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Notas de advertência
Este conto aborda temas intensos de perda, luto e sacrifício. As cenas de despedida e os sentimentos profundos de dor podem ser emocionalmente impactantes. Recomenda-se para leitores que estão confortáveis com narrativas envolvendo luto profundo e amor transcendental.
02 – Lágrimas de um anjo
por Bidi NaschpitzCorreu com todas as forças que seu ser lhe permitia ter. Queria simplesmente deixar tudo para trás: aquele lugar, aquela vida, aquele passado e… Ela.
Não podia suportar mais a dor, já há muito tinha se tornado o carrasco de sua vida. Simplesmente por ser algo no qual não havia escapatória. Uma centenária e lendária Rainha Amazona lhe visitou em sonho anunciando o prelúdio do inevitável, e aquilo só acarretou toda a inconformidade que carregara durante tanto tempo.
As lembranças invadiam sua mente, sem pedir licença. Era como se não tivesse um minuto para respirar para si mesma. Até mesmo à noite, o sono só vinha com pequenos encantamentos xamãs repassados pela tribo para expulsar pequenos demônios e pesadelos. Era a sensação de exclusão do mundo por algo maior.
O rosto dela veio à sua mente, rebocando o tão velho caminhão de lembranças.
Parou de correr. Nada mais adiantaria, não havia escapatória. Nunca houve, em todos esses anos.
Soltou um suspiro resignado contendo uma lágrima. Só queria o passado de volta… E havia uma maneira, dolorosa, nada igual a sua necessidade melancólica desde a juventude. Então se dirigiu para aquele local de descanso sagrado.
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A lápide estava coberta por algumas ervas daninhas. Fazia já algum tempo que não ia ali. Tinha transformado aquele lugar num território sagrado de conexão com o passado onde somente as líderes da tribo poderiam adentrar. No meio da pequena clareira, jaziam os restos da mulher que era endeusada como salvadora das Amazonas, e a primeira e última mulher que aquela lendária rainha amara em vida. O outro corpo que em outrora completou sua alma.
Sorriu melancolicamente, permitindo então que o choro contido nesses últimos anos de guerra viesse à tona; ali, na paz dos que já foram e que tudo vêem, poderia ser humana novamente, sem ter que aparentar ser uma líder sobre humanamente forte em tempos muito difíceis.
Aproximou-se da lápide, livrando-se do mato. Para aquele túmulo ela falaria…
– Olá Xena… Já faz algum tempo, né? Mas você sabe que não me esqueci de você, ou parei de pensar um minuto, eu estou do seu lado. É só que… – olhou em volta por um segundo e voltou o olhar para a lápide. – Doía demais sua ausência, e esse lugar carrega toda minha felicidade que fora enterrada junto com você – limpou uma lágrima com a mão. – Lembra da primeira vez que deitamos aqui, nessa grama, felizes quando conhecemos essa tribo? Como sentíamos a grama em nossas costas e de mãos dadas, simplesmente esquecíamos o mundo…?
Procurou aqueles detalhes na lápide e os encontrou tão apagados pelo tempo. Sacou seu punhal e começou a reentalhar aqueles escritos feitos por ela na última vez que fora àquele lugar, perdendo seu corpo em lágrimas quando metade de sua tribo morrera em mais uma guerra contra os romanos.
– Só queria que você soubesse que eu amava o jeito que você ria; quando você chorava, eu queria te abraçar forte e roubar toda sua dor. Mas eu… – suspirou. – eu fico despedaçada quando estou sozinha. Não me sinto bem desde que você foi embora, e não me sente mais aqui. Sem você eu não me sinto como sou forte o bastante…
Balançou a cabeça a fim de espantar aqueles sentimentos e pensamentos tão negativos, finalizando seu trabalho e relendo aqueles entalhes antigos:
Linda mulher
No topo do mundo
Não caia
Porque um anjo nunca deve tocar o chão
Mental e involuntariamente começou a cantar uma cantiga composta por ela, na qual intitulara “Hino dos Anjos”: seu pergaminho mais precioso que fora tomado pela xamã de sua tribo como um encanto para chamar a alma daqueles que amamos e que já se foram, por conter em cada vírgula a força de um amor transcendental nunca antes visto.
