Uma história de Rose Angel

Abril/2004

Desde a morte de Xena, Gabrielle havia perdido o brilho dos olhos. Portando as cinzas de Xena, logo após a despedida no Monte Fuji, partiu em direção ao Egito, porém não conseguiu permanecer por lá mais do que duas semanas, sempre vagando de um lugar para outro. A nítida sensação de que Xena estava constantemente a seu lado foi pouco a pouco se desfazendo pela dor da ausência física.  Gabrielle decidiu voltar para a Grécia, passou em quase todas as cidades, porém não conseguia ficar no mesmo lugar por mais de dois ou três dias. Havia se transformado num ser humano errante, em busca de algo que sabia nunca encontrar. A lembrança de sua amada Xena não lhe saía do pensamento nunca. Durante os dias buscava Xena na natureza, nas florestas, nos pássaros, nas cachoeiras, no tropel dos cavalos selvagens, no gorjeio dos pássaros, no cântico dos ventos. À noite continuava sua busca na luz das estrelas, no reflexo da lua, no pio das corujas, na escuridão das sombras. Quando conseguia conciliar o sono sonhava com Xena, e estes eram seus momentos mais felizes. Quando despertava seu coração tornava a doer, e sentia-se só.

Sem Xena era como se o planeta e todo o universo de Gabrielle tivessem perdido o colorido e o encanto. Seus poemas, outrora cânticos de louvor à vida, transformaram-se em tristes lamentos de dor e de saudade. Quando fechava os olhos conseguia vislumbrar o doce sorriso e as gargalhadas daquela que tanto amava, seus trejeitos e gestos habituais. Inúmeras vezes conversava com Xena em voz alta e chegava a ouvir as respostas, pois sabia exatamente o que ela diria, em qualquer situação. O que mais lhe doía era esse sentimento de “nunca mais”, pelo menos neste plano, e a abstração que por vezes conseguia realizar, idealizando um encontro futuro em outra dimensão, tinha o amargo sabor do longínquo, do desejado que nunca chega… ou que levaria uma eternidade para acontecer. E Gabrielle ansiava por Xena no agora. Sentia falta do toque de suas mãos, de seu corpo, de afagar seus cabelos, de dormir agarradinha e aconchegada nos seus braços, dos momentos de intimidade, quando faziam amor e se diluíam em total entrega, materializando-se numa única pessoa. Gabrielle sentia falta da cumplicidade e até mesmo das rabugices e das implicâncias de sua companheira de toda a vida. Sim… de toda a vida. Foi essa a promessa que fizeram reciprocamente na noite em que se amaram pela primeira vez. E era como se Xena não houvesse cumprido a sua parte… Gabrielle conhecia os motivos de Xena, porém seu coração não aceitava esses motivos e sofria cada minuto de separação.

Por vezes a poetiza sentia seu coração como que se rasgando ao meio, tamanha a dor.  Em outras ocasiões chegou a pensar em pôr fim à própria vida, para enfim juntar-se à Xena, mas logo em seguida recordava da luta de sua companheira pela defesa da vida, de quem quer que fosse, e desistia de seu intento. De fato Gabrielle estava prisioneira de seu destino, um destino que teria de seguir sem Xena. E Gabrielle definhava aos poucos… de dor e de saudade.

Quando a rainha amazona passou em Amphipolis adquiriu um tecido de seda vermelha e um pedaço de couro, com os quais confeccionou ela própria, ponto a ponto, uma pequena bolsa cuja parte externa era de couro e o interior com forro de seda. Nela depositou as cinzas de Xena, sendo que o pote onde repousavam as cinzas até então, colocou ao lado do túmulo de seu irmão Lyceus. Desde aquele dia Gabrielle pendurou a bolsa junto a seu corpo, nunca se separando dela. Desta forma era como se Xena a tocasse constantemente, mais que isso, passasse a fazer parte dela mesma, como uma extensão de seu corpo, como um apêndice de sua alma. Gabrielle partiu logo de Amphipolis, pois sem Xena era como se fosse uma aldeia qualquer, havia perdido o sentido de lar.

Na verdade era assim que Gabrielle se sentia: sem lar, sem pátria. Desde que encontrou Xena pela primeira vez descobriu nela um porto seguro, um norte, uma família, um verdadeiro lar. E agora se sentia sem nenhuma referência de tempo e de espaço. Vagava de um nada para lugar nenhum. Pobre Gabrielle…  Em determinado momento, assolada pelo sentimento de total solidão, sentiu necessidade de abraçar sua irmã Lila. E resolveu retornar à sua cidade natal, Potedia.

Viajava na garupa de uma pequena mula, Miosótis, a qual recebeu em troca de alguns de seus poemas. Gabrielle vinha sobrevivendo graças aos seus escritos, os quais lhe rendiam o alimento e por vezes algum pernoite. Era só do que precisava. Possuía apenas algumas poucas peças de roupa. Seu bem maior carregava junto ao peito, as cinzas de Xena, as quais defenderia com a própria vida, e dentro dele: a lembrança eterna de Xena no seu coração. Outro bem que carregava era o chakran de Xena, sendo que o lustrava todos os dias, como se esperasse pelo retorno de sua dona, e Gabrielle bem sabia a estima que Xena nutria pelo seu chakran, logo não poderia desaponta-la. Talvez fosse essa remota ilusão que mantivesse Gabrielle viva.  Chegando em Potedia Gabrielle vai até a casa de sua irmã Lila. Já havia se passado mais da metade da tarde e Gabrielle desmonta languidamente de Miosótis, parando em frente à casa que fora seu primeiro lar. Contempla os campos ao fundo e a casa humilde que parecia não ter sofrido modificação nenhuma nesses longos anos em que esteve ausente. Pensa em como havia sido feliz ali na infância. E em como havia ficado feliz no dia em que descobriu que Xena a amava e a desejava tanto quanto ela. Lembra ainda de como Xena a havia salvado das garras de Kirylus e da fúria e despeito de Ares, trazendo-a em segurança para aquela casa. E nos beijos ardentes que trocaram naquele alpendre na entrada da casa. E já haviam se passado anos…  Não fosse por Ares a história delas poderia ter sido diferente. No dia em que planejaram salvar Eva dos deuses que queriam mata-la Ares interferiu mudando completamente o destino de Xena e Gabrielle. Pensando estarem mortas Ares levou os corpos de Xena e Gabrielle até uma caverna numa geleira e os depositou numa tumba de gelo, selando a entrada. Após muito tempo o gelo derreteu e ambas acordaram do sono artificial provocado pelas lágrimas de Celesta. Ao saírem da caverna descobriram que haviam se passado vinte e cinco anos. E tudo mudara… Eva havia se transformado em Lívia, a devassa de Roma, e depois novamente em Eva, os pais de Gabrielle foram mortos, assim como o marido de Lila. A mãe de Xena, Cyrene, também foi morta pelas forças do mal e queimada numa fogueira sob acusação de bruxaria… Maldito Ares, pensou Gabrielle. Se não tivesse interferido e elas tivessem conseguido êxito no plano, o destino daquelas pessoas que amavam por certo teria sido diferente. Mas agora não adiantava lamentar.

Vagarosamente dirige-se à entrada da casa vencendo os degraus que a separavam da soleira da porta. Entra na sala e bate palmas esperando que Lila aparecesse para recebe-la. Fez-se longo silêncio e Gabrielle percebeu que Lila não estava em casa.  Imaginou que estivesse no pomar ou na horta e saiu pela porta dos fundos para procura-la. Avista ao longe os cabelos grisalhos da irmã que estava entretida livrando seu canteiro de verduras das ervas daninhas que teimavam em nascer no meio das alfaces e das couves. Gabrielle chama pela irmã:

– Lila!…

A mesma se vira e, ao avistar Gabrielle, corre em sua direção. Elas se abraçam afetuosamente. Gabrielle aconchega-se nos braços de Lila e chora. Lila não fala nada, apenas acolhe a irmã, permitindo que a mesma externasse a torrente de angústias e o desespero que estava sentindo. Aos poucos Gabrielle se acalma e Lila a conduz para o interior da residência. Sentam-se na cozinha e Lila aquece água para fazer um chá para a irmã.

