Dia 10 

-Você tem certeza de que Gabrielle não sabe que você está aqui? – pergunto mordendo um pedaço de fruta enquanto Eve se ocupa trançando um cipó. Eu acordei há pouco tempo de uma noite bem dormida e sem febre. Minha visão está menos embaçada e minha cabeça parou de querer explodir. 

-Não. Mas ela não poderia me proibir de estar. A floresta é um território de ninguém. 

Ela tem um ponto válido. Mas isso não incluiria ser minha babá ou meu anjo guardião.  

-Perambular pela floresta fazendo caridade com amazonas desgarradas se tornou seu passatempo? 

-Só quando elas têm lindos olhos castanhos. Não aconteceu muitas vezes. 

O que acabou de acontecer aqui? Ela disse o que eu acho que ela disse? Ela me elogiou gratuitamente ou isso foi um…flerte? Quando me dei por mim estava com a mão em minha bochecha tentando sentir se ela havia de fato ficado quente ou se era mera impressão. Balancei a cabeça e dissipei os pensamentos. Meu arco havia quebrado quando acertei o gato selvagem com ele. Eu precisava de uma nova arma. Peguei a lâmina de obsidiana e comecei a afiar a ponta do meu cajado para transformá-lo em uma lança e poder pescar. 

Eve levantou-se e ergueu o trançado de cipós que estava fazendo revelando uma minuciosa rede de pesca. 

-Assim que seu ferimento cicatrizar, eu te desafio para uma pescaria. 

-Pretende permanecer por aqui por tanto tempo assim? 

-Acredito que em coisa de dois dias você estará bem. – disse ela caminhando para longe. 

-Onde você vai? – pergunto impulsivamente com um pouco de receio. 

-Fazer minhas preces – ela respondeu se retirando 

Resolvo sair em uma caminhada beirando o riacho. O clima está agradável, ainda que o dia esteja quente e úmido, uma brisa fresca adentra a floresta tornando-a menos opressora. Mas quando analiso bem, percebo que o que a tornou menos opressora foi a presença de Eve. Estive acostumada a viver entre as amazonas desde que nasci. Era estranho sentir a solidão do modo como senti nos últimos dias. O silêncio externo se contrastava com o tumulto barulhento de dentro de minha cabeça, mas agora as coisas pareciam um pouco mais… silenciosas. Como um campo de batalha após um embate, só que a batalha havia sido minha contra meu ego e minha culpa. 

Pela primeira vez senti meus ombros relaxados. Era como se tivessem retirado uma enorme pedra de cima de mim. Será que era isso que significava sentir-se bem?  

Havia sido difícil aceitar a ajuda de Eve. Eu passei tempo demais odiando Livia e uma voz interna me dizia que seria fraqueza deixar-se cuidar pelo alvo do meu ódio. Ela havia me frustrado tantas vezes, inclusive me mantendo viva quando eu queria morrer, mas estava sendo libertador se desapegar desse sentimento. É, acho que posso dizer que ela conseguiu me fazer querer sobreviver ao meu exílio. 

 

Dia 11 

Suspiro frustrada sentada em uma pedra ao lado do riacho. Meu ferimento está bem melhor, mas ainda não cicatrizou totalmente, então seria estúpido molhá-lo ou correr o risco de abri-lo de novo. Me sinto um peso morto por não poder entrar na água e conseguir uma refeição.  

Eve se aproxima casualmente com sua rede de pesca improvisada e sem rodeios tira o sari que usava ficando apenas com sua roupa debaixo. Ela pula na água e nada até uma pequena ilha de rochas no meio da correnteza. Com destreza ela sobe nas rochas equilibrando-se e olhando atenta para a água pronta para lançar a rede. O sol forte bate em seu corpo semi bronzeado fazendo as gotas de água que escorrem cintilarem forte. Observo seu corpo com curiosidade. Ele não é particularmente musculoso como o de muitas amazonas. Existe um aspecto um pouco esguio, porém forte. Forte o suficiente para partir os ossos de um guerreiro sem muita cerimônia. Acredito ser um pouco menos curvilíneo que o meu, mas me pego presa aos seus movimentos cheios de destreza, pulando de rocha em rocha. Ela captura sua presa finalmente. Tira o peixe da rede e joga em minha direção. 