Olhou para o lado vislumbrando um pequeno aglomerado de rosas vermelhas selvagens que cresciam ao lado da lápide, plantadas ali por ela. A rajada gelada de inverno soprou, fazendo as flores dançarem melancolicamente regidas pelo vento, como se chorassem junto com a rainha daquelas terras.
Foi quando a idéia lhe assaltou. Levantou-se, cuidadosamente colhendo a preciosa rosa para o ritual sagrado. Em suas crenças, o vermelho-sangue daquela flor simboliza um amor que se foi, mas que jamais seria esquecido e seria reencontrado algum dia. Seus espinhos, o tortuoso caminho para a felicidade que se encontrava em seu perfume.
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– Espírito que amei e que essa vida deixou, cante comigo o Hino dos Anjos e invoque de volta aquele amor que nos consumiu – disse, em meio às velas aromáticas na cabana de rituais xamãs.
A rosa se encontrava dentro de uma vasilha de ouro. A xamã, concentrada, cortou a palma de Gabrielle com uma adaga, fazendo o sangue escorrer sobre a rosa e preencher a vasilha. Feito isso, retirou-se do local.
– Eu tinha um sonho com você, e milhares de estrelas se acenderam no céu – colocou a vasilha no meio de um pentagrama desenhado no chão de terra, permitindo que o sangue o redesenhasse. – Eu tentei tocar sua mão, mas você tinha partido – fechou a mão, cessando o sangue. – Você me olhou nos olhos e me teve hipnotizada. Aqueles momentos passados juntas prometiam a eternidade que você erroneamente possui agora. E no espaço entre o certo e o errado, eu te clamo… Venha me encontrar… Meu amor…
Nesse momento, uma luz branca surgiu acima da rosa, lentamente se materializando nas feições da lendária Princesa Guerreira. Então a Rainha Amazona não pôde mais segurar o pranto heroicamente contido por tantos anos, para logo ser amparada pela morena.
– Lágrimas de um anjo… – sussurrou a mulher alta, enxugando as lágrimas de Gabrielle.
Sentiu aquele toque tão conhecido gelado daquela maneira, e seu coração apertou-se ainda mais; era a confirmação de que aquela que amara durante toda sua existência já havia partido.
– Gabrielle… Abrace-me, meu amor. Você sabe que eu não posso ficar muito tempo…
– Tudo… Tudo que eu queria dizer era que eu te amo e que eu não tenho medo.
Xena sorriu singelamente, preenchida por aquela paz inquebrável proveniente da imortalidade. Levantou o queixo da loira em direção a ela.
– Medo de quê?
Por um segundo, permitiu-se se perder naquele oceano azul de memórias. Era reconfortante que mesmo os anos ou a morte não tiraram aquela compreensão sem palavras entre elas, onde somente os corpos e olhos falavam. Sabia que não mais precisava mais admitir seus sentimentos; Xena invadia cada um de seus sonhos, acolhendo-a e falando palavras de amor ao seu ouvido. Podia ver naqueles olhos utópicos que era plenamente correspondida, e que sempre seria. Qualquer declaração era dispensável dali por diante.
– Cyane veio para mim em sonho anunciando minha morte. Não viverei muito tempo mais.
Xena acariciou o rosto daquela mulher que fora sua pequena barda em outrora.
– Por isso me invocou, mesmo sabendo que isso não poderia se repetir, que nem mesmo em sonho eu poderia te visitar mais. Mas você não pode desistir, Gabrielle. E seu povo?
– Eu acho até que isso demorou a chegar, eu rezava para os Deuses que minha hora viesse logo – sorriu tristemente. – E, além disso, Cyane disse que não importava para onde eu corresse: aqui, no reino de Chin ou no Longe Norte, o que está predestinado simplesmente acontecerá.
Xena franziu as sobrancelhas; essa era uma suposição que não engolia. Mas naquele momento, ir contra tradições tão fortes da tribo de Gabrielle só a machucaria. Sabia que aquela mulher coberta de cicatrizes já não era mais sua inocente barda. Não tentaria se iludir.