– Gabrielle, eu estava com saudades de você…

– Eu sei Lila… eu também. Aliás, saudade é o que eu mais sinto nos últimos tempos… saudades de Xena, saudades do papai e da mamãe, saudades da Gabrielle que eu fui… – novamente os olhos de Gabrielle se enchem de lágrimas.  Lila prepara um chá de erva cidreira, ótimo calmante, segundo ela, e Gabrielle precisava antes de mais nada dormir um pouco. Lila abraça Gabrielle e a conduz até o quarto colocando-a na cama e deitando-se a seu lado. Afaga os cabelos loiros da irmã e esta adormece profundamente, como a muito não conseguia fazer. Ao acordar o sol já havia se posto por detrás das montanhas e as sombras da noite já haviam se esparramado sobre a planície e sobre o vale. Gabrielle sente cheiro de comida sendo preparada e dirige-se para a cozinha. Mais calma consegue conversar com Lila:

– Pois é, minha irmã… eu não sei o que faço da minha vida. Nunca pensei me sentir tão só.

– Olha, Gabrielle, porque você não passa um tempo aqui comigo? Aqui é a sua casa também. Nós somos uma família.

Gabrielle sorri.

– Que família pequena… só nós duas… e Eva, que está não sei onde…

– Ela continua pregando os ensinamentos de Ely?

– Com toda a certeza – responde Gabrielle – ela é muito parecida com a mãe, quando acredita em algo não se consegue dissuadi-la. E a fé que possui nos ensinamentos de Ely foi o que a redimiu e modificou sua vida.

Faz-se um período de silêncio e Lila questiona:

– E você minha irmã? Como está esse coração?…

Gabrielle suspira e responde:

– Você bem sabe Lila, eu nem precisaria responder. Eu perdi a vontade de viver.

Digamos que eu sobrevivo, sempre pensando no dia de reencontrar Xena.  – As vezes o destino é tão injusto… vocês não mereciam essa separação – comenta Lila – vocês ajudaram tantas pessoas… Xena era uma mulher tão justa, tão defensora dos direitos dos semelhantes…

– E ironicamente foi seu passado que a condenou… – responde Gabrielle – não foi considerado seu presente, e sim o passado.

– Olha, Gabrielle, está decidido: você ficará aqui comigo. Agora nossa família somos só nós duas.

Gabrielle sorri tristemente. Elas conversam sobre a infância e se recolhem bem tarde, quando a lua já havia desenhado quase que a totalidade de seu traçado na abóbada celeste.

O dia seguinte amanhece ensolarado e Gabrielle acorda cedo. Dirige-se até a cachoeira onde Xena adorava se banhar nas primeiras horas da manhã. Senta sobre a pedra na qual a companheira expunha sua nudez aos raios solares e aos pássaros que sobrevoavam as águas cristalinas em busca de alimentos e matéria prima para a confecção de seus ninhos. Perdida em devaneios e recordações não percebe que ao longe, observando-a, materializa-se sua amiga Afrodite, a deusa do amor.

Afrodite contempla Gabrielle e se compadece de sua solidão:

– Eu morro de peninha dela, meu irmão.

Como não obtém resposta continua seu monólogo:

– Eu sei que você está aqui Ares, apareça. Mesmo sendo o deus da guerra eu sei que no fundo você tem bom coração.

Ares se materializa a seu lado, taciturno e calado. Também contempla a tristeza de Gabrielle.

– Se você não tivesse metido os pés pelas mãos… – diz Afrodite.

– Lá vem você me culpando de novo! – responde Ares irritado.  – Mas é verdade. O destino delas teria sido diferente. Elas haveriam tido muito mais tempo juntas. Foram vinte e cinco anos perdidos, Ares.  – Eu só quis ajudar! Eu sou um deus, não um adivinho.

– Tudo bem – releva Afrodite – mas eu não suporto ver minha amiga assim.

– Essa loirinha sempre foi muito enxerida!

– Ares, olha o despeito! Você nunca aceitou o amor de Xena por Gabrielle… e não por você.

– Águas passadas…

– Então, meu irmão, eu não acredito que você não se compadeça do sofrimento dela.

Ares se cala e continua olhando para Gabrielle. Após longo silêncio comenta:

– De fato Xena foi a mulher que eu mais amei… e eu tentei acabar com Gabrielle por causa disso. Mas é passado. Mesmo sendo um deus eu não posso mudar o passado.  Xena está nos Campos Elíseos e eu nada posso fazer.

– Será que não podemos fazer nada mesmo? – questiona Afrodite – Vamos pelo menos tentar?

– Tudo bem. – concorda Ares – eu não sei no que você está pensando, mas vamos tentar.

Afrodite sorri e ambos desaparecem no ar.

Enquanto isso Gabrielle já havia se banhado na cachoeira. Retorna para casa e Lila comenta que precisa ir até a cidade para comprar mantimentos. Gabrielle vai com ela. Na venda escutam os comentários alvoroçados de um grupo de viajantes sobre uma mulher que pregava ensinamentos de paz e de igualdade, na cidade portuária de Alysia, de onde partiam os barcos para a ilha de Ítaca. Comentavam também sobre a perseguição que o grupo de discípulos vinha sofrendo dos soldados romanos, dispostos a exterminar a todos que manifestassem qualquer tipo de ensinamento contrário às leis opressoras e ditatoriais de Roma.

Gabrielle logo percebeu que se tratava de Eva e pressentiu que a mesma se encontrava em perigo. Puxou Lila pelo braço e, antes mesmo de terminarem as compras, fez com que retornassem para casa. Chegando lá arrumou seus poucos pertences e preparou-se para partir:

– Lila, eu preciso de um cavalo. Miosótis é muito lenta e eu preciso chegar à Alysia o quanto antes.

– Mas Gabrielle…nós combinamos que você ficaria aqui…

– Lila, Eva está em perigo. E ela é minha filha também! Você bem sabe disso.

– Eu sei Gabrielle, mas eu tenho medo de te perder também…

– Se for a vontade dos deuses…

Elas se abraçam.

– Eu preciso ajudar a minha filha.

– Eu sei, minha irmã, eu sei. Pegue Trovão na cocheira e vá com os deuses…

– Eu te amo, Lila…

– Eu também Gabrielle, eu também…

Gabrielle monta e parte em direção à Alysia. Leva pendurado na cintura o chakran de Xena, pronta para usa-lo se for necessário. Em dois dias chega à cidade de Alysia, cavalgando ininterruptamente. Não é difícil localizar o grupo de pregadores, pois não se fala em outro assunto na cidade.

Gabrielle se dirige até uma clareira no meio da floresta, indicada por um dos moradores da cidade, e não tarda a localizar os vestígios de um acampamento recém desmontado. Aquelas pessoas haviam partido dali haviam poucas horas. Pelas pegadas dirigiam-se para o sul, pela costa oeste do continente, provavelmente para o vilarejo de Calydon. Gabrielle apressou-se em segui-los. Nem bem havia cavalgado uma hora avistou ao longe um grupo de peregrinos, viajando a pé. Ao se aproximar reconheceu ao longe a silhueta de Eva. Era muito parecida com Xena, alta, porém mais esguia. Seus cabelos longos e negros lembravam sua mãe. Aproximou-se e chamou por ela:

– Eva!

Eva vira-se e reconhece Gabrielle. Caminha em sua direção e estampa um sorriso que faz Gabrielle ficar com os olhos marejados de lágrimas. Desmonta e a abraça:

– Eva… minha filha… minha menina…

– Gabrielle… minha mãe… minha segunda mãe…

Elas permanecem abraçadas por longo tempo. Em seguida seguem viagem juntas e quando o sol começa a desaparecer no horizonte Eva se dirige ao grupo:

– Vamos dar uma parada para descansar! Passaremos a noite aqui.  Os peregrinos se acomodam nas laterais da estrada, à sombra das frondosas árvores nativas e dos arbustos mais rasteiros tomados por trepadeiras de flores minúsculas e amareladas. Bem perto dali havia uma nascente de água mineral na qual os viajantes puderam abastecer seus odres para o dia seguinte.  Estenderam uma toalha no chão e nela depositaram os alimentos que partilharam naquela noite. Eva pediu silêncio e fez uma oração antes da ceia:

– Que o Deus Todo Poderoso abençoe estes alimentos e esta água, e que nossos corpos, físico e espiritual, sejam nutridos com víveres e com palavras. Que a fé nos guie e a fraternidade se transforme em uma constante em nossa vida. Que as palavras de Ely ecoem em nossos ouvidos e em nossos corações e que possamos transmiti-las a todos os nossos irmãos. Que assim seja.  – Que assim seja! – respondem todos.

