Presságios
por DietrichO sol da tarde tocava de leve as tábuas do chão da varanda, refletindo-se nos fios dourados dos cabelos curtos que, de tempos em tempos, se moviam com a brisa. A mulher mantinha os olhos fixos no horizonte distante, onde as colinas da Estíria se desenhavam contra o céu claro. Seus dedos brincavam com um lápis, fazendo-o girar com movimentos quase imperceptíveis. À sua frente, apoiado na sua coxa esquerda, um caderno repousava, as folhas abertas, intocadas, aguardando pacientemente a primeira palavra. O silêncio ao redor era quebrado apenas pelo som do vento passando pelos campos. O lápis parou por um instante entre seus dedos, e ela o pousou no canto da página.
O momento foi interrompido pelo som distante de cascos que ressoavam pelo chão de terra. Primeiramente longínquo, depois mais nítido, o ritmo constante do galope arranhava a calma que envolvia a varanda. Ela ergueu a cabeça, virando-se na direção do som com um sorriso que surgiu antes mesmo de avistar a cavaleira.
Quando a figura da mulher surgiu no horizonte, cavalgando com o corpo alinhado ao ritmo do animal, um calor se espalhou pelo peito da jovem. Seus olhos brilharam, e o rodar distraído do lápis foi interrompido.
Ela se levantou, desceu os poucos degraus que separavam a varanda do chão de terra, e caminhou até a cavaleira, sorridente. A alta mulher de cabelos morenos desmontou do cavalo com a mesma perícia com que o cavalgava, se aproximou e depositou um beijo suave nos lábios da mulher menor.
– Espero não ter atrapalhado sua escrita – comentou a morena.
– Nah, não estava saindo nada mesmo – a pequena loira deu de ombros.
– Isso é ruim? Afinal viemos para esse fim de mundo para você ter paz e se concentrar…
– Xena, chegamos aqui não tem nem um mês. Sinceramente, acho que estou só apreciando a paz e o silêncio por esses dias. As palavras virão quando for a hora – a loira passou a mão nos longos cabelos pretos da outra – e você? Já está entediada?
– Definitivamente não – a morena soltou as rédeas do cavalo e deu-lhe um tapinha leve na traseira, e o animal começou a se afastar trotando de leve – muita floresta para explorar, muitos rios, e cuidar desses cavalos está sendo uma verdadeira aventura. Além do mais – Xena avançou e levantou a loira pela cintura, que deu uma gargalhada, logo interrompida por um beijo apaixonado – eu tenho como me distrair…
Gabrielle sentiu a paixão se acender em seu corpo, e não recuou quando a guerreira a carregou para dentro da enorme casa.
***
A sensação de sufocamento era angustiante. Era como se uma criatura muito pesada a pressionasse contra a cama. Ela não tinha certeza se estava acordada ou dormindo. Estendeu a mão, buscando a de Xena, e apavorou-se quando não encontrou nada. O quarto parecia feito de pura escuridão e ela teve a nítida sensação de duas agulhas afiadas penetrando em algum lugar pouco acima do seu seio esquerdo. Ela sentiu algo líquido escorrer por seu peito e um entorpecimento não de todo desagradável se espalhar por todo seu corpo. Uma sensação de desmaio se apossou, e ela perdeu a consciência. Repentinamente, seu coração disparou e ela acordou com um grito.
– Xena? – ela buscou, assustada, a mulher ao seu lado, que já estava acordada e com uma expressão preocupada.
– Gabrielle, o que houve? – Xena abraçou a trêmula mulher.
– Deuses! Tive um pesadelo estranhíssimo – Gabrielle estava ofegante e a sensação de entorpecimento e enlevo do sonho ainda estava presente, mesmo ela estando acordada. Ela se afastou de Xena e apontou para onde tinha sentido a perfuração – Xena tem alguma marca aqui?
A morena coçou a cabeça, meio embaraçada.
– Nossa, Gabrielle, não sabia que isso te incomodava, eu posso tomar mais cuidado se…
Gabrielle deu uma risada leve e revirou os olhos.
– Não to falando disso, boba. Tive a sensação de presas afiadas me mordendo aqui, dá uma olhada?
