Notas de advertência
Mençãp à violência sexual.
Parte XII – FINAL
por Fator X - LegadoParte 12 – final
Apesar da destruição da guerra, a Casa Vermelha era uma das poucas privilegiadas que se conservava em pé, sem nenhum sinal dos ataques dos ianques. A Casa Vermelha, de Anette Valois, era na verdade um pédio de dois andares, com uma larga porta principal, antigamente guarnecida por um forte porteiro, mas agora simplesmente fechada. Na fachada, uma placa anunciava, eufemisticamente: Casa de Show.
Vivien respirou fundo, como se preparando para o passo decisivo que iria dar em sua vida, e desceu da charrete, amarrando as rédeas na madeira diante da casa. Com passos decisivos, subiu os três degraus de madeira e pousou a mão na maçaneta, girando-a. A porta abriu e Vivien a empurrou, abrindo-a.
Nunca havia estado ali, mas seu irmão, sim. Com alívio, viu que o grande salão pintado de vermelho estava vazio, sem ninguém ali. Podia olhar em volta para se familiarizar com o lugar.
No fundo do salão havia um palco, com cortinas em mau estado, de veludo vermelho. Em um canto, uma pianola. Uma pequena pista no meio do salão, rodeada de mesas, e no canto esquerdo um balcão para servir bebidas. Mas as prateleiras de bebidas estavam vazias, demonstrando que os ianques haviam estado no local e haviam levado todas as garrafas.
Vivien suspirou, com as mãos nas cadeiras. Onde estavam as mulheres da casa? Onde estava Audrey?
Um súbito choro de criança chegou aos seus ouvidos.Vivien ergueu o rosto, alerta. O choro vinha lá do pavimento superior. Ela viu a escada que levava ao andar superior e se dirigiu para ela, subindo cautelosamente, procurando não fazer nenhum ruído. Chegou a um corredor com várias portas e no final dele, uma porta entreaberta com uma placa: Madame Valois. O choro da criança vinha de lá.
Vivien avançou e parou diante da porta entreaberta, olhando pela abertura, cautelosamente.
Audrey Lancaster tentava alimentar seu filho deitado na cama com uma colher e um prato nas mãos, mas ele chorava e recuava o rosto, dizendo em tom choroso:
-Não quero! Não gosto de mingal!
Uma mulher ao lado de Audrey olhava a cena com ar desolado, com a mão apoiada no rosto. Ela era uma mulher de seus trinta anos, alta, de bastos cabelos negros anelados, um rosto atraente, de traços aristocráticos. Os olhos negros contrastavam com a pele alva e imaculada.Trajava uma blusa branca de algodão com as mangas arregaçadas até os cotovelos e uma saia cinza de sarja.
Audrey olhou para o menino e falou com preocupação:
-Mas é isso que tem para comer, Justin! Por Deus, coma ! Você precisa ter forças para vencer a gripe!
-Audrey! – Disse a mulher, com voz calma – Não insista. Justin não gosta de mingal. Vou comprar um frango e batatas com aquele dinheiro que ainda temos, para fazer uma sopa para ele.
Audrey olhou para a mulher com preocupação.
-Anette, não podemos gastar aquele dinheiro! Temos de juntar para ir embora daqui!
Vivien olhou para a mulher com surpresa. Então, aquela era Anette Valois! A dona da Casa Vermelha! Mas… não parecia ser uma cafetina. Pelo menos, como imaginava as cafetinas, com decotes indecentes, excesso de pintura e gestos vulgares. Aquela mulher parecia tão… decente.
-Mas querida, Justin precisa se alimentar bem! Ele está em fase de crescimento e está doente!
Audrey pousou o prato sobre uma mesinha com a colher e suspirou desanimada. O garoto se voltou de costas para a mãe e fechou os olhos. Parecia febril e fraco.
Anette Valois se aproximou de Audrey e a abraçou por trás. Audrey pousou a cabeça no ombro de Anette, que beijou seus cabelos carinhosamente e suspirou.
-Ah, meu amor… seja paciente com Justin… ele é uma criança tão adorável!
-Eu o amo também, querida, mas Justin tem que entender que estamos sem dinheiro! Tem que comer o que tiver! Ah, como sonho com o dia de sair daqui! Ninguém mais me olhar com olhar acusador, ser xingada de prostituta pelas puritanas da cidade, meu filho ser xingado de bastardo pelas outras crianças!
-Nós vamos conseguir, meu amor… tenha paciência. Só estou esperando essa casa ser vendida, para pegar o dinheiro para começarmos nova vida.Mas o sr. Bishop disse que está difícil a venda. Todo mundo está sem dinheiro. Temos que esperar as coisas melhorarem.
Vivien ouvia e via tudo petrificada pela surpresa. Audrey e Anette Valois eram amantes!
Justamente nessa hora Audrey olhou para a porta e se afastou de Anette, perguntando com voz amedrontada:
-Quem está aí?
Vendo-se descoberta, Vivien acabou de abrir a porta, enbaraçada por estar espionando.
-Sou eu. Ouvi vozes… aqui em cima… – Disse, hesitante.
O rosto de Audrey se encheu de cólera, ao vê-la.
-Você! Ouvindo atrás das portas, como um espião! Muito próprio de você, seu cafajeste!
Anette fitou Vivien com o cenho franzido e perguntou à Audrey, sem deixar de fitar aquele homem alto e bem vestido, que parecia envergonhado:
-Quem é esse homem, Audrey?Ele não me é estranho…acho que já o conheço, mas não me lembro o nome dele…
-Esse homem é Vicent Talbot, o causador de toda minha infelicidade, Anette! – Disse Audrey, com a voz carregada de ódio.
Anette ficou vermelha de raiva. Os olhos se estreitaram.
-Vicent Talbot?! O maldito estuprador, que a tomou contra sua vontade?
-Ele mesmo, Anette! Esse cafageste ainda tem a coragem de vir aqui, atrás de mim!
-Maldito cafajeste! – Gritou Anette.
No momento seguinte, uma furiosa Anette se lançou contra Vivien, que, desprevinida, recebeu um chute entre as pernas, que a lançou no chão. Anette Valois era também uma mulher alta, e forte. Com agilidade deu outro chute nas costelas de Vivien, que gritou de dor e se encolheu. Anette veio dar outro chute, mas Vivien conseguiu segurar o tornozelo dela e o puxou com força. Anette se desequilibrou e caiu no chão de costas. Vivien não a deixou se recuperar. Se levantou e pulou sobre a mulher, montando-a, pegando-a pelos cabelos e a esbofeteando, fitando-a com raiva.
-Sua cafetina, não é melhor que eu! Você vai engolir esses insultos…
Algo pesado se abateu contra sua cabeça e Vivien caiu para a frente, desmaiada.
Anette a empurrou para o lado e se sentou, fitando Audrey com os olhos arregalados.
-O que fez, Audrey? Eu podia ter manejado sem sua ajuda!