-Seu almoço. – diz sorrindo um pouco convencida, percebendo que me despertou de uma espécie de transe. Ela parecia satisfeita por isso. 

-Como aprendeu a fazer isso? – desconverso me referindo à sua habilidade de pesca, esperando que a casualidade da conversa faça meu rosto voltar à sua cor normal. Sei que Xena era uma exímia pescadora pelo que contam as lendas, mas não acho que Eve tenha tido tempo de aprender com ela. 

-Com os Elaianos. Eles se alimentam principalmente de peixe. É raro caçarem grandes feras. 

-Sente falta deles?  

-Às vezes. – diz ela arremessando outro peixe e então nadando até a terra –  Mas minha missão mudou recentemente. Quando soube do ocorrido no Japão, eu sabia que meu lugar era com Gabrielle e não na India. Pelo menos por enquanto. 

-Então foi lá que você conseguiu o sari. Ele lhe cai muito bem. – Digo me referindo à roupa que ela tinha tirado minutos atrás.  

-Ah sim. Gosto da leveza dele. Mas demora uma eternidade para secar, por isso evito molhar. – Ela balança os cabelos fazendo uma rajada de pingos gelados voarem em mim propositalmente e senta-se ao meu lado, ao sol, esperando os raios quentes secarem seu corpo antes de vestir novamente o traje.  Permaneço em silêncio incerta sobre o que dizer. Percebo que minha respiração está mais pesada…E sei que ela vai perceber isso. Droga. Fico muda por alguns segundos, sem saber o que dizer. Deveria agradecê-la pelo peixe? Ela vinha se mostrando incansável ao prover comida e cuidar de mim. E isso era uma coisa com a qual eu não estava totalmente acostumada para ser honesta. A única pessoa que cuidou de mim foi Marga, de um modo exigente e duro, mas maternal. Depois que ela partiu, o cuidado era somente comunitário, o que se espera de uma tribo, mas nada que faça você se sentir alvo de algum tipo de atenção especial. 

-O que você gosta de fazer, Varia? – ela pergunta interrompendo meus pensamentos e fazendo eu voltar meu olhar para ela. Percebo que ela se deitou na pedra e colocou um braço sobre os olhos, protegendo a visão do sol forte que fazia a água do seu corpo secar aos poucos. Por alguns segundos eu me distraio com uma gota de água que faz o trajeto do seu peito até seu umbigo, hipnotizada com o caminho que aquela gota faz sobre sua pele levemente arrepiada pela temperatura da água. 

-Como assim? – pergunto um pouco confusa. 

-O que você faz por gostar de fazer e não por ser uma obrigação da tribo? O que é diversão para você? 

-Eu… Eu não sei. Acho que nunca pensei nisso. Meu tempo sempre foi ocupado por deveres como uma amazona, ou treinamento de combate. 

-Eu sei como é isso. – Ela disse com um pouco de amargura. 

-Sem muita diversão em Roma, então? 

-Ah não. Roma é tão inclinada para sangue quanto para celebrações. Tudo é motivo para um grande banquete, um grande bacanal ou uma atração na arena. Mas o que um dia eu estupidamente julguei como diversão, era apenas vazio. Eu achava que me divertia, podendo ter todo o dinheiro, a glória, o vinho e qualquer pessoa que eu quisesse em minha cama, mas no final eu era apenas um troféu, fosse de Augustus ou de Ares. 

 -Eu sinto muito. 

-Está tudo bem. Aquela vida não existe mais. 

-E você? O que gosta de fazer? 

-Eu gosto de observar insetos – ela diz, me surpreendendo, quando eu esperava alguma resposta relacionada a costumes Elaianos ou algo grandioso – Eles são tão pequenos, mas seguem seu propósito sem ter noção disso. Acho que seres humanos deveriam fazer o mesmo. Pequenos atos, de bondade, fazem a diferença num cenário maior. 

-Eu gosto de construir coisas. Mas tenho falhado miseravelmente nisso, como pode ver pelas minhas tentativas de fazer armadilhas ou abrigo. 