Xena, parecendo meio contrariada, investigou o local que Gabrielle apontava com atenção e não viu nada de estranho.
– Não tem nada aí, Gabrielle – olhou para a loira carinhosamente e deu-lhe um beijo na cabeça – será que não está simplesmente impressionada com as histórias que o pessoal do vilarejo contou sobre aquelas ruínas que tem aqui perto de nossa casa?
– Xena, já tivemos nossa parcela de encontro com forças sobrenaturais.
– Sim, mas não é assim nessa era – Xena comentou – nesse tempo, essas coisas são apenas superstições. Quem domina é a ciência, a mesma prática que nos trouxe de volta. Bem, você saberia mais que eu, já que leu todos aqueles livros de ciências.
– É, eu sei. Você está certa. Meu eu imaginativo está apenas criando sonhos bizarros.
– Quem sabe não é uma nova história surgindo.
– Hum. Nessa era existem tantas histórias sobre vampiros que não sei se conseguiria escrever algo realmente original sobre.
– Que tal – Xena voltou a se deitar – pensarmos sobre isso amanhã?
– Tem razão – Gabrielle riu – desculpa te acordar.
– Vem cá – Xena puxou Gabrielle e a fez deitar-se em seu ombro – dorme aqui que nenhum bicho te pega.
– Chata – disse Gabrielle, dando um soco brincalhão no braço de Xena, mas caindo no sono quase imediatamente.
****
Gabrielle despertou com o aroma reconfortante de café flutuando pelo ar, mesclado ao cheiro de pão fresco. A luz da manhã se filtrava pelas cortinas, tingindo o quarto de dourado, e a brisa que entrava pela janela trazia consigo o cheiro da terra úmida e dos campos ao redor da casa. Espreguiçando-se lentamente, Gabrielle notou a ausência de Xena ao seu lado.
Ela deslizou para fora da cama, os pés descalços encontrando o chão de madeira fria, e seguiu o som baixo de panelas e o murmúrio da água fervendo. Na cozinha, Xena estava de pé junto ao fogão, mexendo a cafeteira.
Gabrielle a observou por um momento, um sorriso surgindo em seu rosto ao vê-la tão concentrada na tarefa simples de preparar o café da manhã. Xena pareceu finalmente notar sua presença e fez um gesto com a cabeça, apontando para a mesa. Gabrielle se sentou e Xena serviu para ambas o café, com pão caseiro fresco e manteiga.
Enquanto comiam em silêncio, Gabrielle notou um olhar pensativo no rosto de Xena.
– Xena – ela murmurou, franzindo a testa com curiosidade – está tudo bem?
– Nada de mais, de verdade – a guerreira tentou demonstrar displicência – tive um sonho estranho também, depois que voltamos a dormir.
Gabrielle sentiu a paz de espírito com a qual tinha acordado manchar-se com uma leve inquietação, mas tentou não demonstrar.
– Me conta.
– Bem… – Xena fez uma expressão de quem tentava lembrar algo distante – sonhei que o quarto inteiro estava muito escuro… e que você não estava comigo. Ao pé da cama tinha uma mulher loira de cabelos longos, com um vestido branco. A boca dela, o pescoço e o vestido estavam manchados de sangue. Ela caminhou até ao meu lado, na cama, e disse “Ajude-nos”. Eu tentava me mexer e não conseguia. Ela ajoelhou ao meu lado, e ficou repetindo: ajude-nos, ajude-nos… Até que eu acordei.
Gabrielle sentiu a boca ficar levemente dormente e depositou o pão no prato, respirando profundamente. Xena observou a expressão dela e falou num tom que tentava ser apaziguador:
– Parece que também sou suscetível a me impressionar, claramente fui influenciada pelo seu pesadelo. Não deve ser nada de mais, Gabrielle.
Gabrielle deu um sorriso sem graça e tentou pensar como Xena, mas a dúvida já tinha se instalado no seu coração.
– Só pela minha paz de espírito, acho que vou dar um pulo na biblioteca do vilarejo hoje. Aprender mais sobre o folclore local.
– Quer que eu vá com você? – perguntou Xena.
