Dia 1 do exílio. 

Eu ouvi o som estrondoso do portão do acampamento bater atrás de mim e eu senti que nada mais seria como antes. Três semanas se passaram desde que Gabrielle proferiu minha sentença. Ela foi piedosa o suficiente para esperar que eu me recuperasse integralmente antes de me lançar à minha própria sorte.  O sentimento de solidão era tão grande como no dia em que perdi minha irmã, porque eu sabia que mesmo que sobrevivesse ao exílio, jamais teria coragem de voltar e encarar minhas irmãs amazonas nos olhos. Eu havia falhado e eu estava sozinha. 

A caminhada até adentrar a extensa floresta foi longa e me tomou várias horas. Ser abraçada pela escuridão entre as árvores fez meu estômago revirar. Artemis não me ajudaria, pois estava morta. Por Ares eu sentia asco. E os demais deuses que haviam sido poupados por Xena, seriam inúteis nessa hora. Encontrar abrigo antes que anoitecesse era minha melhor chance e assim prossegui.  

Pelos Deuses, como era difícil conseguir soltar alguns cipós sem qualquer tipo de lâmina. Galhos então, eu só conseguia quebrando, mas eram irregulares demais para tentar construir uma miserável cabana. Eu juro que tentei, mas no fim minhas mãos acabaram feridas demais para continuar tentando e resignada, taquei fogo nos poucos galhos que havia conseguido, para pelo menos poder me aquecer à noite e espantar qualquer possível animal selvagem. Acabei dormindo, tomada pela exaustão das horas de trabalho e pela frustração.  

Dia 2 

Ao amanhecer, levantei-me e fui tentar improvisar algumas armadilhas a fim de tentar conseguir alguma caça que pudesse me manter nutrida pelas próximas horas. Era tudo extremamente rudimentar, pois sem ferramentas não havia muito que eu pudesse fazer. As deixei armadas e após me hidratar um pouco com a água do córrego, voltei à minha tentativa de montar algum abrigo. Pelos meus cálculos, imagino ter perdido meio-dia construindo uma pífia tentativa que parecia querer desabar a qualquer momento. Não consegui nenhuma caça, mas encontrei algumas frutas de um arbusto, que não tinha total certeza de serem comestíveis, mas sem outra opção, as ingeri. 

Madrugada do dia 3. 

O vento impiedoso apagou minha fogueira e levou o que eu algumas horas antes chamei de “telhado”. Meu corpo treme violentamente. Em algum momento o cansaço me vence e eu caio no sono. 

Dia 3 

Minha cabeça lateja. Estou irritada, com fome, com sede e exausta. Decidi me aprofundar mais na floresta na esperança de achar algo para comer e quem sabe uma caverna onde possa me abrigar. Eu ando sem rumo, usando um galho reto como apoio. O sono, por causa da noite mal dormida, me deixa pouco alerta e eu tropeço em vários momentos. Que porcaria de amazona sou eu? Se Artemis estivesse viva, se envergonharia de mim. Consegui improvisar alguns odres com segmentos de bambus e ao menos consigo me manter hidratada durante o dia, mas meu estômago ruge reclamando da falta de comida. Coleto algumas raízes que sei serem comestíveis, mas são amargas como fel e minha garganta reclama. Faço novas armadilhas, mas minha sorte piora. Uma chuva torrencial começa abruptamente e sou pega sem abrigo debaixo daquele aguaceiro gelado. Tudo está molhado agora, e não consigo sequer acender uma fogueira. Minhas armadilhas foram levadas pela água. Que os deuses que restaram tenham piedade de mim. 

Dia 4 

Sinto que na madrugada anterior transcendi o frio.  Tremi tanto que achei que meu interior havia virado algo gelatinoso, mas fui acordada por um sol flamejante que parecia que o próprio Apolo havia me abraçado. Minha garganta estava seca como areia. Bebi um pouco de água e iniciei minha caminhada, me aprofundando mais na floresta. Comecei a marcar pequenos riscos no meu cajado improvisado para contabilizar quantas noites haviam passado. Ao menos quando eu perecer e alguém encontrar a madeira marcada, verão que tentei. A floresta era estranhamente silenciosa, salvo pelo canto ocasional de alguns pássaros. Havia algo de opressor nesse lugar que parecia começar a me sufocar. Ouvi galhos caídos se quebrando em algum lugar da mata e senti que algo me espreitava. Seria alguma fera disposta a colocar fim ao meu sofrimento? Ou algum pequeno animal que pudesse virar minha primeira refeição decente? Talvez fosse apenas delírio pela condição débil que eu me encontrava. O som parou. 

A madeira estava molhada demais para queimar. Por Hades, mais uma noite fria pela frente. Encontrei algumas sementes comestíveis numa clareira e as ingeri como se fossem ambrosia. 