Gabrielle contornava delicadamente seus lábios com os dedos, retirando a morena de seus pensamentos.
– Eu nunca esqueci esses olhos… Aquele sorriso lindo…
Instantaneamente Xena sorriu, contaminando a loira. Olhou profundamente dentro daqueles olhos.
– Uma parte de mim agradece a chegada da sua vez. Não há mais nada sobrando de você nessa vida, eu posso ver nos seus olhos. Você cantou o Hino dos Anjos para dizer o último adeus.
– Eu estou morta-viva há um longo tempo. Se você for, eu também vou, para qualquer lugar, eu tenho de ir junto com você sempre. Segurei-me a você e tentei te trazer de volta à vida, mas eu falhei. Os dias passaram eternamente e eu sei que você nunca deixou meu lado… Agora eu clamo para perseguir a escuridão com você, anjo que invoquei – sorriu, acariciando a bochecha de pele de cetim. Xena repetiu o sorriso.
– Eu sei que você sempre pensava em mim e se deixava preencher com memórias. E quando fazia isso, sorria e mantinha essas boas memórias consigo por um tempo.
Gabrielle consentiu.
– Eu simplesmente não posso mais lutar contra mim mesma, em prol da tribo. Não posso mentir, eu previ essa autodestruição no instante em que me dei conta que você tinha partido definitivamente. Eu fiquei petrificada, sem pensamentos, por anos, até a chegada dos romanos. O poder da minha justiça então falou mais alto, mas ao mesmo tempo me afastou de quem eu realmente era. Todas aquelas guerras, aquela crueldade, aquele sangue… Eu estava perdida, eu nunca tinha andado longe de você, eu nunca tinha andado sozinha…
Xena interrompe a narrativa, tomando o rosto de Gabrielle em suas mãos.
– Eu nunca esperei uma reação daquelas da sua parte, é verdade. Mas eu vi a estrutura do seu orgulho, e seu que não foi fácil construí-la sozinha, sem meu apoio. Eu estava em todos os seus sonhos, acompanhando cada passo da sua vida.
Gabrielle delicadamente enlaça a cintura de Xena, deitando a cabeça em seu peito como fazia em outrora.
– É só que esse prazer me faz vibrar novamente essa noite. Só estou pensando como é bom me sentir eu mesma de novo – levantou a cabeça fitando aqueles olhos. – Quero celebrar, estou viva novamente. Eu mudei a página e me convenci que essa vida acabou no momento em que você deixou de respirar. Eu não sei dizer como me sinto; aquelas três palavras são ditas demais, elas não são suficientes, mas… Eu preciso da sua graça… Para me lembrar de encontrar minha própria… Eu preciso da sua presença, Xena… – a lembrança dos anos duros e solitários que se passaram desde a morte da morena correu sua mente, não permitindo que contesse o choro. Mas ali, a Princesa Guerreira secou suas lágrimas.
– Você não precisa saber dizer como se sente, Gabrielle. Eu estava nos seus sonhos, eu assistia cada um dos seus passos e das suas decisões mais difíceis. Acredite, eu sei…
A Rainha Amazona tentou sorrir para espantar a dor, não tendo muito sucesso.
– Quando você apareceu e disse meu nome eu soube que você estaria de volta por um tempo, junto com os velhos tempos, através das barreiras do tempo e vivendo o hoje, sem se esconder, para ficar comigo de novo.
Xena sorriu, abaixando a cabeça por uns segundos.
– Você está enganada, essa será você quando se juntar a mim – disse, enquanto pegava as mãos da barda. – Você lembra como eu costumava tocar suas mãos? Minhas mãos continuavam, você só não sabia que eu estava aqui.
A morena pôs a mão no rosto da mulher, acariciando.
– Doía demais, eu rezava para o dia que seria libertada de volta onde eu pertencia: ao seu lado. Eu só podia ser encontrada no mundo de ontem.
A Princesa Guerreira colocou uma mecha de cabelo para trás da orelha daquela linda mulher.