Após a oração todos ceiam e se recolhem para dormir. Somente Gabrielle e Eva ficam acordadas conversando:

– Você é tão parecida com Xena… – diz Gabrielle.

Eva sorri:

– Eu gostaria que ela ainda estivesse aqui – responde Eva – embora eu saiba que ela está nos Campos Elíseos, e está bem.

– Você consegue vê-la? – questiona Gabrielle.

– Não, mas eu sinto…

Faz-se longo silêncio e Gabrielle fala:

– Eu sinto tanto a falta dela…

– Eu sei… Vocês são verdadeiras almas gêmeas.

Gabrielle baixa os olhos e sorri tristemente.

– Gabrielle… eu sempre tive curiosidade de saber uma coisa. Quando você soube que eu ia nascer, bem… que mamãe estava grávida, como você reagiu? Afinal vocês já estavam juntas, não é mesmo?

Gabrielle olha Eva nos olhos e sorri:

– Eu sempre te amei Eva. E eu sempre confiei em Xena. E ela me disse que não sabia como aconteceu… e eu acreditei nela. Eu tinha certeza que falava a verdade. E depois Ely nos contou sobre sua missão e sobre quem você era…  – Com certeza esse ato de confiança foi a maior prova de amor que você poderia ter dado a ela…

– Pois é… Xena sempre me dizia que havia sido eu que a tinha modificado para melhor, e embora não seja verdade, ela sempre foi aquela pessoa maravilhosa, ela dizia que foi o nosso amor que a transformou de fato. E eu a amei mais do que tudo, eu a amo mais do que tudo… e com certeza foi o meu amor que a engravidou de você… e isso faz de você minha filha.

Eva abraça Gabrielle e chora:

– E pensar que eu as odiei tanto… eu fui capaz de odiar minhas duas mães…  – Isso é passado… – diz Gabrielle afetuosamente, afagando os cabelos de Eva –hoje você não é mais Lívia…você é Eva, a nossa Eva, nossa menininha.

Eva beija a face de Gabrielle:

– Eu te amo, mãe.

Aquelas palavras eram bálsamo para o coração sofrido de Gabrielle. Estava abraçada a uma parte de Xena, e a uma parte dela própria também.  – Eu lembro do dia que você nasceu… fui eu que fiz o parto. Enquanto Hércules detinha Zeus e Athena eu te aparava em meus braços. Você era linda… o bebê mais lindo que eu já vi. Também, filha minha e de Xena só podia ser linda mesmo… –brinca Gabrielle – e eu lembro também do teu primeiro sorriso… e das noites em que ficamos em claro quando nasceram seus primeiros dentinhos e você não parava de chorar!

Eva sorri. Gabrielle baixa os olhos por um tempo e, com ar preocupado, refere:

– Filha… eu soube que a milícia romana está atrás de um certo grupo de profetas… vocês correm perigo.

– Eu sei, Gabrielle. Mas temos uma missão e não vamos desistir dela. Eu vim ao mundo para propagar os ensinamentos de Ely.

– Mas ele morreu por isto!!!

– E se for preciso eu também morrerei.

– Ah, não… não mesmo! – responde Gabrielle – Eu não vou deixar que isso aconteça!

– Gabrielle, não podemos mudar o destino…

– Destino… injusto é o destino!!! Xena não voltou para nós por causa desse maldito destino!!! – desabafa Gabrielle.

– Como assim? – questiona Eva.

Gabrielle conta sobre os últimos momentos em que esteve com Xena, aos pés do Monte Fuji, onde Xena lhe revelou que não poderia voltar.

– Mas o que a impediu de voltar?

– Eva, Xena disse que não poderia voltar, pois Akimi havia lhe contado que as 40.000 almas libertadas com a morte de Odoshi precisariam ser vingadas!… Ou ficariam vagando eternamente. Não bastava estarem livres, precisavam de vingança. E Xena se sentia responsável por elas, responsável pela morte de cada uma, e aceitou ser punida com a nossa separação em troca da liberdade delas.

Eva fica em silêncio por um tempo e finalmente diz:

– Eu não entendo… Ely não fala de vingança… pelo contrário, o sentimento capaz de redimir as almas é o perdão… jamais a vingança…

– Pois é, mas foi a vingança que condenou Xena a ir embora para sempre. – responde Gabrielle.

– Eu não compreendo…

– Olha, está tarde. Você precisa dormir, filha.

– E você também…

– Vou tentar. Prometo.

Elas se deitam e Eva adormece pensando nas palavras de Gabrielle. Procura razões para justificar o real motivo da mãe não voltar. Não acredita na necessidade de vingança das almas. Já Gabrielle passa a maior parte da noite em claro. Pensa em Xena, porém o foco de suas preocupações no momento são as milícias romanas e a segurança de Eva. Quando o sol está quase nascendo no horizonte consegue conciliar o sono, porém desperta após as primeiras movimentações do grupo. Eles partem cedo e Gabrielle segue ao lado de Eva, com o chakran a postos para qualquer investida surpresa e com um sentimento de desconforto no coração. Tinha maus presságios para aquele dia.

Nem bem haviam avançado uma légua após o almoço Gabrielle ouviu um longínquo tropel e logo identificou o perigo iminente. Antes que pudesse alertar o grupo todo, despontou na estrada em frente uma parte da legião de soldados do imperador romano.

Estes logo cercaram os peregrinos e o comandante ordenou aos brados:

– Matem todos!!!

Os seguidores de Ely pregavam a não violência, portanto não portavam armas. O que se seguiu foi um verdadeiro massacre. Gabrielle armou-se com o chakran de Xena, colocando-se em frente à Eva, defendendo-a com o próprio corpo. Como se tivesse sido invadida pelo espírito de Xena arremessou-se contra os guardas, iniciando uma batalha mortal, em defesa de Eva. Contavam-se cerca de trinta centuriões que desferiam golpes mortais com suas espadas e lanças contra os indefesos peregrinos.  Alguns poucos conseguiram fugir, embrenhando-se na floresta virgem no intuito de salvarem as próprias vidas. Eva mantinha-se impassível, observando em estado de choque a luta ferrenha de Gabrielle. Esta havia conseguido pôr a nocaute mais de quinze guardas, porém como eram muitos conseguiram imobiliza-la e estavam prestes a acabar com sua vida.

Neste momento Eva foi tomada por uma fúria interior e foi como se Lívia ressurgisse do âmago de seu ser. Pegou uma das espadas romanas que estava caída junto ao corpo de um dos centuriões abatidos por Gabrielle e lançou-se contra os guardas, gritando:

– Ninguém encosta na minha mãe!!!

Desfere um golpe mortal no centurião que imobilizava Gabrielle e esta, novamente livre, reinicia a luta ao lado de Eva. Ambas conseguem derrubar mais dez centuriões. Os poucos que restaram estavam prestes a bater em retirada quando um deles consegue golpear Gabrielle que cai de costas contra o tronco de uma árvore e fica estonteada. Aproveitando-se desta situação outro deles, que também já ia partindo em retirada, se vira e arremessa uma lança em direção ao peito de Gabrielle. Eva acompanha a cena e salta no ar, num salto mortal triplo e abraça Gabrielle, servindo de escudo com o próprio corpo. A lança a atinge nas costas, perfurando-lhe o pulmão esquerdo e atingindo o coração. Gabrielle, já restabelecida, a segura nos braços, desesperando-se e gritando seu nome:

– EVA!!! NÃO!!!…

O grito de Gabrielle ecoa na floresta e é ouvido ao longe pelos guardas que fugiam do local. Gabrielle ajeita Eva em seus braços:

– Por que você fez isso, minha filha… por que???…

– Por…que… ninguém… nin… guém… encosta na …minha…mãe…

– Eva… não me deixe, por favor… EVA!!!