Madrugada do dia 5 

Cometi um erro terrível ao comer aquelas sementes. Ou talvez a água do riacho tenha se contaminado com algo trazido pela chuva. Meu estômago lateja e minha cabeça está queimando. Dormir em cima de folhas molhadas também não ajuda. Meu corpo inteiro treme. Sinto uma mão segurar meus ombros no lugar. Tento enxergar com minha visão turva, mas não tem ninguém. Estou delirando. 

Dia 5 

Acordo me sentindo fraca. 

Folhas enormes cobrem meu corpo. Há uma fogueira acesa perto de mim, e um coelho sendo assado num pedaço de graveto. Meus odres estão cheios. Rastejo até perto da fogueira e devoro aquele assado como se fosse o maior banquete que já comi. Bebo muita água também. Sinto um pouco de dignidade e de saúde tomando meu corpo. Do lado da fogueira tem uma pedra pontiaguda bastante afiada. É obsidiana. Me sinto confusa imaginando quem havia feito tudo isso, mas seja lá quem a deixou aqui, acabou de equilibrar um pouco minhas chances. Com minha nova ferramenta fica muito mais fácil cortar os cipós e galhos que eu preciso. Ainda me sinto um pouco fraca, mas aos poucos minhas forças se retomam.  Consigo fazer algumas armadilhas que acredito que serão mais eficazes que as primeiras. 

Dia 6 

Na noite anterior consegui fazer um abrigo um pouco mais consistente e ter uma noite um pouco melhor de sono. Acordo um pouco melhor. Desço até o riacho e tomo um banho restaurador. Confiro minhas armadilhas e encontro duas aves, que viram minha refeição. Guardo uma delas para mais tarde. Chego à conclusão de que agora mais forte, eu deveria sair em busca de uma caverna realmente, pois caso chova novamente, me encontrarei em apuros. Junto minha lâmina improvisada, meus odres e as comidas que preparei e começo a caminhar. No meio da minha jornada escuto novamente algo quebrando os galhos secos do chão. Olho para trás rapidamente, e não vejo nada. Uma brisa bate como se zombasse de mim. Balanço a cabeça e continuo caminhando. 

Noite do dia 6 

Encontro o que procurava. Minhas coxas ardem de exaustão, mas solto o ar aliviada.   Tento seguir até a entrada da caverna recém-achada, sei que tenho poucas horas para montar uma fogueira antes que o frio da madrugada venha impiedoso. Quando vou dar um passo em direção à clareira que demarca a entrada da caverna sinto minha cabeça girar. Algo segura firmemente meu tornozelo e me lança para cima. Meu corpo dói, balançando ao ar enquanto uma corda aperta meus tornozelos. Idiota – penso eu. – Virei a caça. 

-Amazona… – sibila um homem de tamanho médio, com dentes podres e vestes maltrapilhas. Talvez as suas vestes estivessem em más condições, talvez isso fosse intencional para se camuflar. Eu não sabia. – Gosto muito de amazonas. -Ele colocou a lâmina no meu pescoço e as escorregou até meus seios. Eu tentei me agitar, mas sabia que se o fizesse, poderia piorar as coisas, então parei. Minha lâmina improvisada estava na minha bota, fora de alcance, então por mais que quisesse, não poderia enfiá-la na garganta daquele porco imundo. Teria que deixar isso para mais tarde. Eu reconhecia aquele tipo, caçadores de gente estavam se tornando muito comuns aos arredores do território amazona, seja agindo solo ou em bandos. Sem a proteção de Artemis, acreditavam que elas haviam se tornado um alvo fácil para seu esporte hediondo. Era uma das razões pelas quais eu estupidamente tentei fazer um trato com Ares. 

O caçador amarrou minhas mãos atrás do meu corpo e cortou a corda que segurava meus pés fazendo eu cair dolorosamente. Tentei levantar-se e correr, mas sem os braços livres tudo que fiz foi cair de cara no chão. Senti ele se aproximando por trás de mim e me segurando. Seu corpo imundo encostando no meu. Fechei os olhos. Que final ridículo. Há alguns dias eu queria morrer, mas nunca desejei por isso. 

De repente o peso do corpo daquele ser grotesco saiu de cima de mim. Mas não de maneira lenta ou por vontade própria. Pelo baque surdo que escutei, percebi que ele foi arremessado ao chão de maneira violenta. Escutei o som de algo quebrando. Consegui rolar para o lado e me desvirar, para então ver que se tratava de um antebraço. 

-Agora suma daqui se não quiser que eu quebre todo o resto dos ossos do seu corpo. – gritou uma voz furiosa. 