– Sim, tenho certeza que você quer passar horas comigo entre livros – riu Gabrielle – não precisa, Xena, procura algo mais a tua cara para fazer.
– Ok, ok – respondeu Xena. Pensou por uns instantes e falou – enquanto você faz a pesquisa bibliográfica, vou fazer uma pesquisa de campo. Vou dar uma olhada naquelas ruínas.
– Leve suas armas – falou Gabrielle.
– Com certeza – respondeu Xena – deve ter ratazanas gigantescas por lá.
***
Gabrielle empurrou a porta pesada de madeira da pequena biblioteca, ouvindo o som do sino pendurado anunciar sua chegada. O cheiro de livros antigos e papel permeava o ar, uma mistura de madeira envelhecida e tinta desbotada. O ambiente era iluminado por janelas amplas que deixavam a luz do sol se derramar sobre estantes abarrotadas. Para uma cidade pequena, a biblioteca era surpreendentemente bem equipada, com corredores organizados e longas fileiras de volumes diversos.
Enquanto caminhava pelo corredor principal, avistou uma mulher atrás do balcão. Loira, de cabelos longos que caíam como uma cascata sobre os ombros, a atendente lhe sorriu com simpatia assim que percebeu sua aproximação.
– Bom dia! Posso te ajudar com algo? – a voz da mulher era calorosa, combinando com seu sorriso acolhedor.
Gabrielle retribuiu o sorriso, sentindo-se à vontade. Aproximou-se do balcão, seus olhos ainda curiosos percorrendo as estantes antes de voltar para a atendente.
– Sim, estou procurando livros sobre a história local, e talvez algo sobre o folclore da região. Você tem algo sobre isso?
A atendente assentiu de imediato, seus olhos brilhando com entusiasmo.
– Temos sim, vários livros interessantes sobre o assunto. A história daqui é rica, cheia de detalhes fascinantes, e o folclore local, bem, há muitas lendas por aqui. Eu vou te mostrar onde encontrá-los.
– Na verdade, estou procurando algo ainda mais específico. Você teria algo sobre vampiros?
O sorriso caloroso da mulher pareceu se apagar um pouco. Gabrielle percebeu a mudança.
– É que estou… hum… fazendo uma pesquisa para um livro que estou escrevendo. Sou escritora. – continuou Gabrielle.
A moça pareceu fazer força para recuperar sua prontidão no atendimento.
– Temos livros sobre esse assunto sim. Por favor, me siga.
Enquanto caminhavam pelos corredores, Gabrielle tentou puxar conversa.
– Qual seu nome? – perguntou à atendente.
– Meu nome é meio estranho – a moça deu um risinho – me chamo Ulara.
– Realmente é um nome diferente – Gabrielle comentou – prazer Ulara, me chamo Gabrielle.
– O prazer é meu, Gabrielle – ela parou diante de uma estante – bem, Gabrielle, aqui temos os essenciais. Clássicos da literatura como Drácula, O Vampiro. Os mais recentes, como os da Anne Rice, e os young adult como Crepúsculo. Temos também os mais voltados para o folclore local e…
– E esse? – Gabrielle pegou um título em particular, de lombada vermelha, que a atendente parecia ter pulado.
– Ah, um clássico – comentou Ulara, e Gabrielle pensou ver a moça engolir em seco e as mãos dela tremerem um pouco – Carmilla. Esse especificamente é bem importante, porque o autor ambientou a história aqui na Estíria.
– Algo me diz que esse é o livro que estou procurando – disse Gabrielle e teve certeza que a moça arregalou um pouco os olhos – e mais esses aqui – pegou alguns mais acadêmicos – vou dar uma olhada neles aqui mesmo, tudo bem?
– Claro, fique à vontade. Nossas mesas de estudo estão ali – Ulara apontou – qualquer coisa que precisar basta me chamar.
– Obrigada – Gabrielle sentou-se à uma das mesas e observou a mulher voltar ao balcão. Ficou olhando-a por um tempo e surpreendeu-a virando-se para olha-lá e virando os olhos rapidamente, como se tivesse sido flagrada.
Gabrielle ergueu uma sobrancelha e sacudiu a cabeça. Talvez tivesse apenas imaginando coisas. Resolveu concentrar-se na leitura.