O frio cortante do início do inverno fazia os dedos de Eve doerem mesmo sob as luvas gastas. Eve sentia o galho áspero de madeira embaixo do seu corpo coberto por uma fina camada de neve, e cada centímetro que ela avançava a madeira seca e gélida rangia de forma quase sinistra. Um estalo maior ecoou, fazendo algumas gotas de suor brotarem em sua testa enquanto ela esticava o braço, arfando e sentindo o frio invadir seus pulmões. Com movimentos calculados, foi se esticando na direção do seu alvo, sentindo o galho ceder levemente sob seu peso a cada centímetro. Sabia que qualquer movimento em falso poderia lhe custar a vida e por apenas alguns segundos, se perguntou como diabos conseguia se meter em situações como essa. Era sem dúvidas filha de sua mãe, talvez essa fosse a única explicação plausível.

“Eve, por favor” suplicaram dois olhos castanhos tomados de preocupação mortal alguns metros abaixo dela.

“Me deixa” ela rosnou em resposta “Eu vou conseguir”

“Você vai conseguir quebrar o seu pescoço ou umas seis costelas. Deixe-me te ajudar”

“Não.”

“Pare de ser orgulhosa”.

“Shhh” respondeu avançando lentamente centímetro à centímetro.

Varia revirou os olhos em frustração e com movimentos rápidos escalou a árvore habilidosamente com as técnicas amazonas coletando todas as pinhas daquele galho e saltando de volta do chão.

“Pronto. Desce já daí”.

“Te odeio”.

“Ambas sabemos que isso não é verdade”.

Dessa vez Eve quem revirou os olhos soltando o ar que prendia de maneira exasperada. Com uma mão livre, arrancou uma pequena pinha mirrada que era tudo o que Varia havia deixado para trás e começou seu caminho de volta para o chão.

Como previsível, a velha árvore com galhos ressecados pelo frio cedeu ao peso do seu pé durante a descida, e com seu apoio se partindo, o corpo de Eve se precipitou ao chão. Ou teria sido isso a acontecer se uma Varia ágil como um felino não atirasse todas as pinhas que segurava para cima e imediatamente se colocasse embaixo da outra mulher, recebendo o impacto do seu corpo em seus braços fortes.

 Ela colocou Eve ao chão com um sorriso cínico que misturava uma reprimenda silenciosa e um pouco de orgulho por a ter salvado.

“Exibida” resmungou Eve.

Varia colocou os braços na cintura um pouco ultrajada.

“Perdão? Esse é todo o agradecimento que eu recebo por salvar seu traseiro?”

“Eu ficaria bem” devolveu Eve “E meu traseiro também”.

“Você sabe que Xena tacaria fogo no mundo se algo acontecesse com você.” Varia disse com um pouco mais de seriedade agora. “E honestamente… eu a ajudaria a fazê-lo”.

Eve desmanchou o semblante carrancudo e obstinado que carregava nas duas últimas horas e soltou um leve sorriso diante do que aquela declaração significava. Silenciosamente fez uma nota mental de tentar ser um pouco mais responsável com sua própria integridade física. Diferente dos seus anos em Roma, agora havia pessoas que se importavam com ela de maneira genuína. Pessoas que a amavam. Ainda estava se acostumando a essa sensação.

“Certo. Acho que devo agradecer por salvar meu traseiro das encrencas que eu me envolvo”.

Varia abriu um enorme sorriso sincero enquanto se agachava para juntar as pinhas que havia derrubado quando parou tudo para segurar Eve.

“O prazer é meu. Além do mais, gosto dele inteiro, então tenho meus motivos” disse rindo e sendo imediatamente acertada pela pequena pinha mirrada que Eve segurava até agora.

Elas iniciaram a caminhada de volta para a vila Amazona percorrendo o chão pedregoso coberto de neve fina, o fim de tarde fazia com que a luz solar se tornasse escassa a cada minuto e o vento gélido acariciava a vegetação das árvores esbranquiçadas ao redor. Eve jogou sua capa de pele sobre os próprios ombros se protegendo do frio e observou por alguns segundos para se certificar de que Varia estava bem protegida com sua própria capa, visto que a Amazona tinha pouco apreço por roupas em excesso, mas aparentemente o clima severo havia sido o suficiente para convencê-la a se cobrir um pouco mais.

“Certo… temos suas pinhas e o azevinho. O que mais está na sua lista de itens?”

“Visgo”.

“Visgo??” perguntou Varia um pouco incrédula.

“Tradições são importantes” pontuou Eve. “Também quero arranjar algumas velas”.

“Eu nunca ouvi falar dessas tradições todas, então eu não faria ideia”.

“Amazonas não celebram o solstício?” perguntou Eve com um olhar surpreso.

“Sim, mas é só um grande banquete e alguns mimos trocados… nunca precisei sair coletar pinhas e ramos de matos estranhos”.

“Teremos seu banquete e seus mimos… Mas um pouco de decoração não fará mal a ninguém. São apenas algumas coisas que presenciei no Solstício junto dos Elaianos e… antes… Em Roma” disse Eve um pouco desconfortável.

