tornar explícita a sua intimidade. Combinaram de não mentir caso fossem questionadas, mas se não, ficariam caladas. E assim foi feito.
Ana ainda não havia levado Lúcia para conhecer seus familiares no Rio de Janeiro, embora aquele fosse o projeto das próximas férias, que tirariam juntas no mês de abril do ano seguinte. E valeria o mesmo combinado com a família de Ana.
Elas fizeram três visitas ao convento naqueles três anos que se passaram. Na primeira a Madre mostrou-se um pouco espantada ao vê-las, porém não deixou de demonstrar afeto para com elas, principalmente para com Lúcia. A Irmã Teodora continuava lá, sempre na sombra da Madre, e não se dignou a cumprimenta-las quando cruzou com elas no corredor do convento. Foi a Irmã Celestina quem mais se alegrou ao rever as amigas.
A segunda vez que retornaram a Vale Verde foi para o enterro da Irmã Sebastiana, que morreu assim como viveu toda sua vida: feliz. Morreu dormindo, como só alguns poucos têm merecimento. E sabedora da afeição de Lúcia por ela a Madre não podia deixar de comunica-la.
A terceira visita que fizeram ao convento foi a convite da Irmã Celestina, pela passagem de seu jubileu de vida religiosa.
Lúcia foi trazida de volta à realidade pela voz de Ana que vinha pelo corredor e chamava por ela:
– Tô pronta, patroa!
Lúcia rapidamente acendeu as velinhas e quando Ana irrompeu na cozinha começou a cantar o “Parabéns a Você”. Ao terminar Lúcia beijou Ana com doçura e lhe disse no ouvido:
– Feliz Aniversário… Te desejo toda a felicidade do mundo… Tu merece. – e lhe estendeu um embrulho num papel vermelho brilhante.
– Eu já tenho toda a felicidade do mundo. Tenho a mulher que eu amo, a nossa casa, o nosso trabalho, saúde… não preciso de mais nada. – respondeu Ana beijando Lúcia na boca para em seguida abrir seu presente.
Era uma agenda de capa alaranjada e cujo desenho frontal era uma boneca loira, estilizada e discreta, que se parecia muito com Lúcia. Dentro da agenda havia um vale-CD que podia ser trocado em qualquer uma das lojas do shopping Praia de Belas. Ana riu-se e agradeceu contente:
– Amor… é linda, obrigada.
– Agora apaga as velinhas!!! – disse Lúcia – E faz um pedido!
– Tá bom… Deixa eu ver… já sei. – e assoprou com força apagando as velinhas.
– O que foi que tu pediu? – quis saber Lúcia.
– Segredo… – disse Ana.
– Ai que saco! Tu sabe que eu não gosto de segredinhos… Me conta?… – pediu sorrindo e franzindo o nariz, de um jeito que Ana não conseguia dizer não.
– Tá bom, eu conto. Eu pedi pra nossa vida ser sempre assim. Feliz.
Novamente Lúcia se jogou em seus braços. Beijaram-se com amor.
– Vamos então? – disse Ana – Ou será que não valeu o meu esforço de me arrumar toda pra sair?
– Tu tá uma gata, sabia? – disse Lúcia reparando na calça jeans justa e na camisa de linho azul claro cuja gola ostentava um delicado toque feminino, no bordado com a linha da mesma cor do tecido. – Tomara que nenhuma sirigaita resolva te passar uma cantada, senão eu vou ser obrigada a usar as minhas garras – e fez um gesto teatral com as mãos.
Ana foi obrigada a rir imaginando Lúcia engalfinhada com alguma mulher no restaurante.
– Não tem perigo, não… Eu só tenho olhos pra minha gata… – disse Ana sedutoramente.
– Assim está bom, então.
Elas saíram para jantar e depois resolveram voltar para casa, para terminar as comemorações embaixo dos lençóis.
Mal haviam cruzado a porta de entrada e Ana abraçou Lúcia pela cintura suspendendo-a no ar:
– Agora eu quero a segunda parte do meu presente… – disse com a voz rouca de excitação.
– Pois não… – disse Lúcia sedutoramente – Faça com essa escrava o que bem desejar…
– Uuuuummm… Tô gostando dessa conversa… – respondeu Ana conduzindo Lúcia pela mão até o quarto delas.
– A minha dona e senhora não gostaria de uma fatia de torta de aniversário antes de se deitar? – perguntou Lúcia.