Eva abre novamente os olhos e esboça um sorriso para Gabrielle:

– Eu…tenho as melhores…mães… do mundo. Eu…eu…te amo…

– Eu também te amo… e você vai ficar boa… e nós vamos para casa… e…

Eva…Eva… responde… EVA… NÃÃÃÃOOO!!!

Novamente o grito de Gabrielle se perde na floresta e Eva morre em seus braços.  Gabrielle fica em estado de choque por longo tempo e quando enfim se conscientiza de que nada mais poderia ser feito por Eva, retira a lança de seu peito e prepara o corpo da filha para ser levado à Amphipolis, para repousar junto da sepultura de Lyceus.

Com o coração despedaçado pela dor chega em Amphipolis e prepara uma pira funerária para a filha. Junta as cinzas de Eva e as coloca no pote em que antes guardava as cinzas de sua mãe, Xena. Deposita-o junto ao túmulo de Lyceus e parte novamente em direção à Potedia.

Sentia-se novamente só, mais só do que nunca, e precisava do conforto de Lila.  Sentia-se, além de solitária, impotente. Havia falhado na missão de proteger a própria filha. Seu único consolo era que, por certo, Eva estaria com Xena. E somente este pensamento conseguia aliviar seu coração. Chegava quase que a invejar Eva e desejava ter morrido em seu lugar. Não conseguia se conformar em não ter conseguido salvar a vida de sua Eva. Com o coração mais apertado do que nunca chega novamente à Potedia, à casa de Lila.

Neste meio tempo, nos portais que ficavam entre Hades e os Campos Elíseos, Eva recobra os sentidos quando ouve seu nome sendo chamado carinhosamente:

– Eva… acorde. Está tudo bem.

Sente uma mão calorosa afagando-lhe a face e abre os olhos lentamente. Percebe-se deitada em um tapete de relva muito verde, coberto com minúsculas flores multicoloridas ao longe. Sua cabeça repousa sobre o colo de um menino com cerca de doze anos que lhe sorri amorosamente. Ele tinha a pele clara e os cabelos loiros e lisos lhe caíam até os ombros. Seus olhos, de um azul escuro e profundo, tinham algo de muito familiar. Ele se debruça sobre ela e lhe beija a testa, dizendo:

– Bem vinda, Eva.

Aos poucos Eva vai recobrando a consciência e lhe vêm à memória os fatos recentes, onde sua última lembrança é o olhar de desespero de Gabrielle sustentando seu corpo transpassado por uma lança e suplicando que não a abandonasse. Percebe que não sente mais a dor do ferimento e, olhando para baixo, vê que suas vestes não estão mais sujas de sangue, nem tão pouco são as mesmas que trajava a momentos atrás.  Olha ao redor e se dá conta de que não está mais no plano dos mortais. É invadida por um sentimento de paz e conforto e, amparada pelo menino, se levanta para conseguir uma visão melhor de seu novo lar, a fim de entender melhor sua nova condição. O menino continua a sorrir para ela.

– Qual seu nome? – pergunta Eva.

– Solan.

Eva é invadida pela emoção ao perceber que aquele menino era seu irmão, de quem a mãe tanto falava e quem havia lhe colocado o nome de Eva. Eles se abraçam amorosamente e Eva beija a face do irmão.

– Para onde nós vamos?

– Ely pediu que eu viesse busca-la, antes que os espíritos do submundo apareçam, tentando arrasta-la para Hades.

Solan pega Eva pela mão pedindo que ela fechasse os olhos. Eva sente uma brisa suave soprar em seus cabelos e, num instante, ao abrir os olhos, já se encontrava em outro cenário, mais encantador que o campo onde havia acordado.  – Bem vinda aos Campos Elíseos, minha irmã – diz Solan sorridente.  Eva retribui o sorriso e é conduzida pelo irmão até um aconchegante jardim, no interior de uma floresta verdejante. Sentam-se em um pequeno e rústico banco, feito com um tronco de árvore. Ali conversam por longo tempo.  – Solan, onde está mamãe? Gostaria de vê-la.

– Ela está aqui. Desde a chegada dela eu tenho a missão de acompanha-la de perto, para aliviar um pouco a dor de seu coração. Ela sente muita falta de você, e de Gabrielle.

– Ela sabe da minha chegada?

– Ainda não. Será uma grata surpresa – responde Solan.

– Eu não consigo entender porque ela não voltou para a terra, se teve a oportunidade.

– É uma longa história… – refere Solan.

– Eu não entendo esse argumento de vingança… afinal, o único sentimento capaz de redimir as almas é o perdão…

– Exatamente, Eva. Mas cada um deve se dar conta disso por si mesmo.

– Continuo sem entender…

– Eva, vamos até Ely? Ele quer vê-la.

– Vamos, também sinto vontade de revê-lo.

Novamente são transportados como que num passe de mágica para outra paisagem, onde Ely os aguardava:

– Bem vinda, Eva! Sou grato pelos teus esforços de propagar a mensagem de amor de nosso Pai Celeste.

– Que é isso, Ely? Você bem sabe que não fiz nada mais do que cumprir a minha missão.  Neste momento Ely a abraça fazendo com que se debruce sobre uma pequena fonte onde a água cristalina servia de espelho, refletindo o rosto de ambos. Aos poucos Eva percebe que os contornos de sua face se transformam, assumindo a fisionomia de Callisto.

– Eu já havia esquecido destes traços – responde Eva pensativa.  – Pois independente da forma física, sua essência é a mesma. Você é Callisto e é Eva. Uma é continuidade da outra. Eva nasceu para que Callisto e Xena pudessem se perdoar mutuamente, transmutando todo o ressentimento do passado em um sentimento de amor profundo e de perdão.

– Eu sei, Ely. E se é o perdão que transforma, por que Xena não retornou para junto de Gabrielle?

– Porque simplesmente não se deu conta disso…

– Como assim? – questiona Eva.

– Xena estava tão absorta em libertar as almas que acabou fechando os olhos e ouvidos para essa verdade absoluta: só o amor e o perdão redimem e libertam.  – Mas Gabrielle me contou que foi Akimi que alertou Xena sobre a necessidade de que as almas fossem vingadas.

– Akimi… uma grande amiga, um verdadeiro espírito de luz.

– Mas ela mentiu!!! – revolta-se Eva – e condenou minhas mães ao sofrimento!

– Ela não mentiu… fui eu quem pediu a ela que usasse aquele argumento com Xena.  – Mas para que, Ely? Ela já havia demonstrado ser uma pessoa transformada! Ela deu a vida para salvar os outros!

– Não basta dar a vida… é necessário compreender e introjetar a verdade.

– Mas não é justo!!!

– Eva, em verdade Xena está presa a esta dimensão por sua própria vontade. Nós mesmos somos nossos juízes e nossos algozes, e acredite, ninguém é mais rigoroso conosco do que nós mesmos. Todas as almas libertadas perdoaram Xena, porém ela própria não se perdoou.

– Mas porque você não diz isso a ela!!!

– Não posso. A Verdade Absoluta é uma descoberta pessoal, que cada um deve fazer a seu tempo.

– Então, caso mamãe se dê conta disso poderá voltar para a terra?

– Com toda a certeza.

– Ely… por favor, permita-me ajuda-la a abrir os olhos.

Ely sorri.

– Você é a terceira pessoa que me faz esse pedido hoje.

– Como assim? Quais foram os outros?

Neste momento Afrodite e Ares se materializam perto deles.  – Fomos nós – responde Afrodite – vimos o desespero de Gabrielle e viemos interceder por ela.

– Tudo bem – concorda Ely – mas lembre-se, Eva, não basta despejar a Verdade como se fosse uma torrente de água incontrolável, como chuvas de verão. Neste caso ela age como um turbilhão, varre abruptamente o ilusório e não chega até a essência.  Lembre-se: palavras devem ser como as garoas, despejadas com suavidade penetram a terra e nutrem o âmago. Uma vez absorvidas as gotas passam a fazer parte da terra e, como um só organismo vivo, passam a ter o mesmo entendimento dos mistérios da vida, e da morte. A compreensão da Verdade Absoluta é um processo lento, mas quando instaurado é para todo o sempre.

– Acho que entendi – responde Eva – preciso ser sutil.

– Exatamente – concorda Ely.

