Duas marcas de vela antes do crepúsculo Xena estava sozinha com Daiki na clareira próxima ao rio, afastada dez estádios do acampamento principal.

– Jun’Ichi, você foi incumbida de adquirir os peixes para o jantar e conseguiu realizar dentro do tempo previsto. Então qual foi o problema?
– Realmente não sei Yuu. Cheguei com o cervo antes do nascer da lua e ele foi rapidamente posto para assar, visando o almoço de hoje e providenciei os peixes para o jantar de todas imediatamente.
– Você obteve peixes em número suficiente?
– Caculei dois por amazona Yuu, mas a comandante referiu que eu não sabia contar, deixando-me sem alimento então eu calculei duas amazonas a mais e melhorei a quantidade para hoje de manhã e ainda assim a capitã usou o mesmo argumento para me deixar sem alimentos.
– Mas você se alimentou ontem. Hoje não? Porque?
– Não foi dito. Ontem as meninas dividiram sua refeição comigo, hoje elas não estavam no local. Não foi dito a quantidade, eu apenas pressupus dois por pessoa e acrescentei mais duas pessoas na contagem.
– Uma guarda real deve estar preparada para tudo Jun’Ichi, deve fazer mais que pressupor. Deve pressupor acertadamente. No caso de ficares responsável pelo alimento, cuidarás que nada falte a ninguém e deverás supor o imprevisto. O que farias se a princesa visitasse o campo? Ou a própria Melosa? É fundamental que vislumbres as diferentes possibilidades e cubras o melhor possível cada uma delas.
– Sim Yuu.
– Voce deve estar alerta para o todo na sua volta Jun’Ichi. Quando em guarda sobre a árvore, deve ouvir o farfalhar do vento nas folhas e colocar atenção em qualquer modificação.
– Sim Yuu, eu sei.
– O mesmo acontece com as flechas. Se você perceber a mudança no deslocamento de ar, deve ser capaz de identificar o que causou tal deslocamento e impedir ou auxiliar sua trajetória. É dito que voce consegue pegar uma flecha disparada contra você. Isto é verdadeiro?
– Sim Yuu.
– Eu gostaria de ver isso.
– Quando quiser Yuu.
– Depois. Agora me fale sobre a caçada do cervo.
– Não há muito a dizer. A trial rastreou com bastante eficiência e eu apenas precisei escolher o alvo.
– Qual o critério de seleção que utilizou?
– Não acredito em abater femeas ou filhotes, pois se fizermos isso em pouco tempo não haverá mais caça nas matas.
– O cervo que trouxeste não foi de tua escolha. O que modificou tua mente?
– Karin decidiu diferente e a capitã havia dito que eu deveria me colocar a serviço de qualquer amazona, então foi uma decisão fácil.
– Como ela fez saber sua decisão?
– Tocou em mim e perguntou o alvo, manifestando sua discordância. Suspendi o tiro e busquei o que ela indicou.
– A ouviste chegar. Por que deste tempo para ela manifestar sua opinião ao invés de executar o tiro que planejaste?
– Elas haviam rastreado a caça e ela merecia decidir o alvo ou ao menos que eu a considerasse Yuu.  Se estava chegando perto era com algum objetivo e eu podia esperar.
– Atuaremos sobre teu perceber. A tua capacidade de capturar flechas também é acionada se não enxergas Jun’Ichi?
– Sim Yuu.
– E quanto ao te desviares delas?
– É razoável, mas existe um limite de espaço para a quantidade que eu consigo me colocar fora da linha da seta. Se forem muitas ao mesmo tempo torna-se quase impossível.
– Veremos isso Jun’Ichi. Quando o evento começar, você deverá alcançar as árvores do outro lado da clareira onde eu estarei esperando para novas intruções. Procure fazer isso sem nenhum arranhão. Você entendeu?
– Sim Yuu.

Daiki afastou-se para a margem da mata e encoberta pelas folhas das árvores, deslocou-se rápida e silenciosamente para o outro extremo da clareira. Xena ficou impressionada com a técnica de sua treinadora, pois se não tivesse visto seu deslocamento e acompanhado cada movimento não conseguiria dizer que havia alguém observando no alto da apônia que reinava soberana naquele ponto da mata.

Em silêncio naquele momento Xena começou a ponderar que sua treinadora era realmente uma grande amazona e repensar as características dominantes de cada comandante e irmã que conhecia. A Conquistadora por alguns instantes imaginou a grande força que teria uma unidade assim no seu exército.

Havia se passado quase uma marca, quando mais do que ver ou ouvir ela sentiu.

Uma flecha passou zunindo próximo de seu ouvido, um pouco mais alto que seu ombro e sistematicamente ela recebia flechas que a obrigavam a abaixar-se, pular ou saltar de lado. A chuva de setas era constante e Xena disparou em direção ao outro lado da clareira, ainda sem entender como ou porque este ataque, no entanto sabia que deveria agir ou seria atingida.