Haviam se passado alguns minutos de caminhada e elas haviam chegado a uma oliveira com poucas folhas devido ao clima frio, mas cheia de pequenos cipós de visgo em seus galhos.

“Tudo bem… Às ordens” respondeu Varia tentando quebrar um pouco o silêncio desconfortável de Eve após ela mencionar Roma.

Eve sentou-se ao pé da oliveira para descansar, e entendendo que ela precisava de um momento, Varia sentou-se ao seu lado, largando o pequeno saco cheio de ornamentações que carregava e segurando a mão de Eve.

“Precisando de ajuda para voltar para o presente?” ofereceu com o semblante calmo.

“Varia…” começou Eve com um suspiro reticente de quem queria explicar o que sentia, mas ao mesmo tempo tinha medo de ser julgada. “Eu… Só queria criar algumas memórias felizes, sabe? Pela primeira vez eu não me sinto sozinha. A minha mãe está de volta e eu posso aproveitar mais tempo ao lado dela… Gabrielle está … por Deus, Gabrielle está radiante com aquela barriga enorme e quando eu olho nos olhos dela ela não está mais destruída como estava há meses. Eu vou ter um irmãozinho ou uma irmãzinha em breve e eu tenho…você. Eu tenho uma família. Eu nunca tive uma família antes. Roma era só sangue, caos e libertinagem. A missão com os Elaianos era importante e nobre e não terminou, mas às vezes era terrivelmente solitária… Eu não tenho muitas memórias felizes, então eu só queria poder criar algumas e que tudo fosse perfeito, você me entende?”

Varia soltou o ar que segurava e sorriu. De repente percebeu que o que Eve havia dito fazia bastante sentido, pois ela mesma sentia essa sensação inédita de ter um propósito maior do que apenas viver para a comunidade Amazona. O respeito que sempre teve por Xena e por Gabrielle no passado, ainda que permeado de conflitos causados por seus erros e sua imaturidade, havia se transformado em algo novo: afeto. Percebeu que desde que perdeu Marga não havia sentido algo assim.

“Claro que entendo” disse apertando a mão de Eve “Vamos pegar o visgo e amanhã iremos até o vilarejo atrás das velas”.

“Obrigada” respondeu Eve com sinceridade e aproximando-se do rosto de Varia, lhe deu um rápido beijo cheio de gratidão. “Mas honestamente… a Rainha Amazona não tem coisas mais importantes do que procurar bugigangas para decorar uma festa de Solstício?”

“Nah. Não tem nenhum conflito acontecendo e as trocas comerciais estão todas paradas por causa do inverno. Além disso, Gabrielle está lá para reinar, caso precise” respondeu Varia levantando-se e olhando para cima, analisando os cipós que pendiam. Em poucos segundos, escalou os galhos com destreza e saltou ao chão, ostentando os ramos verdes cheios de bolinhas vermelhas que Eve tanto queria.

“Eu acho que ela tem outras prioridades no momento” disse Eve rindo.

“Justo. Mas eu posso me ausentar por algumas horas… Afinal, do que vale ser rainha se não posso sequer dar alguns passeios com a minha garota?”

Eve riu, juntando o saco de ornamentos que carregavam e segurando a mão de Varia enquanto reiniciavam a caminhada de volta para a Vila das Amazonas.

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O salão comunal Amazona havia sido adornado por inúmeros arranjos de pinhas, azevinho, visgo entre outros pequenos ramos típicos da época. Um pinheiro havia sido colocado no canto do recinto, cheio de decorações e com alguns presentes envoltos em sacos de tecido enfeitados com fitas embaixo dele. A mesa das refeições estava repleta de frutas e vegetais da estação, enormes assados e doces que alimentavam toda a tribo por aquela noite e espalhavam uma mistura de aromas deliciosos pelo salão. Havia alguns barris de vinho perto da mesa e cântaros com suco de frutas para as crianças – e Gabrielle.

Gabrielle esta, que por sinal, caminhava devagar em direção à mesa central e praticamente se largava numa cadeira sentindo o conforto de poder descansar. Xena lhe acompanhou e parada atrás dela, começou a massagear seus ombros, enquanto ambas observavam a movimentação do local.

“Dá pra acreditar que ela organizou tudo isso?” perguntou Xena.

“Ah sim, ela tem o seu sangue, princesa guerreira. Nada me faria achar que ela não seria capaz de feitos enormes quando enfia isso na cabeça” disse Gabrielle. “Meus pés estão me matando e eu mal fiz alguma coisa além de vigiar a cozinha para que Gwyn e Amara não se matassem em discórdia sobre como preparar a comida”

“Nada como o espírito de Solstício para unir as pessoas em harmonia” disse Xena com uma sobrancelha levantada.

Gabrielle soltou uma gargalhada genuína e encostou sua cabeça descansando contra o braço de Xena.

“Obrigada” disse Gabrielle, secando uma lágrima originada pela risada anterior.

“Pelo que?”