Audrey mostrou para ela a arma que guardavam à mão para se protejerem.
-Dei uma coronhada na cabeça dele. Logo se recobrará.
Anette olhou para Vivien, caída meia de lado, inconsciente.
-Estranho…
-Estranho, o quê? – Perguntou Audrey.
Anette passou a mão pelo rosto de Vivien, o cenho franzido.
-Tem certeza que é mesmo Vicent Talbot?
-Claro! Por que pergunta?
-Sabe que conheço bem os homens, Audrey… nunca gostei de homem, mas fui obrigada a deitar com muitos, para sobreviver, até que me tornei dona dessa casa.
-Sei disso. E daí? – Disse Audrey, erguendo as sobrancelhas.
-Esse homem… Vicent Talbot… não tem o cheiro característico dos homens. E nem a barba. O rosto dele é liso como de uma mulher! E quando eu o chutei entre as pernas… um homem sempre fica sem ação mais tempo que ele ficou.
-O que quer dizer com tudo isso, Anette?
-Que acho que esse homem não é um homem de verdade, entende?
Audrey colocou as mãos na cintura, um olhar incrédulo no rosto.
-Está insinuando que ele é uma mulher?!
-Bem… sim! Ou não me chamo Anette Valois!
-Isso é loucura! – Riu Audrey – Esse é o homem que me estuprou!
-Bem, vamos tirar a prova… – disse Anette, se debruçando sobre Vivien.
-Como?
Anette fitou Audrey sorrindo, desabotoando a calça de Vivien.
-Vamos ver se ele tem os atributos de um homem.
-Anette! Vai despir esse homem?!
Anettte não respondeu. Com a prática de anos, abriu a braguilha da calça e puxou para baixo a ceroula de malha branca. Primeiro surgiu um artefato que Anette observou ser uma meia recheada com panos, imitando o formato de um pênis, presa à um cinto fino de veludo azul.
E sob esse artefato, um púbis sem um pênis abaixo, mas sim dois grandes lábios, inegavelmente femininos, com cabelos sedosos e negros.
Anette indicou o sexo com um gesto, sorrindo para a assombrada Audrey.
-Eu não disse? É uma mulher ! Bem, Audrey… a não ser que ele tenha sofrido uma inexplicável metamorfose, seu odiado Vicent não é essa mulher!
A verdade penetrou na cabeça de Audrey como uma luz acendendo na escuridão.
-Oh, meu Deus! Essa é Vivien! – Disse, agitada.
Anette a fitou.
-Vivien? A irmã de Vicent Talbot?
-Sim! É ela! Tem de ser ela! Vivien e Vicent eram gêmeos!Oh, meu Deus!
-E porque ela está vestida como homem? Por que se passa pelo irmão?
-Não sei…Ela deve ter um bom motivo, Anette! Deus, ela está muito machucada? Será que eu a feri mortalmente? – Perguntou Audrey, com os olhos cheios de medo.
-Calma! Ela está respirando, não está sangrando… vamos colocar ela na cama. Traga uma toalha com água fria, para molhar o rosto dela.
Com o coração aos pulos, Audrey ajudou Anette a colocar Vivien na cama e foi apanhar uma toalha. Anette levou o sonolento Justim para o quarto dele e o colocou na cama. Ele adormeceu logo, devido à febre.
Vivien abriu os olhos, sentindo sua cabeça latejando. Gemeu, tentando se sentar, quando viu o rosto de Audrey debruçado para ela com olhar preocupado, mas ela a pegou pelos ombros e a forçou a deitar novamente, falando com voz calma:
-Fique deitada. Você deve estar tonta da pancada, Vivien.
Vivien?! Audrey estava se referindo à ela como Vivien?!
Audrey percebeu o olhar cheio de medo de Vivien e sorriu suavemente.
-Não tenha medo. Eu sei que você é Vivien, mas prometo que não vou falar para ninguém.
Vivien empalideceu, chocada por ver descoberta sua verdadeira identidade. Logo por quem, por Audrey, que nutria um justificado ódio por Vicent! Esse ódio se estenderia à ela?
Seu olhar caiu sobre Anette Valois, atrás de Audrey. Ela a fitava de braços cruzados, com um olhar nada amigável.
-Como… como você descobriu quem eu sou, na verdade? – Perguntou Vivien, com voz hesitante.
Um leve sorriso passou pelos lábios de Audrey.
-Bem, não fui eu quem descobriu isso. Foi Anette. Ela desconfiou que você não era um homem e fez uma verificação… inegável.
O olhar de Vivien baixou para seu próprio corpo e viu a calça desabotoada. Ela enrubesceu intensamente, advinhando como Anette havia confirmado suas suspeitas.
-Oh! Maldição! – Gemeu, enterrando o rosto nas mãos.
Audrey a fitou com olhar intrigado.
-Por que assumiu a personalidade de Vicent, Vivien? O que houve com ele? E porque veio procurar-me?
Vivien retirou as mãos do rosto. Tinha que encarar a realidade. Agora estava em um beco sem saída, a não ser que fosse totalmente honesta com Audrey. Será que ela entenderia?
Vivien baixou o olhar, envergonhada e com medo da reação de Audrey à verdade. E Anette Valois a fitando cheia de suspeita não melhorava nada.
Audrey percebeu a hesitação de Vivien e seu receio. Voltou-se para Anette e falou com suavidade, pousando a mão no braço da mulher:
-Anette, por favor, nos deixe a sós. Vivien e eu temos coisas a esclarecer uma à outra .
Anette hesitou, fitando Audrey com preocupação.
-Audrey, acha prudente isso? E o que tem para conversar com ela, que não posso saber?
Audrey pousou a mão no braço de Anette, falando suavemente:
-São coisas de família, Anette. Lembre-se que fui noiva do irmão dela. Tenho uns esclarecimentos a fazer. Você não confia em mim?
-Sim, claro, meu anjo…mas… não confio nela!
Audrey sorriu, dirigindo Anette para a porta do quarto.
-Não há nada com que se preocupar. Vivien não tem culpa do procedimento do irmão. Ela sempre me pareceu uma boa pessoa. Deixe-nos a sós, minha querida. Depois a chamarei.
-Está bem, Audrey. Vou deixar você à sós com ela porque confio em você. Mas não confio nessa maluca travestida de homem. Se ela fizer algo inadequado, grite meu nome.
E com um último olhar de advertência para Vivien, ela saiu e Audrey fechou a porta.
Audrey se voltou para Vivien, que havia se sentado na cama e agora abotoava a braguilha da calça. Ela se aproximou e sentou na cadeira ao lado da cama, fitando Vivien com preocupação.
-Você está bem?
Vivien acabou sua tarefa e a fitou no rosto, pela primeira vez, sem receio.
-Fora uma dor latejante na cabeça e nas costelas, estou bem, sim…
Audrey enrubesceu, embaraçada.
