Dia 7 

Abro meus olhos em sobressalto. O fogo está baixo e encontro frutas dispostas em cima de uma grande folha de vegetação perto dele. Meus odres estão cheios. Não há sinal de Livia no entanto. Me sento perto do fogo e como parte das frutas. Bom, agora pelo menos tenho um lugar seguro e uma arma. Talvez eu deva me sentir grata em vez de amargurada. 

Preciso caçar. Por mais que as frutas tenham me nutrido, a necessidade de carne é evidente para manter minha condição física minimamente decente.  

Saio para a mata e coleto alguns materiais para fabricar um arco simples. Torná-lo funcional será o próximo passo, mas enquanto isso não acontece, tento me manter hidratada e descansar bastante para poupar energia. Com a pouca comida que ingeri nos últimos dias, todo passo desnecessário que dou é um gasto da energia que pode fazer falta depois. 

Dia 8 

Eu acordo determinada a conseguir comida. Comida de sustância, que restaure minha força e eu possa parar de me sentir atordoada toda vez que levanto. 

Saio para a mata com as flechas que fiz na noite anterior e dou sorte. Consigo abater dois pequenos roedores. Sei que não passarei fome, mas sei que também não é o suficiente. Se eu conseguir umas duas aves talvez tenha o suficiente para uns 4 dias. 

Asso a caça que consegui e decido esperar a noite chegar. Alguns animais têm hábitos noturnos e será mais fácil encontrá-los. Também estará menos quente e eu conseguirei perder menos líquido corporal. 

Noite do dia 8 

Aponto a flecha para um pássaro noturno que se senta em uma pedra para bebericar a água que deixei estrategicamente posicionada como chamariz num segmento de bambu. Consigo abatê-lo com sucesso acertando uma flecha em seu peito. Levo a ave até o riacho para limpá-la com ajuda do luar. Estou alimentada, mas tenho que assá-lo já para não deixar que estrague. 

Estou terminando de me livrar das vísceras quando sou derrubada na água. Um gato selvagem obviamente atraído pelo cheiro do sangue pula em mim, arrancando a caça da minha mão. Não é um animal tão grande. Tento lutar batendo nele com meu arco, pois não tenho distância para disparar. Ele arranha meu braço profundamente e recuo. A fera foge com minha comida. Hades. 

 

Madrugada do dia 9 

Tento manter o ferimento limpo da melhor maneira possível e fazer um cataplasma com algumas raízes e ervas maceradas. A dor diminui, mas não está nada bonito. 

Não me sinto muito bem. 

Dia 9 

Saio pela manhã atrás de mais comida. Encontro frutas e o açúcar delas me dá um pouco mais de energia. Vou até o riacho pois resolvo apostar minhas chances em tentar pescar algo para comer. Tento mirar nos peixes e atirar neles, mas minha visão está um pouco embaçada e meu arco está danificado por ter tentado golpear o felino. Acabo me resignando e me contentando em brigar com um pequeno caranguejo que será meu café da manhã hoje. Pouquíssima carne. Bebo bastante água, mas me sinto exausta. Acabo deitando em uma pedra perto do rio e sou vencida pelo cansaço. Sinto meu rosto arder febril e olho para meu braço. Secreção purulenta sai dele. Isso não está nada bom. Fecho os olhos e suspiro longamente. 

Quando os abro, Marga está em minha frente. Sento-me em sobressalto emocionada e meus olhos se enchem de água. 

-Você está viva! 

Você está viva, Varia. 

-Ou o que resta de mim… – digo tristemente. – Eu senti tanto a sua falta, mãe. 

-Você cresceu sem mim. Entendo que foi difícil, mas foi necessário. Entretanto, não terminou. 

-Eu perdi tudo. Não sei o que fazer. 

-Você precisa morrer. 

-Morrer? Eu não entendo…, mas aceito. Morrer acabaria com minha dor. 

-Não. Não dessa maneira. Você precisa morrer para que a Varia de verdade possa renascer. Sua sede de vingança, sua mágoa, sua amargura, precisam morrer para que você volte a ser uma amazona. 

-Eu não sei como fazer isso, Marga. Eu quero ficar aqui com você.  Não tenho mais ninguém. Eu aceito a minha morte. 

-Mas eu não – disse me dando uma bofetada no rosto. 

Abri os olhos. Marga não estava ali. Livia estava. Ela iria me esbofetear de novo, mas ergui a mão aparando o golpe como pude. Ela arregalou os olhos surpresa, e sorriu. 

-Olá. Bem-vinda de volta – disse simplesmente.  Percebi que não era exatamente uma bofetada, mas um tapa no meu rosto na tentativa de me acordar. Meu corpo fragilizado que a sentiu vir com mais força do que a realidade. 

-O que você está fazendo aqui? 

– Acho que se tornou um hábito. Você tem um talento peculiar para arrumar encrenca. Tipo ficar inconsciente na beira de um rio debaixo de um sol escaldante, estando febril e com uma ferida infectada. 

Olho para meu braço. Tem uma folha amarrada nele e uma sensação estranha de formigamento no ferimento. 