Pisquei algumas vezes tentando entender se eu estava delirando ou se realmente meus olhos viam o que viam. 

-Livia? – sussurrei. 

Ela fungou, com um pouco de frustração. Tirando uma faca de sua cintura, cortou as cordas que me prendia as mãos. 

-Você devia tê-lo matado. – falei um pouco baixo. 

-Talvez. Mas eu não faço as coisas desse jeito. Não mais. 

-Por quer você está aqui? 

-Aparentemente para te salvar – sua voz misturava calma e um pouco de cinismo. Era sem dúvida uma mistura perfeita de Xena e Gabrielle. -Venha. – Ela segurou uma tocha que havia deixado cravada no chão enquanto arrebentava o bandido que me atacou, e me conduziu para dentro da caverna. Lá fez uma fogueira rapidamente e saiu em busca de forragem para o chão duro e gelado de pedra. Voltou com capim seco e o espalhou no chão -Não é a melhor cama, mas acredito que hoje você descansa um pouco melhor. Cuide-se Varia. Não se deixe capturar, ok? Gabrielle não quer isso.  

Ela virou as costas para mim e saiu da caverna. Pisquei algumas vezes tentando fazer sentido do que havia acabado de acontecer e disparei numa tentativa de corrida desajeitada – ou qualquer coisa parecida, que minhas forças permitissem – para alcançá-la. 

-Espera aí – gritei. Foi inútil, ela não parou. Continuou a andar com sua tocha em direção às árvores densas, sem explicação. – LIVIA, VOLTE AQUI. – gritei novamente. Nada. 

Tentei andar atrás dela, mas eu ainda me sentia fraca e com dor. 

-Volte aqui! – gritei novamente – EVE! – Ela parou. Virou-se devagar e retornou. Me olhou nos olhos esperando. Tentei sustentar o olhar, mas não consegui e desviei. – Gabrielle sabe que você está aqui? – perguntei por fim. 

-Não. E ela não vai saber. – Esperei por mais palavras, mas elas não vieram. 

-Por que você me salvou? 

Ela demorou um pouco para responder e riu um pouco triste. 

-Sério, Varia? Você acha que eu te deixaria virar presa daquele cara? 

– Digo… Eu na verdade queria saber por que você está aqui. 

-Apenas fique grata por eu estar. Eu já estou partindo, ok? Não vou te incomodar. 

-Liv…Eve? Por favor… Eu…  – eu balancei a cabeça confusa tentando fazer sentido daquilo. -Você estava me seguindo? A lâmina de obsidiana, o coelho… Foi você? 

Ela respondeu com um sorriso torto, sem graça e deu de ombros. 

-Era a coisa certa a se fazer. Eli iria… 

-Esqueça Eli. Se Gabrielle descobrir que você me ajudou ela vai me punir, e vai TE punir. 

-Eu sei lidar com Gabrielle.  

-Mas eu não sei. Não quero que estrague minha prova. – falei um pouco mais alto do que pretendia, o que provavelmente soou como um grito. 

Livia me olhou por alguns minutos. Eu não conseguia ler sua expressão muito bem. Sua calma e sua fala macia eram sempre muito pouco reveladoras sobre suas intenções. 

-Você preferia ter morrido, ou quem sabe virado uma escrava sexual daquele cara? – disse por fim. 

Eu não respondo. Deveria agradecê-la? Eu só queria sumir. Não sei como lidar com as coisas que sinto nesse momento. A frustração imensa por não poder fazer NADA a respeito do ódio que ainda sinto por ela. A sensação de fracasso que me inunda ao perceber que tudo que fiz não serviu para nada além de me autossabotar. A vontade de chorar em posição fetal por horas. 

-Eu estou indo – ela diz. 

-Espere. – falo incerta do motivo de sequer ter falado. – V-você não deveria entrar nessa selva escura com esse cara solto por aí. Não sabemos se ele está sozinho. 

-Você acha que não sei me defender? – ela perguntou, não com irritação, mas com um sorriso desafiador. – Está preocupada comigo, Varia? 

O ultraje. É claro que não. Por que eu me preocuparia com a integridade dela? Da pessoa que desejei ver morta por tantas vezes? 

-Gabrielle enlouqueceria se algo acontecesse com você. Passe a noite aqui pelo menos. – Respondo. 

Ela sorri. Isso me irrita. Isso me irrita muito, mas não faço nenhum comentário. Ela aproxima-se da fogueira e começa a mexer nas brasas com um graveto. Eu tiro o pouco de comida que resta e estava guardado nas minhas coisas e faço o que seria decente e esperado, ofereço. Ela recusa. Ridícula. 

Eu me encosto nas rochas duras da caverna e tento achar uma posição confortável para passar a noite. Não lembro de mais nada.