– Eu te desejo boa sorte, Eva – diz Afrodite olhando com o canto dos olhos para Ares, como que intimando-o a se manifestar.

– Eu também – refere o sisudo Ares.

– A felicidade da minha amiga Gabrielle depende de você – reafirma Afrodite.

– E eu não vou desaponta-la! – afirma Eva com convicção.

Afrodite sorri e desaparece no ar juntamente com Ares. Ely, Eva e Solan ainda conversam por longo tempo até que o primeiro diz:

– Está na hora de rever sua mãe…

– Eu estou ansiosa para isto – responde Eva.

– Solan, você poderia levar Eva até sua mãe?

– Claro, Ely.

Os irmãos partem enquanto Ely os observa caminhando ao longe, sempre abraçados.

Não muito longe dali Xena se encontra sentada à sombra de um caramanchão, situado no cume de uma pequena colina. Abaixo um vale rodeado por uma cadeia de montanhas, cujos topos cobertos de vegetação se refletiam nas águas do lago no centro da planície. O reflexo do verde circular na água transformava o lago numa mandala gigante, cujo cerne refletia também a luz solar e o azul do céu. O caramanchão era coberto por um pé de maracujá, cujas flores em forma de coroa adornavam toda sua copa. Nas bases haviam roseiras carregadas de flores miúdas, num tom levemente rosado, cujos galhos e caule não ostentavam nenhum espinho. Era como se as rosas minúsculas se projetassem em direção ao céu, indefesas porém confiantes na proteção divina, conscientes de que nada lhes faria mal e que cumpririam sua missão de embelezar aquele pequeno recanto do paraíso.

Xena contemplava o vale ao longe e seu pensamento estava totalmente voltado para Gabrielle. Pensava nela constantemente, não conseguindo aquietar seu coração. O olhar de Gabrielle suplicando-lhe permissão para jogar suas cinzas no Monte Fuji, o que lhe levaria de volta à vida, não lhe saía da memória. Xena fez o que considerou correto, mas a que preço, pensava. Após aquele fatídico dia permaneceu por um tempo na companhia de Akimi, não saberia precisar o tempo, pois este existe somente no plano dos mortais. E quando parecia que não suportaria mais a falta de Gabrielle foi surpreendida com a chegada de Solan, montado em Argo, para conduzi-la aos Campos Elíseos. Xena também não conseguiria traduzir em palavras a emoção sentida ao rever o filho, e saber que seu fiel Argo lhe servia de companhia. Solan passou a ser sua constante companhia e, cada vez que seu coração apertava de saudade, era o filho que conseguia amenizar sua angústia com palavras de alento e de confiança.  Mas em determinados momentos nem mesmo Solan era capaz de confortar a dor que emanava de suas entranhas. Xena também se sentia prisioneira de seu próprio destino e condenada por seus erros do passado.

Perdida em devaneios e saudades Xena não percebe a aproximação dos filhos. Eva fica observando a mãe ao longe enquanto Solan se aproxima dela:

– Mãe…

Xena se volta para ele secando as lágrimas que lhe escorriam das faces.

– Chorando de novo?

– Não foi nada não, filho…

– Você não consegue esquecer Gabrielle, não é mesmo?

Xena se cala, baixa os olhos e confirma com um maneio de cabeça.  – Solan, eu te amo tanto… estou feliz de estar com você, mas uma parte de mim está longe…e dói muito… – diz Xena abraçando carinhosamente o filho.

Solan retribui o abraço e beija a face da mãe, dizendo:

– Eu trouxe uma surpresa.

Neste momento Eva se aproxima. Xena se emociona ao rever a filha e corre para abraça-la. Solan vai ao encontro delas e também as abraça. Xena segura o rosto de Eva entre as mãos e seca as lágrimas que lhe escorrem das faces. Os três se acomodam sob o caramanchão e conversam longamente.  Eva conta para Xena como foram seus últimos momentos na terra e o esforço de Gabrielle de defende-la. Xena se emociona ao saber notícias de Gabrielle, e se orgulha de saber que sua amada encontrou forças para defender a filha mesmo com o coração dilacerado pela saudade. Fica mais emocionada ainda quando Eva lhe conta que morreu salvando a vida de Gabrielle. Xena permanece quieta, ouvindo o relato de Eva. Mantém sua face voltada para o chão e o olhar perdido, como que tendo dificuldades em assimilar aqueles acontecimentos. Ao final do relato, como Xena permanecesse calada, com lágrimas lhe escorrendo pelas faces, Eva a abraça e lhe diz:

– Mãe… não fique triste. Eu fiz o que tinha de ser feito.

– Eu sei – responde Xena.

– Minha hora havia chegado, de uma maneira ou de outra. Minha missão na terra havia terminado… a de Gabrielle não.

Segue-se longo silêncio, que é quebrado por Solan que sugere:

– Vamos para casa, acho que todos precisamos descansar.

– Vamos, sim – responde Xena.

As moradias nos Campos Elíseos em muito se assemelham às do plano terrestre. São edificações simples, onde grupos familiares permanecem unidos, por todo o sempre. A casa ocupada por Xena e Solan, também era habitada por Lyceus e, recentemente por Cyrene, que até há bem pouco tempo estava prisioneira em Hades, e havia sido resgatada por Solan. Tinha tudo para ser um lar feliz, não fosse pela tristeza constantemente estampada nos olhos de Xena. Todos sofriam por ela, principalmente Solan, que nutria um amor incondicional pela mãe. Este já havia tentado envia-la de volta à terra, porém sem sucesso. Sua esperança agora era a irmã, Eva, principalmente após ouvir a conversa que teve com Ely.  O dia estava acabando. Nos Campos Elíseos também existe dia e noite. A família ceou unida e depois Eva foi levada até o quarto que passaria a ser o seu. Xena esperou a filha deitar-se, beijou-lhe a testa e desejou-lhe bons sonhos. Em seguida levantou Solan nos braços e o levou para sua cama. Gostava de brincar com o filho. Era como se estivesse recuperando o tempo em que ficaram separados na terra. Xena beija o rosto do filho e diz:

– Boa noite, meu amor.

– Boa noite, mãe. Bons sonhos.

Xena lhe sorri e sai do quarto, porém ainda consegue ouvir Solan dizer baixinho:

– Sonhe com os anjos… e com Gabrielle. Eu te amo.

– Eu também te amo, filho – diz Xena, certa de que Solan ouviria sua resposta.

Na manhã seguinte uma chuva bem fina regou a vegetação dos Campos Elíseos e Eva observava pela janela de seu quarto o colorido da paisagem renovado pelas águas.  A chuva, porém logo cedeu lugar a um sol resplandecente, que formava prismas multicoloridos nas gotículas de água armazenadas nas folhas da vegetação. Eva convida a mãe para passear, com o pretexto de que lhe mostrasse o quintal e os arredores de sua nova casa.

Solan sai para suas aulas diárias com Ely, Rafael e com Miguel. O filho de Xena está sendo preparado para ser elevado ao grau de Arcanjo. Xena e Eva se dirigem para a beira do lago, onde se acomodam confortavelmente num chão coberto de relva macia.

– A vida por aqui é tão tranqüila – comenta Eva.

– Pois é… tranqüila… e vazia.

– Mãe, você não consegue esquecer Gabrielle, não é mesmo?  – Não, não consigo. Eu sinto falta de seu sorriso, dos seus olhos, do seu toque, do cheiro da pele, do abraço, da cumplicidade, de tudo…

– Gabrielle também não consegue esquece-la…

– Eu sei. E é isso que mais me angustia. O sofrimento de Gabrielle agrava meu sentimento de culpa e de saudade.

– Culpa?… – questiona Eva.

– Culpa. Você sabe porque eu estou aqui, não sabe?

– Sei. Gabrielle me contou.

– Eu não podia voltar. Não podia condenar tantas almas a vagarem pela eternidade, quando fui EU que as coloquei nessa situação!

Faz-se um período de silêncio, quebrado por Eva:

– Eu passei os últimos tempos de minha vida semeando as palavras e os ensinamentos de Ely… E eu acredito que eles são a Verdade Absoluta, tanto que aceitei morrer por eles.

– Eva, aonde você quer chegar? – questiona Xena.