-Desculpe-me… fui eu quem bati com a coronha de uma arma na sua cabeça. Eu pensei que você era Vicent, e fiquei com medo de Anette não conseguir controlá-lo.
-Sei… eu já havia imaginado que Vicent não seria bem-vindo, depois do nosso encontro na cidade. Mas eu preciso ter uma séria conversa com você, Audrey.
-Por que? Seu irmão a mandou aqui? Por que está usando a identidade dele? Se Vicent a enviou aqui para fazer alguma proposta, eu não quero nada que venha dele! Eu o odeio! – Disse Audrey, o olhar se tornando duro e encolerizado.
Vivien respirou fundo. Chegara a hora de abrir-se inteiramente para Audrey. A verdade era imperativa, agora. Fosse qual fosse a reação de Audrey, o pior ela já sabia, sua verdadeira identidade. Encarou-a e falou com sinceridade:
-Não vim aqui mandada por Vicent, Audrey. Isso não seria possível, porque ele está morto.
Audrey a fitou arregalando os olhos. Mas foi a única reação. Falou sem emoção:
-Sinto muito, por você.
-Eu sei que você o odiava. E sei o motivo. Ele me contou, em seu leito de morte. Mas ele estava arrependido, Audrey.
Audrey a fitou nos olhos. O olhar continuava duro, cheio de rancor.
-Seu irmão se arrependeu? O que quer que eu faça? Que mande rezar uma missa por sua alma? Ele se arrependeu tarde demais!
Vivien a fitou chocada com as palavras cheias de sarcasmo de Audrey.
-Audrey, sei que meu irmão errou, mas a intenção dele foi fazer você esperar..
-Não se atreva, Vivien Talbot! Não se atreva a vir defender o que seu irmão fez comigo! – Gritou Audrey, apontando o dedo para ela, os olhos se enchendo de lágrimas inesperadas.
Vivien ergueu as mãos, em sinal de paz.
-Ok, está bem, Audrey… eu entendo… eu posso avaliar o que sente. Não estou querendo defender meu irmão, eu não …
-Não, você não pode avaliar o que sinto, Vivien Talbot! Você não sabe o que é ser uma jovem cheia de sonhos, achando que um dia encontraria o amor, e ser obrigada a abdicar de seus sonhos porque o pai ambicioso concordou em entregar sua filha única como futura esposa de um rapaz presunçoso, que não aceitava o fato de uma moça não querer nada com ele! Eu disse à seu irmão inúmeras vezes que eu não queria casar com ele, pois não o amava, mas ele teimosamente dizia que eu acabaria amando-o! Porque ele era presunçoso demais para aceitar que alguém não o quisesse! – Completou Audrey, com voz cheia de revolta.
-Audrey, meu irmão não era presunçoso, ele apenas estava cego pela paixão que sentia por você! Eu mesma tentei fazê-lo ver a realidade, que você não o amava, mas ele não queria ver a realidade!
-Seja o que for que ele sentia, não justifica o que fez comigo! Ele me estuprou, Vivien! Ele foi lá em casa sabendo que meu pai estava ausente, inventou que havia esquecido seu casaco na biblioteca, e quando fui buscar, ele foi junto e trancou a porta. E me atacou, dizendo que eu tinha que ser dele! E com isso, ele destruiu minha vida! – Disse Audrey, com lágrimas deslizando pelo rosto.
Vivien a olhou comovida e pesarosa.
-Oh, Audrey, eu sinto tanto! Vicent a prejudicou, eu sei. Fui à sua casa e seu pai me recebeu com xingamentos, pensando que eu era Vicent. Ele disse que a expulsou de casa porque você teve um filho. Eu fiquei revoltada por saber que ele a expulsou de casa e não liga para o neto.
-Você esteve na casa de meu pai?! O que foi fazer lá, Vivien?
-Audrey… é uma longa estória.
-Tenho todo o tempo do mundo para ouvir. Fale, Vivien.
Vivien falou sobre a velha prática de assumir a identidade de Vicent para poder fazer coisas proibidas à ela, por ser mulher. Falou da descoberta de sua sexualidade com as meninas do colégio. E do dia que voltou para casa e adotou um novo modo de vestir-se, e cortou os longos cabelos à altura dos ombros, provocando a ira do seu pai, que a proibiu de ir à festa de noivado de Vicent.
-Mas eu fui à festa escondida dele. Estava curiosa para ver a mulher por quem meu irmão havia se apaixonado – Disse Vivien, quase num sussurro.
Audrey, que até então a ouvia em completo silêncio, a encarou, falando com voz emocionada:
-Eu me lembro de você, olhando a festa pela janela. Eu percebi que era a irmã gêmea de Vicent e fui falar com você, mas você pareceu com medo de algo e foi embora. Eu senti algo tão estranho, como se já a conhecesse… queria muito ser sua amiga, conhecê-la melhor… mas a guerra veio e você se foi.
Vivien a fitou. Estava cheia de mentiras, de simulações. Resolveu dizer toda a verdade. Falar tudo para Audrey era uma necessidade, uma espécie de catarse.
-Eu fugi porque tive medo do que senti, Audrey – Declarou, baixinho – Eu a vi e fiquei encantada… eu me apaixonei por você. Eu me sentia mal, porque você era a noiva de meu irmão. E então, meu pai morreu, depois veio a guerra. Vicent foi para a guerra lutar e eu fui para New York gerir os negócios. E tive a idéia de adotar a identidade de meu irmão, porque ninguém respeitaria uma mulher dirigindo os negócios de meu pai.
Audrey a fitou surpresa.
-Você se apaixonou por mim?!
Vivien baixou os olhos.
-Sim… eu sofria com isso, Audrey… só com o passar do tempo eu consegui esquecê-la.Então, meu irmão apareceu em New York. Desertou da guerra, fugindo da batalha de Guettysburg. Ele estava gravemente enfermo e morreu no dia seguinte, depois de me fazer prometer fazer uma coisa em nome dele. Meu irmão me contou o que fez à você, Audrey. E estava arrependido. Ele me fez prometer que me casaria com você, usando a identidade dele. Seria uma forma de resgatar a dívida moral que tinha com você e fazê-la sua herdeira. E vim aqui para cumprir minha palavra, Audrey.
Audrey a fitou erguendo as sobrancelhas.
-Como sempre, ele planejou meu futuro sem consultar-me. Bem próprio de Vicent. Ainda não percebeu que seu irmão era um egoísta e manipulador, que queria manipular o destino de quem o cercasse? Pois eu não vou mais fazer nada além do que achar melhor para mim e meu filho!
-Audrey… você tem um filho de Vicent. Não seria bom ele ter o nome do pai?
Audrey a encarou, suspirando. Pareceu pensativa, e depois a encarou com decisão no olhar.
-Você não conhece nada do que passei nessa guerra, Vivien. O que acha que passei nesses quatro anos e meio? Que fiquei numa redoma de proteção, enquanto esperava seu irmão vir cumprir sua promessa de casamento?