-Estou perplexa. Eu iria jurar que seu conceito de diversão era dançar nua, coberta de lama, uivando para a Lua. – Ela riu se levantando e se vestindo. Pude perceber em sua cintura a cicatriz que ela havia me mostrado em nossa primeira interação, há mais de um ano. Por um momento me lembrei de como me senti quando troquei aquelas palavras com ela pela primeira vez naquela cabana amazona, o quão atraída me senti e o quão rápido a atração se transformou em ódio, quando eu soube quem ela era. Eu não sentia mais aquele ódio. 

Dou risada. 

-Não, Gabrielle se diverte mais com isso. Você deveria perguntar a ela. E correr em seguida. – Digo um pouco mais descontraída – Mas se você quiser ter certeza de quão divertido é uivar nua para a Lua, coberta de lama, durante a madrugada inteira, eu posso te mostrar isso, se eu um dia voltar para a tribo. 

Eve dá um sorriso matreiro e levanta-se para voltar para nosso acampamento. 

-Você vai voltar, eu sei. 

Dia 12 

Eu acordo com os primeiros sons da manhã. Parece ser muito cedo, pois quando olho para a entrada da caverna, não existe muita luz. Olho para o outro lado do que restou da fogueira e percebo que Eve não está ali. Eu me levanto, pego minha lâmina e meu cajado e dou alguns passos para fora. Sinto meu tornozelo ser golpeado e vou ao chão, caindo atrás de um pouco de vegetação. 

-Silêncio – sibila Eve, após me derrubar propositalmente com uma rasteira. 

-O que está acontecendo? 

Ela não responde. Aponta para a frente me mostrando perto das árvores um pequeno grupo de homens armados. Caçadores. A penumbra das primeiras horas da manhã os torna quase imperceptíveis. 

-Você deveria ter me acordado. – Eu digo entre os dentes. – Conseguimos derrotá-los se lutarmos juntas. 

– Se lutarmos, precisaríamos matar cada um deles, pois não sabemos para quem trabalham, e isso atrairia um grupo maior em nossa direção. Não está nos meus planos. 

-Eu respeito seus preceitos, mas eu não tenho problema nenhum em acabar com eles. Posso dar conta dessa parte. 

-E então caso tenham um líder, ele organizará uma investida contra a tribo das amazonas selvagens que “friamente assassinaram seus homens”. Possivelmente fazendo mais guerreiros se juntarem a sua causa. Não é esse tipo de publicidade que você precisa agora. 

-O que você sugere então? 

-Esperar que vão embora. 

-Eu as vi pescando no riacho ontem. Não devem ter ido muito longe, devem estar na caverna – disse uma voz rouca. Era o homem que havia me atacado dias antes. Ele tinha uma tala segurando o braço. 

-Entrar numa caverna escura sem a certeza do que vamos encontrar lá?  Não está nos meus planos brigar com um urso hoje. Viemos atrás de amazonas. – respondeu outro. 

-Se a gente capturar uma delas, podemos chantagear a Rainha para que se renda. Tornaria tudo mais fácil e teríamos menos baixas. 

-Não acho que seja tão fácil, veja o que ela fez com o seu braço usando só as próprias mãos – falou um terceiro. 

-Raskar deu ordem de fazermos a patrulha e voltarmos. Vamos evitar conflito por hora. Vamos embora. 

Eu solto o ar que estava segurando por alguns minutos quando eles saem. Nos levantamos e voltamos para o interior da caverna. Está um pouco escuro, mas os raios de sol que começam a despontar no céu já lançam um pouco de claridade. 

-Gabrielle precisa saber disso. – Digo preocupada. 

-Sim. Precisamos voltar para o acampamento amazona. 

-Eu não posso voltar. Ainda faltam duas luas para o meu exílio terminar, Eve. Não vou desobedecer às ordens de Gabrielle. Você precisa ir sozinha e avisá-las. 

-De jeito nenhum. Eu não vou deixar você aqui sozinha.  

-Eu agradeço sua preocupação, mas já estou em condições melhores e posso me cuidar. Volte para o acampamento! – eu digo um pouco mais ríspida do que o pretendido. 

-Eu não sigo ordens, Varia.  – Eve baixa o tom de sua voz para um sussurro quase rouco me lançando um olhar desafiador. – Ou você volta comigo, ou não voltamos. 

Solto um suspiro frustrada. 