– O primeiro ensinamento do mestre é que devemos amar nosso próximo como a nós mesmos, e a Deus sobre todas as coisas, isto porque Deus é justo. Nós somos sua imagem e semelhança, portanto devemos buscar sempre a justiça.  – E foi o que eu fiz. Eu fiz o que achei justo!

– Concordo. No entanto Ely continua nos dizendo que só o amor constrói e é capaz de redimir seres humanos e almas.

– Sim, eu sei – responde Xena.

– O amor e, principalmente o perdão, mãe. Ely nunca falou sobre vingança… pelo menos como forma de libertação.

Xena dirige seu olhar para o fundo dos olhos de Eva, conseguindo vislumbrar, muito além deles, a essência da alma da filha. Nos momentos de silêncio que se seguiram foi como se um véu, que até então houvesse encoberto os olhos de Xena, fosse pouco a pouco sendo descortinado.

– Mas então você está me dizendo que…

– Eu não estou dizendo nada mãe, você está descobrindo por si mesma – responde Eva.

Xena respira fundo e continua a linha de seu raciocínio:

– Ely afirma que só o amor e o perdão redimem as almas, mas então… eu não entendo… Akimi…

– Esqueça Akimi, pense por você, encare os fatos sob seu próprio ponto de vista –diz Eva.

Xena faz um esforço de memória e continua:

– Eu vi as almas saindo de dentro de Odoshi, livres. Elas realmente não pareciam precisar de vingança…

Novo silêncio e o resto do véu que encobria a consciência de Xena cai por terra.

Ela novamente continua:

– Então quer dizer que eu deixei Gabrielle por meu próprio sentimento de culpa?  Como pude ser tão cega? As almas me perdoaram… porém fui eu própria que não havia me perdoado, mais que isso: eu condenei a mim e a Gabrielle ao sofrimento eterno.  – O eterno é relativo – diz uma voz conhecida de Xena que se materializou atrás delas.

– Akimi… é você? Por que você fez isso? Por que mentiu? – questiona Xena.

– Por favor, Xena, não encare como uma mentira, encare como um teste.

Neste momento aparece Ely que sorri para elas e diz:

– Xena, fui eu que pedi a Akimi para lhe aplicar aquela “mentira”, como você se referiu. Era necessária para que você se libertasse de seu passado. Mesmo com todos os seus feitos em benefícios das pessoas menos favorecidas e injustiçadas você nunca conseguiu se livrar de certos fantasmas, que teimavam em assolar sua consciência e lhe conferiam um sentimento de culpa incontrolável. Em verdade seus atos em prol dos seus semelhantes a redimiram e Callisto era sua última dívida. E você aceitou dar à luz a Eva, resgatando o que ainda precisava saldar. Hoje você está livre Xena. Livre de seu passado e de suas culpas, livre do peso de seus erros e desacertos em tempos remotos. Nada mais a prende a lugar nenhum.  – Prende sim, Ely. Meu coração está preso à Gabrielle, para sempre – responde Xena.

– E porque você não vai para junto dela? – questiona Ely.

– Mas, eu não posso… eu acho que não posso…

Ely sorri afetuosamente para Xena e aquele sorriso consegue acender novamente a esperança no fundo do coração da guerreira. Xena respira fundo e diz:

– Eu posso sim!!!

Logo em seguida olha para Solan que chega na companhia de Rafael e seu coração fica apertado novamente. Como poderia deixar Solan? E Eva? E Cyrene, e Lyceus. Solan chega sorridente e logo percebe o que havia ocorrido. Abraça Xena e lhe diz:

– Mãe, eu tenho uma novidade. Acho que você vai ficar orgulhosa de mim.  Neste momento se afasta um pouco de Xena, fecha os olhos e o Arcanjo Rafael se aproxima por trás dele. Impõe suas mãos sobre a cabeça de Solan e uma luz branca e cristalina desce dos céus envolvendo o menino. Solan abre os braços e suas roupas se transformam numa veste dourada e duas enormes asas surgem abertas em seus ombros. Solan abre os olhos e diz:

– Agora eu sou um Arcanjo!!!

Xena mal cabe em si de emoção. Seu filho, seu pequeno menino, um Arcanjo. Solan se aproxima novamente e abraça a mãe, fitando-a nos olhos:

– Mãe, cada um de nós tem seu próprio destino. O meu é servir a Deus como Arcanjo… o teu, bem… você sabe bem qual é. Não abra mão da felicidade novamente… Eu te amo. E eu vou estar sempre aqui, sempre perto de você. Prometo.

Xena abraça o filho e o beija. Vira-se para Eva que lhe sorri e diz:

– É hora de voltar e fazer minha outra mãe feliz.

– Mãe – chama o sorridente Solan abanando as enormes asas – leva o Argo contigo.

– Mas, Solan, eu sei que você adora ele…

– Mas ele é teu. E além do mais, eu agora não preciso mais galopar para chegar aonde eu quero, afinal eu tenho asas!!!

Xena sorri percebendo a felicidade do filho e sente que sua missão com ele também está cumprida. Em seguida fica calada e pensativa por momentos, e questiona:

– Mas, como posso voltar se já se passaram dois pores-de-sol após minha morte e não adiantará colocar minhas cinzas no Monte Fuji?

Desta vez é Ely quem sorri e responde:

– Xena, Xena… A fé move montanhas. Basta que Gabrielle a chame e sopre suas cinzas ao vento.

– Mas como ela vai saber disso? – questiona Xena.

– Ah… nessa parte eu posso ajudar – diz Afrodite, materializando-se junto ao grupo.

– Então, mãos à obra – diz Eva.

Xena abraça novamente Solan, Eva e Ely. Corre para casa a fim de se despedir de Cyrene e Lyceus. Corre com a velocidade dos ventos e, pela primeira vez em muito tempo, seu coração batia feliz. Aliás, seu coração batia tão forte que parecia querer saltar-lhe do peito. Em pouco tempo estava pronta para partir.

Enquanto isso, em Potedia, Gabrielle retorna para casa de Lila completamente arrasada. Havia decidido passar com Lila o resto de seus tristes dias. Pobre Lila, não sabia o que fazer para dar um pouco de alento ao coração de Gabrielle. Nada parecia conseguir amenizar a dor e o sofrimento. Ela mal conseguia se alimentar e Lila via sua irmã definhando dia a dia.

Gabrielle pouco dormia e naquela tarde encontrava-se sozinha sentada nos fundos do quintal, com o olhar perdido, quando ouve uma voz ao seu lado:

– Oi bonitinha… – diz Afrodite.

Gabrielle a fita tristemente e esboça um sorriso.

– Mas o que é isso??? Onde está a Gabrielle que eu conheço, a minha amiga poetiza?

– Morta, Afrodite.

– Como?

– Morta. Um corpo sem alma. Sem nada…

– Olha Gabrielle – diz Afrodite – eu venho lhe trazer uma notícia que, por certo, ressuscitará esse coraçãozinho.

Gabrielle olha para Afrodite sem entender nada.

– Como assim? Você sabe que a única pessoa que pode me devolver à vida é Xena.

– Pois então! – responde Afrodite.

Gabrielle se levanta e segura Afrodite pelos ombros.

– Pois então o quê, Afrodite. Por favor, fale logo – suplica Gabrielle pressentindo tratar-se de Xena.

– Senta aqui que a conversa é longa…

– Afrodite…

– Tudo bem, tudo bem, vou resumir: estive com Xena.

Os olhos de Gabrielle se enchem de lágrimas e ela pergunta:

– E como ela está? Ela perguntou por mim? Ela está sofrendo como eu? Ela sabe da Eva?…

– Calma Gabrielle. Vamos por partes. Eva está com ela. Ela está bem agora.

– Porque agora? E antes? – questiona Gabrielle.

– Agora… porque ela pode voltar para você, Gabrielle.  A poetiza sente o chão se desvanecendo sob seus pés e precisou do amparo de Afrodite para não cair. A deusa a coloca sentada e se ajoelha a seu lado, dizendo:

– Tudo bem?

– Tudo… tudo bem – responde Gabrielle restabelecendo-se aos poucos da emoção.  – Olha, depois ela te conta toda a história, ok? O importante agora é que você precisa traze-la de volta.