– Se você estiver perdida, pode sempre olhar em volta e me achará ao seu lado vida após vida. E Gabrielle… – se interrompeu com um sorriso doce, chamando a atenção da loira. – O pior já passou e podemos respirar de novo. Quero te abraçar, você rouba minha dor – disse, contaminando a rainha com um sorriso levemente sem-graça.
Nesse momento, o sino que soava o alarme anunciando ameaças ecoou por toda a vila, interrompendo-as. Uma multidão podia ser ouvida se movimentando rapidamente lá fora, dando e recebendo instruções. Das palavras semi-compreensíveis, a única frase que se repetia claramente era “onde está a Rainha?”. Ao que parecia, sua guerreira xamã, também avisada por Cyane, cumpriu sua parte e não revelou sua localização. A cabana de rituais xamãs era proibida ao acesso da tribo sem autorização. Então ali Gabrielle jamais seria achada.
A loira olhou para Xena. A aura de calma e aceitação era impenetrável ali dentro.
– Está na hora.
Xena meneou a cabeça, consentindo. Puxou Gabrielle e a abraçou com toda a força que sua gélida condição fantasmagórica permitia.
– Até logo, meu amor. Encontraremo-nos no lugar onde sempre nos pertencemos juntas, por toda a eternidade. E onde jamais poderemos ser separadas.
– Eu te amo, Xena…
E ficaram assim, abraçadas, sentindo seus corpos juntos e esperando pelo destino inevitável.
Nesse momento, o exército romano que adentrou o território Amazona para sua colonização definitiva, pôs as catapultas em ação. No primeiro lance atirado, quase todas as cabanas foram destruídas. Gritos e choros se alastraram por toda a aldeia quando se espalhou o conhecimento que entre as irmãs mortas, o corpo ensangüentado da rainha mais importante e justa da história Amazona jazia em chamas nos destroços da cabana de rituais xamãs.
Ao longe, além do desespero e luto daquelas mulheres que agora eram facilmente arrasadas pelos homens romanos, uma figura encapuzada se escondia na escuridão da mata iluminada pelas chamas.
Eponin, a xamã daquela tribo, havia fugido de acordo com o último pedido de sua Rainha. Ela escreveria por décadas e disseminaria pela história a verdadeira crueldade romana com as Amazonas, e a luta daquele povo pela sua sobrevivência. Foi difícil, mas Cyane contou a elas que naquela noite o destino de toda a nação Amazona estava selado, e que somente o nome de Eponin não havia sido tecido nas trilhas da morte.
Em seu rosto, toda a dor e lágrimas pela perda definitiva eram combatidas por um sorriso vitorioso. Aquele amor mais forte que qualquer existência seria unido novamente. Júlio César não conseguiu separar o que fora destinado a ficar junto desde o início dos tempos: a alma de dois seres separados pelos Deuses.
Olhou para sua mão. Nela jazia o pergaminho mais importante da história Amazona, escrito pela lendária Rainha Gabrielle. Nele estava contida a maior história de amor que o mundo veria. E anexado, estava o famoso Hino dos Anjos:
“Hino dos Anjos
Meu querido amor, você não queria estar comigo?
E meu querido amor, você não ansiava ser livre?
Eu não posso continuar fingindo que eu sequer te conheço
E em uma doce noite, você é só minha
Pegue minha mão
Nós estamos partindo daqui esta noite
Não há motivo para contar a alguém
Eles apenas nos atrasariam
Então pela luz da manhã
Nós estaremos a meio caminho para qualquer lugar
Onde o amor é mais que apenas seu nome
Onde ninguém precisa de uma razão
Eu tenho sonhado com um lugar para você e eu
Ninguém sabe quem nós somos lá
Tudo que eu quero é dar minha vida somente para você
Eu tenho sonhado por muito tempo, não posso sonhar mais
Vamos fugir, eu te levarei lá
Esqueça essa vida
Venha comigo
Não olhe para trás, você está segura agora
Destranque seu coração
Abaixe sua guarda
Não há mais ninguém para te parar agora”
Ela asseguraria à humanidade que a pessoa mais bondosa e justa que já respirou era uma Rainha Amazona e que nos confins das densas florestas do interior grego existiu o maior amor entre dois seres que o mundo já conheceu.
Cante o Hino dos Anjos e diga o último adeus…