-Bem… eu sei que não deve ter sido fácil…
Audrey sorriu com desdém, entre lágrimas. Enxugou-as quase com raiva e encarou Vivien.
-Sabe! Você não sabe nada, Vivien Talbot! Acaso imagina o que poderia acontecer com uma garota de dezessete anos no meio de uma guerra, tendo como protetor apenas um pai bêbado?
Vivien baixou a cabeça, embaraçada, incapaz de encarar Audrey. Sentia vergonha do ato do irmão, como se fosse ela quem o tivesse praticado.
-Tem razão, não sei de nada… – Sussurrou.
Audrey respirou fundo, tentando se acalmar.Falou com voz contida:
-Quando você e Vicent foram embora daqui, me senti desgraçada, Vivien. Eu já sabia que havia perdido minha honra e corria o risco de engravidar. E eu… também sofri por sua ausência, Vivien… eu me sentia estranhamente atraída por você… e isso me confundia e torturava.
Vivien a fitou surpresa e emocionada, mas Audrey prosseguiu, de cabeça baixa, fitando as mãos no regaço:
-Mas não demorou Charleston sentir os efeitos da guerra. A cidade foi atacada pelos ianques e começou as nossas dificuldades. Os empregados de nossa casa se foram e fiquei só com meu pai e a cozinheira, Maddy. Com meu pai sempre bêbado, xingando a perda dos escravos, não foi difícil três meses depois, os ianques invadirem nossa casa e levarem tudo que podiam, além de Maddy ser estuprada e morta pelos homens. Eu tive a sorte de ser alvo do interesse do capitão do batalhão, que impediu que os homens também me violentassem, reservando-me para ele. Então, nos dois dias que ficaram aqui, ele me obrigou a dormir com ele, submetendo-me aos seus desejos.
Vivien a fitou profundamente chocada com a revelação.
-Oh, Audrey! Nunca imaginei que você passasse por algo assim! Meu Deus! Deve ter sido horrível! E esse homem não respeitou nem o fato de você estar grávida?
Audrey ergueu o rosto e a encarou com tristeza.
-Eu não estava grávida.
-Como assim?!
-Vicent não me engravidou. Vinte dias depois que vocês se foram, eu tive o meu período.
Vivien a fitou surpresa.
-Então… o seu filho não é filho de Vicent?!
-Exato. Vicent desvirginou-me, mas não me engravidou. Quem o fez foi o capitão ianque.
-Oh!… – Disse Vivien, sem ter o que dizer.
Audrey sorriu com amargura.
-Fique tranqüila, Vivien. Seu irmão não é pai de meu filho.
-Audrey, essa notícia não me faz achar que a dívida moral dele com você terminou. Meu Deus, Audrey! Como deve ter sofrido!
Audrey suspirou, fitando a janela do quarto.
-Sim, sofri muito, Vivien. Mas não mais por culpa do seu irmão, e sim pelo meu pai, que não me deu um pingo de apoio. Quando o capitão se foi com seu batalhão, afugentado pelas nossas tropas confederadas, meu pai me expulsou de casa, dizendo que não iria sustentar uma filha que havia deitado com um ianque. Que eu havia desonrado seu nome.
-Que miserável! Seu pai é pior que um ianque! – Disse Vivien, revoltada.
Audrey a encarou com tranquilidade.Seus olhos verdes brilharam.
-Deus escreve certo por linhas tortas, Vivien. Porque essa expulsão me fez vir para a Casa Vermelha, pedir ajuda à Anette Valois. Ninguém na cidade quis me ajudar, porque eu havia deitado com um ianque. E eu vim no único lugar que não teria esse julgamento injusto. Anette ainda estava com a casa em atividade, e recebeu-me com um carinho que nunca encontrei em ninguém.
– Recebeu-a com carinho, porque ela a levou para sua cama? – Vivien perguntou, com uma ponta de sarcasmo.
Audrey a encarou com indignação.
-Está completamente enganada sobre Anette Valois, Vivien! Ela é muito mais humana e mais digna que essas mulheres puritanas da cidade, com corações duros e línguas afiadas para condenar os outros! Ela foi piedosa com meu sofrimento, colocou-me para trabalhar na cozinha, para evitar eu ter contato com os clientes. E quando descobri que estava grávida, ela deu-me inteiro apoio, tratando-me com carinho, e não como uma pecadora!
-Desculpe-me…acho que a julguei mal.
O olhar de Audrey se suavizou.
-Quando eu tive meu filho, desejei sair daqui da cidade, recomeçar vida nova. Foi então que Anette se declarou para mim, dizendo que me amava, pedindo que eu ficasse até a guerra acabar, que então ela iria embora comigo. Eu na verdade também estava apaixonada por ela, eu me apaixonei aos poucos, descobrindo como ela é maravilhosa. E agora, estamos juntando dinheiro para ir embora daqui.
Vivien suspirou, fitando Audrey.
-Isso quer dizer que não aceita casar-se comigo, para seu filho ter o nome de um pai, Audrey?
-Não, Vivien. Não concordo com uma farsa por causa de um nome. Nem se ele fosse filho de Vicent. Minha consciência não me daria paz. Meu filho iria fazer parte de uma mentira. E você não tem nada com os atos de seu irmão. Não deixe que o peso dessa promessa continue a atrapalhar sua vida. Porque eu sei que na verdade você deve amar aquela moça que estava com você aquele dia.
Vivien sorriu com tristeza.
-Seu nome é Deidre. Mas ela foi embora quando eu falei sobre a promessa que fiz ao meu irmão. Ela deixou uma carta, dizendo que me deixava livre para decidir minha vida, porque havia entre nós a promessa e a vida de uma criança.
-Ela agiu com muita dignidade, Vivien. Em outra circunstância, talvez até pudéssemos ser amigas.
-Audrey, agora que sei que ama Anette Valois e o que pensa de um casamento entre nós, quero ao menos ajudar vocês a realizar o sonho de uma nova vida. Eu posso comprar a Casa Vermelha e dar a vocês um bom dinheiro para iniciar a vida em qualquer lugar que deseje. Mas eu tenho outra proposta a fazer à Anette.
Audrey a fitou surpresa.
-Que proposta?
-Chame-a . Assim, explico tudo uma só vez.
Audrey se ergueu e colocou a mão no ombro de Vivien, fitando-a nos olhos.
-Vivien… eu fui apaixonada por você. Mas a guerra nos separou, trilhamos outros caminhos. E hoje, eu amo Anette. E aposto que você ama Deidre. Deve estar sentindo como se tivesse tirado um peso dos ombros, ficando livre dessa promessa.
Vivien pegou a mão de Audrey e a beijou reverentemente.
-Você é uma mulher forte, sensata e lutadora, Audrey…vou ficar orgulhosa se aceitar ser minha amiga.Eu quero ajudar vocês.
Audrey sorriu, os olhos brilhando.