“Por estar aqui. Por…estarmos aqui, juntas. Vivendo, e não apenas sobrevivendo”.

“Gabrielle, eu demorei anos e alguns traumas pra entender que também existe mérito e beleza na tranquilidade.” disse Xena inclinando-se e beijando a cabeça da barda “Pelos deuses…talvez seja a idade me pegando” disse com um tom ultrajado brincalhão.

“Nah, você está inteira ainda, pra sua idade” respondeu Gabrielle rindo e recebendo um beliscão no ombro em resposta.

“Faz sentido. É apenas um momento de calmaria. Ainda teremos muitas aventuras para mostrar pra esse pequeno ou essa pequena que está aí dentro. Nada que exija colocar alguém em perigo, é claro”.

“É claro…” disse Gabrielle erguendo uma sobrancelha duvidosa.

“Entretanto, para não perder o hábito, irei com Eve amanhã de manhã para Termópolis, ajudar no hospital local. Gostaria de acompanhar?”

“Em qualquer outro momento, você não precisaria nem perguntar. Mas dessa vez vou deixar o trabalho para não-grávidas e me contentar em me arrastar como uma marmota pelos cantos da vila”.

“Uma marmota grávida muito bonita, se me permite observar”.

“Você sabe das coisas…”

O momento reflexivo de ambas foi interrompido por uma exclamação de indignação de Varia enquanto Eve corria rindo em direção à Xena e Gabrielle.

Eve aproximou-se com um embrulho em mãos dobrando-se de rir, fazendo Xena levantar uma sobrancelha curiosa.

Varia aproximou-se delas também, sentando-se numa cadeira próxima de braços cruzados.

“Posso perguntar o que houve?” tentou Gabrielle.

“Minha reputação de Rainha amazona austera e sisuda está sendo arruinada pela sua filha”.

“Perdão?” Xena ergueu uma sobrancelha sem entender.

“Ela inventou essa história sobre visgo”.

“Por Eli, Varia. Eu não inventei nada, eu já te disse, é um costume…” riu Eve.

“É a oitava vez que ela convenientemente faz eu ficar embaixo de um ramo de visgo sem eu perceber e toda vez que acontece, ela me rouba um beijo. As crianças amazonas estão rindo da minha cara vermelha até agora”.

“Me poupe dos detalhes” disse Xena, com falsa irritação. Ela jamais conseguiria ficar verdadeiramente irritada, pois ver a leveza da risada de Eve, tão serena e feliz pela primeira vez era um bálsamo para as feridas do passado.

“Ah, entendi” disse Gabrielle, olhando para cima despretensiosamente.

“Você sabe que não precisa de pretexto, não sabe?” devolveu Xena.

“Mããããeeeeee!” reclamou Eve

“Esqueça a reputação Varia. Eu me cobri de lama e uivei pra lua. Não pode ficar pior do que isso”.

Eve riu novamente e voltou-se para Xena e Gabrielle.

“Nós… queríamos dar isso para vocês”.

“Achei que os presentes de solstício fossem apenas para as crianças…” disse Gabrielle abrindo o pacote com um sorriso. De dentro dele, tirou dois cordões com pingentes de pedra esculpida, uma com uma lua e outra com o sol.

“Uma exceção não fará mal…Bom, obviamente o seu é a lua, Gabrielle… Mas nenhuma Lua consegue brilhar com intensidade sem o Sol” disse olhando para Xena.

“Obrigada, Eve. São lindos. Eu não sabia que você tinha habilidades com pedras”.

“Ela tem muitas habilidades” disse Xena casualmente prendendo o cordão ao redor do pescoço de Gabrielle. Gabrielle apalpou o embrulho sentindo que havia algo mais dentro dele, revirando-o tirou um pequeno cavalinho de brinquedo feito de estopa, da mesma cor de Argo II e um par de sapatinhos feitos de pele de coelho.

“Isso é lindo Eve” disse Xena, sorrindo enquanto Gabrielle secava lágrimas insistentes. “Obrigada. Eu sinto muito, mas nós não temos presentes para vocês…”.

“Vocês têm sim.” Eve respondeu olhando para a barriga de Gabrielle.” Ele apenas não chegará para o Solstício”.

Pela primeira vez em muitos anos, o Solstício era feliz. Não havia sangue derramado, perseguição ou luto… Só por aquela noite, aquela não era uma vila de guerreiras ferozes, mas algo que Eve experimentava plenamente de maneira inédita: uma família.

Por um momento ela observou aquela família maravilhosa que nesse momento era seu maior presente e perguntou-se se realmente era digna de tal benção, logo ela, uma ex tirana que buscava reparação todos os dias. Dirigiu seu olhar para a janela que revelava lá fora um céu azul escuro particularmente estrelado, e entre milhares de luzes minúsculas, uma piscou mais forte para ela, lembrando-a que o Bem Maior nem sempre é feito de atos grandiosos de redenção… Às vezes era tão simples quanto fazer uma tribo amazona feliz, organizando uma Festa de Solstício.

Nota