– Amanhã. Agora o doce que eu quero é outro…
Ao chegarem na borda da cama Ana, com agilidade, suspendeu o vestido de Lúcia tirando-o pelo alto de sua cabeça. Enquanto Ana abria o fecho de sua calça jeans, Lúcia desabotoava sua blusa e arrancava seu sutiã rendado. Ana abraçou sua mulher e em menos de vinte segundos estavam totalmente nuas, mergulhadas uma nos braços da outra. Ana adorava sentir a textura da pele alva de Lúcia em suas mãos. O toque macio e acetinado nos pêlos dourados deixava-a totalmente excitada. E Lúcia amava a carícia das mãos de Ana em suas costas. Adorava sentir o toque firme e amoroso daqueles dedos em seu corpo. Amava o cheiro de Ana, principalmente quando estava excitada e exalava um odor agridoce e sensual. Lúcia deitou-se de costas abrindo suas pernas e oferecendo-se para receber sua mulher entre elas. Ana levou sua boca até o sexo de sua amada e sugou-a com paixão, enquanto ela se contorcia de prazer. Em seguida esgueirou-se e sugou-lhe os seios excitados. Num giro de corpo Lúcia virou-se e se posicionou de modo a lamber o sexo encharcado de Ana, que gemia prazerosamente. Perdidas de amor encaixaram-se de modo a permitir que os sexos umedecidos e ardentes se esfregassem um no outro. Os movimentos dos quadris se intensificaram enquanto ambas sentiam jorrar o gozo de dentro delas. Sem conseguir mais conter a torrente de prazer explodiram uma de encontro à outra, sentindo a intensidade do orgasmo invadindo os corpos entesados. Logo em seguida abraçaram-se amorosamente enquanto as pulsações lentamente voltavam ao normal. Ainda abraçadas confidenciavam:
– Cada vez que a gente se ama eu me dou conta que eu te amo cada vez mais, sabia?… – disse Ana.
– Eu também… – respondeu Lúcia.
– Eu podia morrer nos teus braços que eu morreria feliz… – disse Ana.
– Não diz bobagem, mulher… Que eu te quero bem viva!
Ana riu-se enquanto afagava os cabelos de Lúcia. A loirinha beijou-lhe a boca e perguntou com cara sapeca:
– Ainda tem mais presente para essa noite… – e recomeçou a acaricia-la reacendendo a chama da paixão e do desejo.
Na madrugada cochilaram abraçadas até que Ana despertou com o movimento de Lúcia que se ajeitava em seus braços.
– Acordada? – perguntou Ana bem baixinho.
– Mais ou menos…
– Perdeu o sono?…
– Acho que tô com fome… – disse Lúcia sorrindo e franzindo o nariz.
– Huumm… Acho então que a situação exige um pedaço da minha torta de aniversário…
– Ótima idéia! – exclamou Lúcia – Eu vou buscar! – e levantou-se num pulo antes que Ana pudesse se oferecer para pegar o bolo.
Quando Lúcia retornou com duas fatias de bolo servidas e dois copos de suco de laranja gelado numa bandeja de madeira, viu que Ana estava na sacada do quarto e olhava na direção do nascente. A morena havia jogado uma camiseta comprida sobre o corpo esguio e contemplava o horizonte que ostentava um filete de luz avermelhada, sinal evidente de que em breve o sol despontaria para trazer claridade àquela parte do mundo.
Lúcia depositou a bandeja no criado mudo e também foi para a sacada após colocar um chambre de algodão sobre o corpo nu. Abraçou Ana pela cintura e perguntou:
– Tá pensando no quê?
– Na nossa vida…
– Na nossa vida???
– É. Em como o destino promove encontros quando menos se espera.
– Pois é… – concordou Lúcia.
– Eu nunca imaginaria que numa situação tão complicada como foi a minha ida para Vale Verde eu encontraria o amor da minha vida, o verdadeiro motivo do meu existir, a mulher que eu quero pra sempre perto de mim. E mais ainda… Você se deu conta como a nossa vida deu um giro de 180° nesses últimos anos?
– Com certeza… E eu agradeço aos céus todos os dias por ter te colocado na minha vida. – respondeu Lúcia.
– Eu também, meu amor, eu também.
– Que tal a gente agora deixar a filosofia de lado e comer o nosso bolinho que está esperando?
– Boa idéia…
E elas trataram de devorar o bolo de abacaxi e fios de ovos, entre beijos, carícias e juras de amor eterno. Enquanto isso o sol emergia por detrás do morro esverdeado que enfeitava a paisagem do leste. Os pássaros começaram a gorjear num tributo de alegria à alvorada. As estrelas se esconderam tímidas, prontas para reaparecerem quando o manto da noite novamente ocultar o astro-rei. Os ruídos característicos das atividades diurnas evidenciavam que o dia havia enfim amanhecido.
E enquanto algumas pessoas se deslocavam para o trabalho, as crianças brincavam nas ruas e nos quintais e o mundo todo parecia despertar, as amantes adormeciam abraçadas e felizes, afinal era sábado. E elas sabiam que muitos finais de semana ainda haviam por vir. E tinham a certeza de que em todos eles estariam juntas, felizes pelo encontro que o destino havia promovido ao uni-las naquele longínquo povoado de Vale Verde.
E assim foi.
FIM
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