-E eu aceito sua amizade, Vivien. Com muito orgulho.
Vivien olhou para o seu relógio de bolso, impaciente. Faltava mais de meia hora para o trem chegar à New York. Estava ansiosa para encontrar com Deidre. Tinha certeza que ela havia voltado a se instalar na casa que alugara perto da sua antiga casa em New York.
Estava ansiosa e feliz. Finalmente, podia ser feliz com a mulher que amava sem o medo de ter que cumprir uma promessa e perder o amor de Deidre. Tudo havia se resolvido maravilhosamente com Audrey.
Audrey e Anette haviam aceitado a sua proposta: Ela havia comprado a Casa Vermelha por um preço bem maior que o valor real, para ajudar os duas mulheres, e com o dinheiro elas haviam comprado uma confortável casa na cidade vizinha. Vivien havia também comprado para elas um prédio em um dos melhores pontos da cidade, e estava reformando-o todo, para ser um dos melhores hotéis da cidade. Era uma forma de dar à elas um meio de se sustentarem, viverem com dignidade.
Livre de sua promessa, Vivien estava ansiosa para ver Deidre, dizer que nada mais as separaria e pedir perdão pelo sofrimento que causara.
O trem chegou pontualmente em New York. Vivien se hospedou em um hotel e tomou um banho, trocando as roupas empoeiradas e suadas da viagem, e saiu logo depois. Entardecia e as ruas estavam cheias de gente, aproveitando a brisa fresca dessa hora crepuscular.
Vivien, em um elegante terno de casemira cinza, foi à procura de Deidre.
Deidre Mackena contemplou com tristeza mais um final de tarde, através da vidraça de sua janela. O sol havia se posto no horizonte e agora vinha se aproximando a noite. Ela suspirou e saiu da janela, se sentando na cadeira diante da escrivaninha, fitando a carta inacabada. Em um gesto de desespero, a pegou e rasgou em vários pedaços, como havia feito com tantas outras naqueles meses que estava longe de Vivien. Ela cruzou os braços e pousou a cabeça neles, sentindo seu peito se apertar com a dor da saudade. Lágrimas ardentes vieram aos seus olhos, que estavam com círculos enegrecidos em volta, pelas noites mal dormidas.
-Oh, Vivien, Vivien, meu amor… volte para mim, querida… – Sussurrou.
Onde ela estaria, o que estaria fazendo naquele exato momento? Estaria nos braços de Audrey Lancaster? Estaria se preparando para o jantar com Audrey e o sobrinho, filho de Vicent? Esses pensamentos a consumiam.
Uma de suas amigas, Evelyn Connoly, a havia visitado e se mostrara assustada com sua aparência, fizera mil perguntas e Deidre havia se esquivado das respostas, só dizendo que estava sofrendo por sua separação de Vicent, sem no entanto dizer o motivo dessa separação. Evelyn, que era doutora, havia lhe receitado um fortificante e restaurador de apetite, achando-a muito pálida e magra. Mas não comprara a receita. O seu mal não seria curado com remédios, mas somente com a presença de Vivien.
Deidre, quando havia voltado para New York, havia se instalado novamente na casa que residia quando conhecera Vivien, até resolver sua vida. Tinha esperança que Vivien logo a procuraria, assim que resolvesse o problema de sua promessa. Talvez casasse com Audrey apenas para dar um nome à ela e à criança, cumprindo sua promessa, e ajudando a moça e o sobrinho financeiramente, para terem uma vida digna, e depois voltasse para ela. Mas essa esperança se esvaía à cada dia que passava, e agora, era como uma vela com tênue chama, que logo se apagaria de vez.
Bateram na porta. Deidre falou com voz sem vida:
-Entre.
A sua empregada entrou, fitando-a com certa preocupação.
-Já estou indo, senhora Mackena. O jantar já está pronto, em cima do fogão. Precisa de mais alguma coisa?
-Não, Betty, pode ir. Até amanhã – Respondeu, forçando um sorriso.
A mulher a fitou parecendo querer falar algo, mas mudou de idéia e respondeu:
-Boa noite, senhora Mackena.
E ela se foi, fechando a porta. Deidre suspirou. A mulher já havia se acostumado com seu modo e não insistia mais em lhe servir a comida. Ela trabalhava ali o dia inteiro, mas à noite ia para sua própria casa, cuidar do marido. Assim Deidre achava melhor. Preferia ficar sozinha, sem ninguém vendo seu sofrimento.
Foi para a sala de estar pegar um livro para tentar se distrair, quando tornaram a bater na porta. Foi atender e se viu diante de sua amiga, Evelyn Connoly. Ela sorriu alegremente, passando por ela e entrando.
-Deidre Mackena, vá se aprontar, que vamos sair para jantar fora!
Deidre a fitou desanimada. Evelyn era uma amiga sua de infância. Ela a havia apoiado sempre, e ao longo de seu casamento infeliz, também sempre estivera do seu lado dando apoio. Atualmente, Evelyn tentava animá-la para sair de sua depressão, mas Deidre já recusara vários convites para sair.
-Evelyn… já disse que não ando com espírito para sair.
-Ah, mas hoje você vai!Eu já estou cansada de saber que você está infeliz, que terminou com seu amado Vicent! Pena que eu não cheguei a conhecê-lo, por estar terminando meus estudos longe daqui! Porque eu iria ter uma séria conversa com ele! Mas esqueça ele por uma noite, eu comprei convites para uma peça estrelada por Sarah Bernhardt, uma nova atriz da Comedie Française, que está fazendo muito sucesso na Europa, e a companhia veio se apresentar aqui! E se eu perder essa peça porque você não quer fazer-me companhia, vou culpá-la para sempre!
-Evelyn…
-Por favor? — Pediu Evelyn, batendo os cílios com cara de cachorro pidão.
Deidre riu e deu um tapinha no ombro da amiga.
-Está bem, está bem! Mas só vou para contentá-la!
Evelyn riu também, abraçando a amiga.
-Oh, obrigada, Deidre! Coloque seu melhor vestido, o teatro é frequentado pela fina sociedade de New York, já sabe!
Mais uma vez Vivien bateu na porta da casa onde Deidre deveria estar. Nada. E pela total falta de iluminação interior, ela não estava em casa. Lembrou que era uma sexta feira, um dia que os novaiorquinos costumavam sair para se divertirem.
-Maldição! Onde ela poderia ter ido?
Vivien sorriu, depois de ficar pensativa. É claro! Deidre devia ter ido ao teatro! Havia passado diante do teatro e havia visto a multidão de pessoas na fila para entrar! Deidre adorava tudo relacionado à arte, e não iria faltar à apresentação de Sarah Bernhardt !
Ela voltou para a carruagem que alugara e mandou o cocheiro se dirigir para o centro da cidade, na área onde havia vários teatros. Havia ali um projeto para se abrir novas ruas, mas devido à guerra, o projeto ainda não havia saído do papel.