-O que você fez? 

-Medicina de guerra. 

Uma pequena larva caiu pra fora do curativo improvisado. 

-VOCÊ FEZ O QUE???? – exclamo arrancando as amarras e revelando um monte de larvas grudada em minha carne. 

-Se acalme. As larvas comeram o tecido infectado evitando que a infecção se espalhasse por seu corpo. É só retirá-las e lavar o ferimento agora. – ela diz esticando meu braço e derramando água sobre ele. 

Preciso admitir que a ferida parece bem melhor. 

-Eu vou ficar com você até ter certeza de que está fora de perigo. Se você perder a consciência de novo, poderá virar presa de algum animal. 

-Espera aí, como você me achou? Você está me seguindo? 

Ela não responde. Apenas dá um sorrisinho de canto de lábio como se admitisse que foi pega. 

-Gabrielle não vai gostar disso. 

-Gabrielle não é a pessoa que você pensa, Varia. Gabrielle não está bem, mas dentro da sua normalidade, ela é gentil, compassiva e acima de tudo, sábia. Ela pode ser implacável, mas jamais deixaria uma pessoa inocente morrer.  

-E você está bem? – pergunto, genuinamente curiosa. Entendo que Gabrielle tenha perdido sua alma gêmea, mas Liv…digo, Eve, perdeu a mãe que recém tinha recuperado. 

-Aprender sobre Eli me faz lidar com a perda de uma maneira diferente. Dói e sinto que uma grande injustiça ocorreu, mas me preocupo mais com minha outra mãe nesse momento. Queria poder fazer algo por ela. 

-São verídicos os rumores de que… Xena escolheu assim? 

-Sim. Na contramão de todos os ensinamentos de Eli – disse ela torcendo os lábios com um olhar triste. – Ela disse que o único modo de eu me perdoar seria permanecendo viva e equilibrando as coisas fazendo o bem maior. Às vezes fico irritada com a hipocrisia dela, mas ainda a amo. 

-É por isso que está aqui? Você está tentando equilibrar as coisas me mantendo viva? 

-Isso te incomoda? 

-Me lembra a todo momento da minha própria estupidez e incompetência. 

-Sinto muito por isso. – ela diz e ri. Eu não consigo me conter e rio também, da minha própria desgraça. – Varia, eu tenho uma dívida com você. E tenho outra com Gabrielle, pois Xena me deu a luz, mas Gabrielle inúmeras vezes também me deu a vida. Eu não quero que você morra e não quero que Gabrielle tenha que viver com isso. Mas não se trata só de reparação. Eu realmente me importo com vocês duas.  

-Por que? 

-Existe necessidade de haver uma razão? Às vezes é apenas como a gente se sente.  – ela suspira – Eu jamais serei uma amazona. Não seria justo eu me tornar uma e não é o que quero. Mas alguém precisa cuidar dessa tribo. Gabrielle nesse momento não está com condições de fazer isso. E as outras amazonas…  

-São um monte de crianças imaturas. 

-Eu não iria dizer isso, mas… – ela riu. – É por isso que você precisa voltar. 

-Eu não sou melhor do que elas. Veja os erros que cometi. – falo, e em seguida reflito que ela sequer deve saber que quase cravei uma flecha em Gabrielle a mando de Belerofon. 

-Tudo bem. Somos todos um trabalho em progresso. Vai comparar erros comigo, Varia? 

“Eu odeio Ares” – penso. No fim ele era o principal responsável por toda essa sucessão de infortúnios que aconteceu tanto na minha vida quanto na de Eve. Eve… Eu percebo que pela primeira vez pensei nela como Eve, de uma maneira natural e não irônica. Olho para o cabo do meu cajado improvisado com as marcas que fiz. 

-Me sinto estúpida. Em quase 10 dias mal consegui me alimentar e quase morri por diversas vezes. Não sirvo de referência para nenhuma amazona. 

-Você se cobra demais, Varia.  Você entrou no exílio convalescente de inúmeras lesões e sem recurso algum. Lembre-se que é apenas humana. 

Por um momento me lembro da razão das minhas lesões e sinto vergonha. 

-Eve, eu preciso te pedir desculpas.  

-Não precisa. Concentre-se em se recuperar e em cumprir as três luas de exílio que faltam. 

-Não, escute. Eu sei das coisas que você fez, e sei o motivo de as ter feito. Eu tentei te matar por três vezes, porque achei que era a única forma de fazer as pazes comigo mesma. Eu sentia que devia isso à minha irmã. 

-Está tudo bem. 

-Você nunca revidou. Mesmo tendo força para me despedaçar. Eu sei disso. 

-Minha morte não a traria de volta. Mas revidar nunca esteve nos planos. Isso implicaria em te machucar, ou pior. Por isso sempre aceitei minha sentença.  

-Como você consegue viver com esse tipo de paz e abnegação? Tudo que eu sinto é vazio. Eu não sinto mais ódio por você , eu só sinto… vazio.  

-Vazio pode ser bom. Significa que existe espaço para preencher.