As setas estavam sendo lançadas por quatro jovens amazonas. Karin mantinha suas flechas sempre próximas da cabeça da Conquistadora, fazendo-a agachar-se constantemente. Dieynisa garantia que a Senhora do Mundo permanecesse em constante alerta pelas laterais, desviando e Deian fazia as flechas serem direcionadas da cintura para baixo, visando as pernas de Xena, fazendo-a saltar constantemente.

Era necessário muita perícia no arco e uma grande coordenação entre elas para que chegassem próximo mas sem o risco de matar sua irmã. Lara lançou apenas cinco setas e todas direcionadas ao pescoço e ao coração da Conquistadora, que foram apanhadas por Xena enquanto corria. Ela ainda não sabia se desejavam mata-la, mas que deveria chegar ao outro lado sem ser tocada e sua incrível velocidade contribuiu muito para isso.

Assim que chegou a cobertura das árvores a chuva de flechas sessou.

Daiki aguardava escorada na Aponia.

– Você está bem Jun’Ichi?
– Sim Yuu.

Daiki estendeu a mão e recebeu as flechas que Lara tinha lançado e Xena logrou agarrar.

– É um feito muito impressionante agarrar flechas ao invés de desviar delas Jun’Ichi. Obrigada por permitir que eu presenciasse isso.
– Meu privilégio Yuu.
– Vá se lavar e volte aqui. Pode levar o tempo que quiser para relaxar.

Xena dirige-se ao rio com toda velocidade que consegue e nada algumas braçadas, buscando depois a pedra mais a oeste da clareira, onde jazia um pedaço de sabão e um pano. Lava-se rapidamente e volta para junto de Daiki. A Mestre da Guarda estava fazendo exercícios muito lentos, acompanhados de uma suave respiração e novamente Xena lembrou da Sátrapa de Chin.

Xena resolve aguardar próximo as armas que descansavam apoiadas na aponia. Quando termina seu exercício Daiki suavemente se dirige à Conquistadora.

– Como você está Jun’Ichi?
– Bem, Yuu.
– Parece que você andou servindo de ponte pra um centauro.
– Apenas torci o tornozelo na ultima corrida Yuu.
– Você não deve atuar se estiver machucada seriamente Jun’Ichi. A dor em excesso prejudica sua percepção do entorno e a capacidade de reação adequada, por dificultar a concentração.
– Realmente não foi nada grave Yuu.
– Isso é para eu julgar e você executar. Chamei-te para um exercício de precisão no qual lançarei uma flecha para o alto Jun’Ichi e caberá a você recebê-la no meio de seu escudo. Você entendeu?
– Sim Yuu.

Lentamente com cálculo em cada movimento Daiki colocou uma flecha em seu arco e puxou a corda.

Xena imediatamente toma do escudo e sai correndo para a região que calculava que a seta cairia. Realmente torcera o tornozelo e sabia ser sério, mas não iria se entregar facilmente à dor. Nunca o fizera e não iria começar agora, para satisfação de Ephiny. A Senhora do Mundo não seria quebrada.

Lembrando a batalha de Crionéia onde lutou dois dias com uma costela fraturada, chegou a achar graça deste pequeno teste amazona.

Conseguiu pegar a flecha quase no centro de seu escudo. Sem dizer nada, Daiki arma outra seta e novamente Xena pega a seta, mas desta vez, um pouco mais afastada do centro. Assim foi feito mais sete vezes e cada vez se tornava mais difícil para Xena correr, mesmo com seu incrível poder de recuperação a imperatriz tinha suas limitações e estava começando a perceber isso. Nas últimas três vezes pegou a seta quase na lateral do escudo.

– Venha aqui Jun’Ichi.

Xena vai claudicando e sua velocidade estava muito diminuída.

– Você pode perceber que sua precisão diminuiu consideravelmente.
– Sim Yuu.
– Entre no rio e permita que as corredeiras ajudem seu pé.

A lua já havia surgido e o carro de Apolo totalmente recolhido quando Daiki afastou-se e foi cuidar da fogueira que estava montada a dez pés de distância, na beira do riacho, onde três peixes assavam deixando aromas que mexiam com a imaginação. Uma marca de vela depois Daiki chamou Xena que estava meditando com os pés dentro d’água, quase num sussurro.

– Jun’Ichi .

Imediatamente Xena abriu os olhos e correu para junto de sua instrutora.

– Sim Yuu.
– Sente-se e vamos conversar.

Xena sentou-se e ficou aguardando.

– Como está seu pé?
– Dói menos Yuu, obrigada.

Daiki abaixou-se e pegando uma faixa de seu alforje começou a firmar o tornozelo de Xena.