Quando chegou ao teatro, viu a grande fila para comprar a entrada. Felizmente havia cambistas no local e ela não se importou em despender uma alta quantia por um bilhete na terceira fila de cadeiras. Tudo para achar Deidre.
Depois de enfrentar mais uma fila para entrar, ela se sentou e olhou para os camarotes à sua esquerda. Nada. O olhar foi percorrendo os camarotes, e de repente paralizou-se em um belo par de olhos verdes que a fitavam fixamente.
O coração de Vivien disparou. Ali estava Deidre! Linda, em um vestido de veludo azul escuro! Seus olhos se encontraram e ficaram se fitando, estáticas.
Vivien notou que Deidre estava pálida, parecia mais magra. Mas nem por isso menos linda. Notou que ela estava no camarote com um homem e uma mulher, ambos jovens e de boa aparência. Quem seriam? O ciúme penetrou em seu coração como um punhal.
Deidre inclinou a cabeça levemente, em um cumprimento, mas sem sorrir. Vivien correspondeu, emocionada. O que devia fazer? Ir logo falar com ela? Não, era melhor esperar o intervalo da peça. Deidre não fizera nenhum sinal para ela ir até onde estava.
A peça começou. Logo Sarah Bernhardt surgiu, com uma presença que cativou a todos. Mas Vivien mal prestava atenção, com seu olhar sendo atraído pela figura de Deidre. Como a amava! Ela estava adorável!
Deidre a fitava quase furtivamente, dividindo seu olhar entre ela e a peça. Notou que Deidre estava agora ruborizada, um leve sorriso nos lábios.
Finalmente veio o intervalo e Vivien se ergueu rapidamente, se dirigindo para o salão de chá, onde o público podia fumar, conversar e tomar um drink. Vivien logo viu Deidre com o casal, conversando. Vivien, insegura, passou por eles e foi até o balcão, comprar uma xícara de café. Então, sentiu uma mão pousar suavemente em seu ombro. Voltou-se e viu Deidre diante dela, fitando-a com um olhar cheio de ansiedade.
-Vivian… – Sussurrou, com voz trêmula – Não ia falar comigo?
Vivien a fitou emocionada. Ah, que vontade louca de a tomar nos braços e beijá-la! Mas não podia, tinha que seguir as regras da decência da época.
-Não tinha certeza que seria bem recebida… não quis ser inconveniente.
-Inconveniente?!Jamais será inconveniente para mim, Vivi… Vicent!
O casal aproximou-se delas e olharam para Vivien com curiosidade e simpatia. Deidre fez as apresentações:
-Esses são meus amigos, Evelyn Connoly e seu noivo, Malcon Ruppert. E esse é Vicent Talbot, o sulista e antigo vizinho meu, que agora mora em Charleston.
Sulista e antigo vizinho? Vivien esperava ser muito mais que isso. Disfarçando sua ansiedade, estendeu a mão para o rapaz e sua noiva, achando-os simpáticos.
-Muito prazer, Vicent! – Disse Evelyn, com um sorriso malicioso – Deidre já me falou sobre você, sabemos que é um destruidor de corações femininos!
Vivien enrubesceu intensamente, sorrindo embaraçada. O que Deidre teria dito sobre ela à amiga? Felizmente Deidre veio logo em seu socorro:
-Minha amiga adora embaraçar as pessoas, Vicent. Não ligue para o que ela diz.Ela apenas está jogando com palavras. Está aqui há muitos dias?
Vivien a encarou com firmeza, recuperando sua calma.
-Cheguei hoje ao entardecer, Deidre. E apenas tomei um banho, troquei de roupa e fui procurá-la. Não a encontrei na sua antiga casa e imaginei que devia ter vindo ver a peça de Sarah Bernhardt. Sei como gosta de arte. Vim aqui para ver se a encontrava – Disse, com sinceridade.
-Oh… – disse Deidre, enrubescedo, sem ter muito que dizer, o coração batendo loucamente, ao novamente poder contemplar aqueles olhos azuis.
Ficaram se fitando intensamente, esquecidas de quem as rodeava. A risada abafada de Evelyn foi que as despertou do encantamento.
-Vamos, o intervalo logo vai terminar, depois vocês conversam bastante.
Malcon convidou Vivien para ficar no camarote deles e ela aceitou. Voltaram para lá e Vivien sentou ao lado de Deidre. Logo o segundo ato começou e Vivien pegou a mão de Deidre, segurando-a com carinho. Deidre suspirou e apertou a sua,em um mudo gesto de carinho.
Vivien sentiu um calor percorrê-la, ao toque daquela mão quente e macia. E mal prestou atenção à peça, sentindo a mão de Deidre acariciar a sua, entrelaçar os dedos nos seus, a proximidade dela, com o seu perfume.
Finalmente a peça terminou e Vivien e Deidre aplaudiram aéreamente. Elas declinaram o convite do casal para jantarem e se despediram na saída do teatro. Evelyn abraçou Deidre, se despedindo, e sussurrou em seu ouvido, com malícia:
-Por Deus, Deidre! Esse que é Vicent Talbot? Não é à toa que você estava tão abatida pela falta dele! Um homem como esse é mesmo para deixar qualquer mulher definhando de paixão!Vá, eu entendo sua pressa de ficar à sós com ele!
Deidre enrubesceu intensamente com o comentário da amiga. Terminaram as despedidas e se dirigiram para a carruagem que as esperava. Se instalaram e a carruagem partiu.
Vivien não se refreou mais. Puxou Deidre para seus braços e ela veio ansiosa, passando os braços pelo pescoço de Vivien, suas bocas se encontrando em um beijo cheio de paixão. Deidre sugou sua boca como se fosse uma náufraga sedenta, a língua buscando a sua em um ímpeto arrebatador. E Vivien mais uma vez sentiu-se enfeitiçada por aqueles lábios deliciosos, pelo cheiro da pele, dos cabelos, do toque das mãos, daquele corpo contra o seu. Era uma emoção que mulher nenhuma antes a fizera sentir.
Deidre se afastou e a fitou nos olhos, ansiosa, angustiada, as mãos percorrendo seus cabelos, seu pescoço. Na escuridão da noite, mal podiam se ver, a não ser por um ocasional poste de luz à gas.
-Oh Vivien, diga-me que você voltou para ficar comigo, que ninguém mais vai nos separar!
Vivien pousou um dedo nos lábios dela, suavemente, a fitando com amor.
-Acalme-se, querida…shhhhhhh… chame-me por Vicent, ou o condutor da carruagem vai ficar chocado em saber que sou uma mulher – Sussurrou Vivien, sorrindo – E respondendo à sua pergunta, Eu prometo que de hoje em diante, você não terá que se preocupar com mais nada que possa nos separar, a não ser que eu morra.
-Não fale em morte, não fale… – Disse Deidre, acariciando seu rosto, fitando-a com os olhos cheios de amor – Eu preciso tanto de você, Vicent…isso quer dizer que você resolveu seu problema com Audrey e o filho dela?