– É só me dizer como.

– Vá até um lugar significativo para ambas e leve as cinzas de Xena. Chame por ela e quando a vir sopre suas cinzas ao vento.

– Mas… e se ela não vir… e as cinzas se perderem para sempre…

– Gabrielle, confie.

– Eu confio!

– Então vamos – diz Afrodite.

Gabrielle entra em casa atonitamente. Em seu coração um misto de felicidade e medo de perder Xena novamente. Mas precisava confiar. Lila percebe a ansiedade da irmã e questiona:

– O que foi, Gabrielle?

– Lila, eu vou trazer Xena de volta!

– Como assim, Gabrielle? Você sabe que Xena está morta.

– Lila, eu não tenho tempo para explicar…

– Mas, Gabrielle…

– Lila, confie em mim, por favor.

– Eu confio, Gabrielle, eu confio.

Gabrielle toma um gole de água fresca, respira fundo e se dirige para a cachoeira na qual costumava nadar com Xena. As cinzas de Xena estavam presas a seu corpo, como sempre. Levou um pequeno punhal para cortar a bolsa de couro que as continham.

Chegando na cachoeira sabia perfeitamente o que fazer. Fechou os olhos e as lembranças dos tempos felizes que havia passado com Xena naquelas águas lhe aflorou instantaneamente na consciência. Chegava a ouvir as gargalhadas de Xena e o som das suas braçadas fortes na água fria e cristalina da queda d’água. Com estas imagens na mente abriu os olhos e chamou por ela. Clamou pela sua presença juntando toda a emoção que lhe cabia dentro do peito:

– XENAAAA…

Neste momento uma névoa clara pairou à frente de Gabrielle e Xena surgiu do meio dela. Gabrielle levou suas mãos trêmulas ao rosto, não conseguindo conter suas lágrimas. Xena sorria.

– Eu estou aqui, Gabrielle.

– Xena… Xena… eu senti tanto a sua falta…

– Sopre as minhas cinzas ao vento.

Gabrielle, utilizando seu punhal prateado, ainda com as mãos trêmulas, rompe a costura artesanal e cuidadosamente feita por ela. Introduz sua mão esquerda na bolsa e tira um punhado de cinzas, as quais sopra na direção de Xena. Ely aparece atrás de Gabrielle e seu sopro divino faz com que as cinzas se espalhem no ar. O espírito de Xena é invadido pelo sopro divino e ela abre seus braços, inspirando as próprias cinzas. Ely impõe suas mãos e uma forte ventania envolve Gabrielle e Xena por alguns minutos. Ao baixar suas mãos o mestre dissolve as rajadas de vento, dando lugar à calmaria e a um perfume de rosas que toma conta do lugar. Um raio de luz, projetado pelo meio da copa das árvores, ilumina os rostos de Xena e Gabrielle, refletindo-se no contraste dos cabelos loiros e negros. Xena abre os olhos e caminha em direção à Gabrielle. Esta encontra-se estática, mal conseguindo controlar sua emoção. Tinha a impressão que seus batimentos cardíacos poderiam ser ouvidos a muitas léguas dali. Vagarosamente elas se aproximam e se tocam. Xena leva suas mãos espalmadas até as mãos de Gabrielle, que faz o mesmo movimento. Elas sentem que estão novamente no mesmo plano. Não conseguindo mais se conter elas se abraçam apaixonadamente… e choram.

Ao fundo Afrodite sorri. Ares também aparece e, apesar de não demonstrar, fica feliz por Xena, sentindo que sua dívida com ambas estava quite. Ely abraça Eva que veio despedir-se de Xena e estava de fato emocionada com a felicidade de suas duas mães. Ely se dirige a Afrodite, Ares e Eva e diz:

– Vamos deixa-las sozinhas, elas tem muito o que conversar e muitas saudades para matar. Amanhã retornaremos para nos despedirmos.

Dizendo isso desaparece no ar, acompanhado por Eva. Ares também se desmaterializa e retorna ao Monte Olympo. Afrodite ainda contempla as amigas com um sorriso de dever cumprido estampado no rosto. “Como o amor é lindo”, pensou. Antes de deixa-las levantou seu dedo indicador da mão esquerda, girando-o no ar e fazendo cair uma chuva de pétalas de rosas vermelhas e brancas sobre as amigas. Em seguida desaparece.

Xena e Gabrielle continuam fortemente abraçadas. Xena enlaça Gabrielle pela cintura e a suspende no ar. A poetiza envolve a cintura da guerreira com as pernas, prendendo-se nela como a uma tábua de salvação. E era assim que Gabrielle se sentia: salva! Xena, com Gabrielle nos braços, rodopia feliz pela floresta, girando em círculos e sentindo-se novamente a mulher mais feliz e abençoada do mundo, por ter seu bem maior de volta. Elas intercalam sorrisos e lágrimas, até o momento em que Xena, completamente tonta pelos rodopios e pela emoção, prostra-se de joelhos, ainda segurando firmemente Gabrielle de encontro ao próprio corpo.  A poetiza leva suas mãos ao rosto de Xena, fecha os olhos e contorna cada centímetro daquele semblante que tanto amava:

– Como é bom poder te sentir assim… te tocar – diz Gabrielle – Eu senti tanto a sua falta…

– Eu também, meu amor, eu também… – responde Xena.  E como elas não conseguiam mais controlar a urgência que tinham uma da outra, as bocas se uniram num beijo ardente e apaixonado. As línguas ávidas de desejo percorriam as bocas molhadas e sedentas de amor. Xena sente o corpo de Gabrielle ardendo junto ao seu e o contato com o calor da sua pele macia faz com que ela sinta aquela umidade tão conhecida lhe jorrando das entranhas. Gabrielle se dilui no corpo de Xena e é como se passasse a fazer parte dele. Trêmula, arde de desejo.  – Xena… eu te quero… eu te preciso… eu preciso te sentir em mim… eu te amo…  – Eu também te quero, Gabrielle – responde Xena beijando-lhe a nuca e passando-lhe a língua sedutoramente no lóbulo da orelha.

– Xena, vamos para casa… eu não agüento mais…

– Vamos, meu amor, vamos para casa.

Elas se afastam um pouco, se levantam e se abraçam novamente.

– Parece um sonho, Xena. Eu nos seus braços novamente…  – Mas é realidade, Gabrielle, uma doce e feliz realidade – responde Xena fitando os olhos verdes de sua amada.

Elas seguem abraçadas o caminho de volta para a casa de Lila, sempre trocando carícias e afagos. Ao chegarem em frente à casa Lila as esperava na soleira da porta. Ao ver o rosto de Gabrielle, e seu olhar de felicidade que há muito havia se perdido, Lila levanta as mãos para os céus e diz:

– Que os deuses sejam louvados!!! Minha irmã está viva novamente!!! – e corre em direção às duas, abraçando-as – Vamos entrar, vamos entrar…

Lila corre e serve um bolo de nozes com leite fresco para Xena e Gabrielle:

– Vocês precisam se alimentar.

– Entre outras coisas… – responde Gabrielle sorrindo sedutoramente para Xena.  – Tudo bem, tudo bem… eu entendi a mensagem! Eu tinha mesmo que ir até a cidade comprar mantimentos. Vou acabar ficando por lá nesta noite. Minha amiga Iolanda sempre me cobra uma visita mais prolongada – responde Lila efusiva enquanto se levanta, pega sua sacola e parte montada em Miosótis, que volta seu focinho para Gabrielle e relincha feliz.

– Que intimidade é essa dessa mula? – brinca Xena.

– Ah… é Miosótis. Ela está comigo a pouco tempo, mas já nutre certa simpatia pela minha pessoa – responde sorrindo.