– Você somente retirará esta faixa quando formos voltar para junto da princesa. Se Ephiny perguntar o que aconteceu, dirá que eu quis assim. Somente isso.
– Sim Yuu.
– Como foi o exercício de coletar a flecha com seu escudo Jun’Ichi ?
– No começo foi simples, mas à medida que maior velocidade era requisitada, meu corpo não respondia a contento.
– Ser membro da guarda real é pensar primeiro na realeza e depois em si mesmo. Como vamos ficar, sentir ou parecer não importa Jun’Ichi . Seu pensamento em não se dobrar e entregar o orgulho à capitã foi primordial em seu julgamento, quando o correto seria admitir sua fraqueza e passar a tarefa adiante, admitindo a dificuldade para que fosse suprida a falha na cobertura. Não importa seu sentimento Jun’Ichi, mas a eficiência do grupo na tarefa proposta.
– Sim Yuu, peço desculpas por minha falha.
– Não se trata de pedir desculpas, mas de não errar. Não existe espaço para falhas na guarda real Jun’Ichi . Esta é a razão de apenas algumas irmãs serem admitidas para o treinamento específico e destas, somente poucas chegarem ao final. Proteger Aquela que representa Artemis é mais que um trabalho de guarda costas, é a atuação que vale uma vida inteira, se tiver sorte.
– Sim Yuu.

Retirando os peixes das brasas, Daiki estende sobre uma tábua colocada sobre umas pedras ao lado.

– Coma. Você deve refazer sua força e depois busque o galho mais alto que encontrar, onde possa estabelecer algum descanso. Você consegue dormir sobre as árvores?
– Sim Yuu.
– Ótimo. Faça isso. Durma por três marcas de vela, não mais, e apresente-se à comandante Ephiny. Se ela perguntar o que estavas fazendo, diga-lhe apenas: Arvorismo. Se Ephiny exigir detalhes, você deve indicar a árvore e o galho em que esteve nas últimas horas, mas não mencione o sono. Isso é entre eu e você Jun’Ichi.
– Sim Yuu.
– Agora diga-me Jun’Ichi , qual a verdadeira razão de você desejar pertencer à guarda real.

Xena olhou firmemente para Daiki, ponderando até onde deveria revelar as nuances de sua nova situação para esta amazona. Se Ephiny não o fez, nem Gabrielle, ela deveria fazê-lo? Após algumas batidas de coração, elevou seu pensamento à Artemis  e com dobrada confiança lançou os pudores ao vento e um cuidadoso silêncio foi substituído por uma voz firme, clara  e com uma suavidade insuspeita em guerreira de tal fama de crueldade.

– Eu a amo Yuu.  Amo mais que a honra, minha vida ou meu império. Ela me é mais cara que minha alma. Desejo garantir que nenhum mal lhe alcance, proporcionar seu conforto, tranquilidade e proteger a princesa de qualquer dor física, emocional ou espiritual.
– Você certamente se refere à Gabrielle, mas a guarda real é muito mais ampla do que atender apenas as necessidades da princesa das amazonas trácias.  É muito mais ampla do que atender Gabrielle. Você compreende isso?
– Sim Yuu.
– Realmente? Compreende que podes ser enviada em missões por luas ou ser designada para um posto junto a uma oficial ou ainda servir a Melosa? Amar Gabrielle é um bom motivo para desejar estar na guarda real Jun’Ichi , mas é um motivo muito pequeno. Durante seu treinamento, espero que você desperte para a verdadeira razão da guarda real existir.

Xena tinha como certo que o seu treinamento era uma questão protocolar e ao ouvir estas palavras começou a se preocupar com o rumo que as coisas iriam tomar dali pra frente.

– Sim Yuu.
– Você não deve concordar quando não estiver de acordo Jun’Ichi. Quando este for o caso, apenas guarde silêncio e faça o que foi determinado. Você compreendeu?
– Sim, Yuu.
– Desejo saber como você está com esta sua primeira experiência no grupo, Jun’Ichi.
– Está sendo fácil a parte física, embora eu tenha que fazer um esforço para recordar o que sou agora e não o que fui. Muitas vezes minha tendência é reagir à ordem de maneira inadequada Yuu. Sinto muito por isso.
– Não sinta, aprenda. Agora vá e procure descansar Jun’Ichi . Durma bem e não se atrase.

Xena dirigiu-se para o leste, onde sabia estar um aglomerado de aponias que ultrapassavam as figueiras altas. As aponias ultrapassavam facilmente 60 pés de altura, enquanto as figueiras apenas chegavam a este valor. Encontrar um galho largo o suficiente para que pudesse se equilibrar e dormir não foi problema e passadas três marcas de vela, Xena procurou o grupo de Ephiny, onde a luz da fogueira parecia um farol na escuridão da noite.

Chegando próximo à capitã, Xena permanece em pé aguardando ser reconhecida sua presença. Ephiny conversava animadamente com as amazonas e a trial de Karin fazia parte desta conversa. Pela primeira vez Xena percebeu as meninas como parte integrante do grupo, que em pé de igualdade riam com as brincadeiras e contavam suas perspectivas sobre o serviço de guarda no campo e as artimanhas que usavam para estarem alertas sobre as árvores.

Ephiny propositalmente fez Xena aguardar, pois desejava verificar a capacidade da Imperatriz de estar alerta e aguardando.

Depois de quase uma marca Ephiny dá atenção à aspirante e novas ordens que a manteriam ocupada até a terceira marca de vela após a lua iniciar sua descida.