Vivien fitou-a com ar apaixonado, pegando as mãos dela e as beijando reverentemente.
-Está tudo maravilhosamente resolvido, Deidre. Vou contar a você tudo que descobri.
E Vivien contou tudo que havia acontecido e o que Audrey lhe havia revelado. Deidre a ouviu soltando exclamações de espanto.Quando Vivien terminou o relato, ela suspirou de alívio.
-Quer dizer que Audrey Lancaster não foi engravidada por seu irmão, mas sim por um ianque… e ela acabou se apaixonando pela mulher que a acolheu na Casa Vermelha… e não quis aceitar seu oferecimento de casar-se com ela apenas para dar um nome ao filho dela e à ela mesma…apesar de ter tido uma paixonite por você e você ter estado apaixonada por ela…
Vivien sorriu, percebendo uma ponta de ciúme na voz de Deidre, mas fingiu não perceber isso.
-Sim, ela me surpreendeu, Deidre… Audrey é uma mulher corajosa e desinteressada…ela sabia que um casamento desses lhe daria direito à herança de tudo que possuo, mas ela se negou a participar dessa farsa, alegando que não queria envolver seu filho em uma mentira.
Deidre continuou fitando-a com mal disfarçado ciúme.
-Oh, você está admirando-a por isso… mas eu acho que ela simplesmente fez uma escolha entre você e quem ela ama verdadeiramente. Venceu o amor.
Vivien a encarou de perto, fitando aqueles olhos que a encantavam, pegando o rosto dela entre as mãos.
-Acho que você tem razão. E estou feliz dela ter uma pessoa que ela ama e que também a ama e protege. E por falar em escolha, por que você veio embora para New York sem se despedir de mim, Deidre? Isso me magoou muito, eu não esperava que você desistisse de mim tão fácil. Levou um bom tempo para essa mágoa arrefecer.
-Não podia suportar ver você ao lado de Audrey, Vivien. Eu me sentia tão frágil, tão insegura… eu sabia que você iria fazer a proposta de casamento à ela. E tinha quase certeza que Audrey aceitaria.Afinal, ela estava passando por problemas financeiros e teria uma vida de rainha se casando com você, além de garantir o futuro do filho. Eu já me sentia derrotada. Fugi para não ver você chegar e dizer-me que iria casar com Audrey. Eu tive medo de ver em seus olhos que estava feliz pela aceitação dela à sua proposta.
-Oh, Deidre! Como pôde pensar isso?! Não acredita em meu amor? – Perguntou Vivien, com mágoa.
Os olhos de Deidre a fitaram com adoração.
-Estou tentando minimizar minhas inseguranças em relação à você, meu amor. Se fugi sem me despedir, é porque sabia que não conseguiria tomar essa atitude fitando seu olhos. E agora acredito totalmente em seu amor, depois que voltou e perdoou minha covardia e insegurança. Eu a amo e farei tudo para merecer seu amor.
-Você já merece, querida…
Suas bocas se encontraram em um beijo profundo. Foram interrompidas pela carruagem parar e o cocheiro anunciar que haviam chegado.
Elas desceram e Vivien pagou ao cocheiro, sob protestos de Deidre. Elas entraram na casa e se fitaram, quando a porta foi fechada. Um lampião de gas iluminava o ambiente fracamente, com a chama reduzida.
Não havia mais nada a dizer. Deidre tomou Vivien pela mão e subiram para o quarto.
No quarto, à meia luz, uma despiu a outra, os olhos apaixonados percorrendo cada pedacinho dos corpos se incendiando de paixão, de encantamento, de amor. Suas bocas se buscavam incansáveis, as mãos cheias de carícias, passeando pelas curvas e reentrâncias, despertando gemidos de prazer. Deidre entregou-se como nunca, permitindo Vivien tomá-la em várias posições que a tornava inteiramente vulnerável, mostrando-se sem nenhum pudor aos olhos lúbricos do seu amor, que a levava à loucura total.
Que emoção louca, para Deidre, sentir o sexo de Vivien umidecido se roçando em seu corpo, a mão forte , mas delicada , se insinuando entre suas coxas afastadas ao máximo para receber o afago tão desejado, os bicos duros dos seios de Vivien tocando suas costas, esfregando, à cada movimento de seus quadris, a respiração quente dela em seu ouvido, quando falava coisas excitantes, com aquela voz profunda, rouca, inebriante…
Que prazer inenarrável Vivien sentia, com o corpo da mulher amada se entregando totalmente à ela, sem nenhuma reserva, totalmente vulnerável, com uma confiança que somente um amor verdadeiro propicia, ouvindo os gemidos de Deidre, seus sussurros, pedindo que a tomasse toda, que ela era sua, que a amava loucamente e queria ser possuída de todas as maneiras.
O êxtase simultâneo sacudiu os corpos suados, provocando gritos que se perderam na noite . E outros se repetiram, porque elas estavam embriagadas de paixão e queriam descontar o tempo que estiveram afastadas.
Finalmente vencidas pelo cansaço, ficaram abraçadas, com Deidre com a cabeça pousada no ombro de Vivien, que alizava seus cabelos com um olhar pensativo.
-O que está pensando, amor? – Perguntou Deidre, curiosa.
Vivien voltou o rosto e a fitou sorrindo.
-Estou pensando o quanto a amo. E como seria feliz se você aceitasse casar comigo. Ter o meu nome, ser minha esposa.
Deidre a fitou emocionada.
-Oh, eu seria tão feliz em ter seu nome, em ser sua esposa! Está falando sério?
-Claro que sim. Bem, você sabe que vivo uma vida roubada de meu irmão. Só posso me casar com você com o nome dele. Mas eu quero que viva comigo abertamente, sem precisarmos esconder nosso amor. Não quero que você seja motivo de comentários maldosos do povo da cidade por viver com um homem sem ser casada. Quero que seja respeitada e aceita em qualquer lugar sem provocar comentários.
Deidre riu, erguendo o corpo para fitá-la nos olhos, se apoiando no cotovelo esquerdo.
-Oh, você quer fazer de mim uma mulher honesta, Vivien Talbot! Isso é muito cavalheirismo de sua parte! E como não sou boba como Audrey Lancaster, eu aceito o pedido com muito gosto! Como recusar uma proposta dessa, de um tipo irresistível como você? Vão invejar-me por ser a esposa do “homem” mais bonito de Charleston!
Vivien enrubesceu e a puxou contra si, emocionada.
-Oh, Deidre, estou tão feliz! Deidre Talbot! Minha esposa!
Seus lábios se encontraram em um beijo profundo. Depois, adormeceram.
Todos aguardavam a noiva chegar, principalmente ela.