Xena se aproxima de Gabrielle e a fita com seriedade:

– Gabrielle, eu queria te pedir desculpas…

– Psssiu… – diz Gabrielle colocando sua mão suavemente sobre a boca de Xena – não é hora de remoer o passado. Você é minha vida e está aqui comigo, e é o que importa. Vamos viver…

Dizendo isso Gabrielle invade a boca de Xena com sua língua suave e bebe da fonte de seus desejos. Não se contendo mais arrasta Xena para o quarto jogando-a por sobre os lençóis macios e deitando-se sobre ela. As amantes arrancam as roupas uma da outra avidamente, ansiosas por sentirem novamente o contato das peles nuas e quentes. Ambas encontravam-se encharcadas de desejo e mal haviam começado a se tocar e já explodiram em gozo, tamanha necessidade que tinham uma da outra.  Naquela noite amaram-se inicialmente com avidez e fúria, porém assim como as chamas de uma fogueira diminuem seu crepitar com o passar das horas, elas se saciaram e, pouco a pouco, foram se aconchegando e se acarinhando com uma crescente suavidade.  Esgotadas de tanto amor, mas com o sentimento de total plenitude, adormeceram abraçadas quando a última estrela do firmamento já perdia o seu brilho e os primeiros pássaros da manhã alçavam vôo à procura de alimento.  Acordaram quando o sol já estava alto e os raios luminosos invadiam o quarto pelas frestas da janela entreaberta. Elas ainda estavam abraçadas e era como se não conseguissem se separar, com medo de que toda aquela felicidade fosse um sonho.  Gabrielle abre os olhos e vislumbra o olhar de Xena a observa-la atentamente.

Gabrielle sorri e pergunta:

– O que foi, meu amor? Por que você está me olhando assim…  – Encantada… eu continuo encantada com a beleza da minha mulher – responde Xena beijando suavemente a boca de Gabrielle.

– Que boba… você é que é linda…

– Gabrielle, eu não consigo expressar em palavras o que estou sentindo desde a hora em que te reencontrei…

– Eu também não consigo, Xena…

– Mas eu quero que saiba que eu nunca deixei de pensar em você. Eu te levei comigo, dentro do coração. E eu te prometo que nunca mais eu vou te deixar, pelo menos por causa da minha própria ignorância.

– Não fala assim, Xena. Você não teve culpa. Acho que precisávamos passar por isso mesmo, sei lá. O importante, o fundamental, é que o nosso amor venceu até mesmo a morte. E vai ser assim para sempre…

– Com toda a certeza, Gabrielle, com toda a certeza.

– Xena…

– O que é?…

– Eu tô morrendo de fome!!!

Xena abraça Gabrielle e gargalha de felicidade, afinal fazia muito tempo que não escutava aquelas palavras que agora lhe soavam como música para os ouvidos.

Elas se levantam e fazem o desjejum. Logo em seguida seguem para a cachoeira para um bom banho matinal. Após nadarem por mais de uma hora e estarem novamente secas e vestidas, sentam-se abraçadas, contemplando a queda d’água. Aquela paisagem sempre exerceu um estranho fascínio sobre elas. Ainda trocando afagos e carícias percebem uma suave movimentação atrás delas e se voltam para ver do que se tratava. Bem perto delas estava Ely, Eva e Afrodite, que sorriam afetuosamente para elas. Mais atrás, Ares, sempre sério e taciturno.

Ely se aproxima delas:

– Abençoadas sejam!

– Eu não posso acreditar… – diz Gabrielle, não conseguindo conter a emoção –

Eva… Ely…

Ely sorri e diz:

– O mundo ainda precisa de Xena e Gabrielle. Sejam felizes.

– Com toda a certeza seremos – responde uma efusiva Gabrielle – com toda a certeza.  – Gabrielle – diz Eva – eu mal tive tempo de agradecer pelo fato de você ter se preocupado comigo… e ido atrás de mim para me proteger.  – Mas eu não consegui… e eu não te agradeci por ter salvo a minha vida.

– Eu fiz o que devia ser feito. Gabrielle, minha hora havia chegado, a sua não.  – Ely – chama Ares – Eu sei que ainda tenho uma dívida com Xena e Gabrielle. Eu ainda tenho meus poderes e gostaria de fazer com que elas voltassem no tempo, para construir o próprio destino sem a minha interferência.  – Eu acho justo – responde Ely – assim não só Xena e Gabrielle terão uma segunda chance, mas também Cyrene, e a família de Gabrielle. Sugiro que voltem para Lesbos, na ocasião da segunda visita que fizeram àquele lugar. Para antes de Dahak e de Esperança. Para antes de todo aquele sofrimento. Se é que vocês concordam –questiona dirigindo-se à Xena e Gabrielle.

– Sim… mas, e Solan? E Eva? – quis saber Xena.

– Estes não poderão voltar – responde Ely – Solan agora é um Arcanjo e Eva tem uma missão a cumprir, afinal você e Callisto já saldaram as dívidas mutuamente, não é mesmo?

– Com certeza – responde Xena sorrindo para a filha – e você, meu amor, concorda? –questiona dirigindo-se à Gabrielle.

– Eu concordo com tudo, desde que eu nunca mais me separe de você – responde abraçando Xena com força.

– Então… que assim seja – diz Ares.

Antes que o deus da guerra transportasse Xena e Gabrielle de volta ao passado, Afrodite intervém:

– Eu também quero conceder um desejo para minhas amigas…

Gabrielle lhe sorri e pede:

– Eu quero ficar com Xena para sempre. Quero viver com ela todos os dias da minha vida e quando tivermos que partir gostaria que fôssemos juntas.  Afrodite olha para Ely que faz um sinal afirmativo com a cabeça.  – Desejo concedido – diz Afrodite levantando seu dedo indicador e o girando na direção das amigas – embora o dia da partida com certeza levará ainda muitos anos para chegar… – emenda sorrindo e desaparece no ar.

– E eu, minhas amigas, – diz Ely – lhes concedo a dádiva do esquecimento neste plano terrestre. Solan e Eva serão lembrados como remotos amigos, para que vocês não sofram de saudades. Esperança será apagada de sua memória Gabrielle e será como se nunca tivesse existido. Joxer continuará vivo, assim como Cyrene, Herodotus e Hécuba, e o marido de Lila. Vocês terão a oportunidade de reescreverem a própria história e a das pessoas que amam.

– Obrigado Ely – respondem Gabrielle e Xena, felizes ante a perspectiva de livrarem suas famílias do enorme sofrimento pelo qual tiveram de passar.  – Adeus mães – diz Eva – até um dia…

– Adeus filha – respondem as duas – até um dia.

– Prontas? – pergunta Ely.

Xena acaricia o rosto de Gabrielle e lhe beija carinhosamente a testa:

– Vamos, meu amor?

– Vamos, para onde você for eu vou com você, Xena…

Elas olham para Ely e respondem:

– Prontas.

Ely volta seu olhar para Ares que levanta sua mão direita e um clarão luminoso envolve Xena e Gabrielle, transportando-as até a ilha de Lesbos, num tempo em que eram muito, mas muito felizes.

Xena e Gabrielle se dão conta de que estão no porto da cidade de Mytilene e embora um pouco confusas, têm remotas lembranças de um período em que estiveram separadas.

Xena olha para Gabrielle abraçando-a:

– Engraçado… é como se eu estivesse morrendo de saudades de você… estou louca para te levar para um lugar mais íntimo… eu quero te amar a noite toda, minha paixão… eu te amo – diz beijando a boca de Gabrielle com volúpia.  Argo relincha ao lado como que alertando sobre os olhares curiosos que elas estavam atraindo das pessoas que passavam. Xena gargalha e Gabrielle responde para Argo:

– Bobinho… já passamos dessa fase de nos preocuparmos com a opinião alheia…

Argo murcha as orelhas e vira-se de costas para elas.

– Xena, esse cavalo está cada vez mais desaforado!!!

Xena gargalha novamente e sugere que partam logo para a casa de Edna e Morgana. Em seguida olha mais atentamente para Gabrielle e diz:

– Gabrielle, você está tão magrinha… eu nem tinha reparado. Precisa se alimentar melhor…

– Olha Xena, eu nem ia falar mas, também estou te achando meio pálida… Precisa pegar mais sol.

Elas se abraçam e partem sorridentes na direção da casa das amigas, seguidas de perto por Argo que maneia a cabeça, feliz. Parece que somente ele sabe bem o que elas passaram nos últimos tempos… mas, são águas passadas… relincha consigo mesmo…

E uma segunda chance foi dada pelo destino… destino este que foi transformado e redimido pelo amor e pelo perdão. E esta lição, com certeza, vale até os dias de hoje para todos nós…

FIM…ou recomeço…