-Escute aqui, eu sou muito grata por tudo que fez, mas eu não preciso de uma babá cuidando de mim. – Minha voz sai alta e enérgica – Tem coisas maiores em jogo agora. Você já faz reparação o suficiente, me manter viva em nome de algum bem supremo não precisa mais ser uma das suas preocupações. 

Eve solta o ar com um olhar incrédulo, como se eu tivesse afirmado algum tipo de absurdo. Fico confusa por um minuto. 

-Inacreditável – resmunga, revirando os olhos – Como alguém que cresceu estudando estratégia consegue ser tão alheia e não enxergar um palmo à sua frente? 

– Pelos Deuses, do que você está falando? – respondo irritada. 

-Varia, você realmente crê que a razão de eu estar aqui é APENAS por reparação? – a voz dela se ergue pela primeira vez. 

-Não é essa a missão da sua vida agora? Tentar equilibrar as coisas? – pergunto com um pouco de sarcasmo. Estou confusa e irritada. – Por qual outra razão você estaria embrenhada numa floresta cheia de perigos tentando manter uma amazona incompetente como eu viva há duas luas? 

-POR CAUSA DO QUE EU SINTO POR VOCÊ – A voz dela sai como um rugido, e por alguns milésimos de segundo um frio me percorre a espinha. Esse rugido me lembrou Livia. A Livia verdadeira. Mas a percepção das palavras que saíram da sua boca fez essa sensação ruim se dissipar e dar mais espaço para confusão. 

-O qu… – antes que eu pudesse emitir outro som, Eve me segura pela nuca com um movimento quase violento e pressiona seus lábios contra os meus com urgência. Eu travo por alguns segundos tentando fazer sentido do que está acontecendo, mas meu corpo responde por mim, segurando-a pela cintura e correspondendo ao beijo. A consciência da minha falta de experiência com esse tipo de contato físico me assombra por um momento, mas decido que não vou me preocupar com isso. Me entrego, saboreando os lábios dela como uma fruta cheia de néctar, sentindo sua maciez e o conforto que eles me causam enquanto ela explora os meus.   

Passam-se alguns segundos até ela pare, afundando seu rosto em meu pescoço, fazendo eu sentir um roçar muito leve dos seus lábios e a sua respiração pesada fazendo minha pele arrepiar. É como se uma corrente elétrica percorresse meu corpo dos pés a cabeça. Consigo sentir que sua pele e seus cabelos cheiram a sândalo. Ela mantém a testa encostada na minha enquanto nossos olhos estão fechados. Percebo que estou ofegante, mas ela também está. 

-O que você sente por mim? 

– Nesse momento, vontade de te dar um soco por você ainda ter que me perguntar isso.  Talvez eu considere isso se você tiver a audácia de negar que também sentiu algo. 

-Desde aquele dia na cabana amazona. – Eu coro um pouco mais do que já havia corado com aquele beijo. -Eve… Eu… Não posso voltar. Eu preciso ganhar o respeito de Gabrielle novamente… Por favor. Você precisa fazer isso, pela Nação Amazona. Eu prometo que vou ficar bem. 

-E como eu me perdoo se algo acontecer com você? 

-Você usa seu direito de casta e lidera toda a nação para cima deles – eu digo, rindo para tentar fazê-la se sentir melhor, e acabo recebendo um soquinho no braço. – Eu vou ficar bem. Em menos de um dia você consegue chegar no acampamento Amazona e depois pode voltar. Estou mais forte, então posso subir nas árvores e me manter acima do solo. Será mais difícil me emboscar assim. 

-Me prometa que não fará nada perigoso. Eu vou deixar minha faca com você. Use-a se for preciso. 

-Você não pode ir sem proteção. 

-Eu posso. Acredite. Eu não sou boazinha, como você pode pensar. 

Eu aceito, sabendo que não é uma discussão que eu irei ganhar. Ela vira-se iniciando sua caminhada. 

-Ei Eve. Volte inteira, por favor. Temos muito a conversar. 

Ela apenas sorri e me deixa. Eu subo na árvore mais próxima e fico satisfeita em ver que finalmente a floresta densa será uma vantagem. Com sua extensa rede de galhos poderei me movimentar de maneira completamente furtiva.