O altar havia sido improvisado sob a sombra de um imenso carvalho, uma idéia de Audrey. Todo decorado com lírios e rosas brancas, para o qual convergia um tapete vermelho. Os convidados, em suas melhores roupas, aguardavam o início da cerimônia sentados em bancos dispostos dos lados do tapete, com sorrisos de expectativa, alguns cochichando sobre a demora da noiva.
Vivien olhou em volta, com as mãos cruzadas diante do corpo, sentindo o coração em tumulto pela ansiedade e a sensação que estava cometendo um crime. Era uma farsa que ia concretizar-se, mas somente ela sabia disso: ela era o noivo!
Mas quem diria que ela não era um homem, vendo aquele rapaz de alta estatura, esguio e de ombros largos, cabelos negros cortados curtos, vestido com um terno escuro numa pose imponente? Certo, sua pele imberbe do rosto não era um sinal de masculinidade, nem os lábios cheios e naturalmente vermelhos. Porém, o queixo angular forte e o olhar determinado e direto, demonstravam força e coragem, dons que as pessoas costumavam associar aos homens somente. A força de seu olhar, seus gestos firmes e secos, eram outros atributos masculinos.
Não, ninguém suspeitava da masculinidade do noivo. Ainda mais que seu passado era repleto de conquistas femininas.
Vivien comprimiu os lábios, lembrando desse detalhe. Era uma fama que a aborrecia, mas nada podia fazer. Herdara isso de seu irmão, como herdara também toda a vida dele: o nome, a identidade sexual, suas fraquezas, seu passado. E agora, seu futuro.
E Audrey faria parte de desse futuro. Somente isso já valia os riscos que correria. Estava jogando com toda sua vida pelo prêmio de ficar com Audrey.
Os acordes da orquestra contratada se fizeram ouvir, tocando a marcha nupcial. Isso era o sinal que a noiva estava chegando. Vivien olhou para trás, e engoliu em seco, nervosa e emocionada.
Lá vinha ela! Linda no vestido de noiva branco, os cabelos louros presos numa grinalda de flores, aproximando-se de braço dado com o pai. Vivien ficou fitando-a, imóvel pela emoção.
O rosto de Audrey estava grave, os olhos verdes fitando-a com certa desconfiança, como se soubessem de sua verdadeira identidade. Mas Vivien sabia que eles apenas espelhavam a desconfiança de uma mulher que ia casar-se apenas para livrar-se da desonra e ruína da família, mesmo sem amar o noivo.
Vivien desceu o degrau e foi ao encontro dela, estendendo a mão. Audrey apoiou a mão na sua, deixando-se conduzir ao altar. Seus olhares se encontraram e Audrey contraiu o rosto, demonstrando que o toque de suas mãos havia produzido nela alguma sensação. Vivien não sabia se essa sensação era de repulsa ou atração. A mão dela estava gelada.
Vivien soltou a mão dela e olhou para a frente. O padre Weston começou a cerimônia, com sua voz de barítono.
Vivien respirou fundo. Agora não tinha mais volta. “Consummatum est”.
-Nãoooooooooo!!!!!!!
O grito ecoou no quarto, alto, cheio de desespero, fazendo Deidre despertar e sentar assustada na cama . Olhou para Vivien, que tinha os olhos fechados, mas falava com angústia na voz:
-Não… não quero… não com ela… não… NÃO!!!!!!!!!!!
Deidre se debruçou para Vivien e a sacudiu pelos ombros, percebendo que ela estava tendo um pesadelo. Ela se debateu e Deidre disse com suavidade, mas com um bom tom de voz:
-Acorde, Vivien! Você está sonhando! Acorde!Acorde!
Vivien abriu os olhos ofegante, fitando-a assustada. Se sentou na cama, desvencilhando das mãos de Deidre e olhou em volta, para certificar-se que estivera mesmo sonhando. A claridade do dia que surgia a confortou , ao ver Deidre a fitando preocupada. Estendeu os braços e abraçou Deidre apertadamente contra o corpo, suspirando de alívio. Deidre a beijou no rosto, sentindo-a tremer.
-O pesadelo foi muito feio? – Perguntou com carinho.
Vivien afastou-se lentamente e a fitou nos olhos. Suspirou e esclareceu:
-Bem…não seria um pesadelo antes de tê-la conhecido, Deidre. Seria até um sonho muito desejado. Mas hoje, depois de ter você em minha vida, é um pesadelo, porque eu amo você muito e quero passar minha vida com você.
O cenho de Deidre se franziu, confusa.
-Que sonho ou pesadelo foi esse?
-Eu me casando com Audrey, Deidre. Meu Deus! Parecia tão real!O engraçado é que eu queria casar-me com ela, estava feliz. Mas depois do casamento, eu lembrei de você e fiquei desesperada com o que tinha feito. Queria fugir, mas ela não deixava, me abraçando.
Deidre a fitou com amor, acariciando o seu rosto.
-Pobre amor! Eu acho que você sonhou com o casamento com ela porque me propôs casamento antes de dormir. Como por muito tempo estava preocupada com a promessa que fez ao seu irmão, ela me substituiu como noiv
Vivien suspirou, abraçando-a novamente, sentindo uma grande paz e alegria tomar seu coração.
-Deve ser isso, amor. A gente às vezes tem tantos sonhos loucos…e temos tantas impressões erradas das pessoas… o ser humano comete muitos erros de avaliação.E eu também cometo os meus.
-Sim, somos seres passíveis de erros. É a natureza humana, querida.Venha, deite-se ao meu lado. Ainda é muito cedo e fomos dormir muito tarde.
Vivien sorriu e se deitou. Deidre se aninhou em seus braços e em pouco tempo estavam novamente dormindo.
EPÍLOGO
Em um altar construído ao ar livre na fazenda Paradise, Deidre Mackena e Vicent Talbot se casaram, numa cerimônia íntima que apenas poucos convidados e testemunhas compareceram. A tarde ensolarada de verão estava radiante e o sol brilhava entre nuvens brancas como algodão, em um cenário belíssimo para o acontecimento.
Vivien, em um terno negro, e Deidre, em seu belo vestido de noiva, se fitavam embriagadas de felicidade.
E lá estavam Audrey e Anette, com o pequeno Justin, elegantes e risonhas, presenciando a felicidade dos noivos. Elas também estavam felizes, porque agora moravam em uma bela casa com conforto, possuíam um hotel que lhes dava uma vida digna e eram respeitadas. Uma sincera amizade se formara entre elas e os noivos e Deidre e Audrey se visitavam e trocavam confidências, receitas e sujestões de roupas e decoração, como duas boas amigas, sob os olhares divertidos de Vivien e Anette, que preferiam falar de negócios. Justin era muito apegado à Vivien, a quem chamava “tio Vicent”, que o estava ensinando a montar .
E assim, depois de uma guerra que dividiu uma nação, a vida refloresceu, espalhando a esperança de melhores dias. Mesmo levando uma vida roubada, Vivien seria feliz até o fim de sua vida, com a mulher que amava.
FIM
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