Capítulo 1
por S. RamosGabrielle caminhava pesadamente por caminhos há muito conhecidos. Não havia planejado a viagem, apenas deixava que seus pés a levassem. Ela não tinha idéia de para onde estava indo, só esperava que toda aquela caminhada pudesse distraí-la da dor que a corroia por dentro.
Já não sabia há quanto tempo caminhava. Não sentia, fome, sono, cansaço, nada. A tristeza que tomava conta dela a tinha distanciado de todas as suas necessidades humanas, como se ela também tivesse morrido E ela andava, andava e andava. Não via as árvores por onde passava, não ouvia o canto dos pássaros, não sentia o sol que batia incansável em sua pele.
Saiu da estrada e entrou na floresta sombria. Já estava acostumada a mais completa escuridão interior, de modo que uma floresta escura não lhe trazia receios.
Andava lentamente como se Atlas tivesse transferido a ela o peso do mundo.
Seus olhos estavam duramente vidrados, mirando o nada. Quem a visse desse jeito, não a reconheceria.Seu cabelo, antes perfumado e bem penteado, estava desalinhado e descuidado; as roupas eram sujas e esfarrapadas e os sais jaziam esquecidos nas botas surradas.
Após algum tempo de caminhada na floresta, ela ouviu um estalo. Vira-se rapidamente, procurando em todas as direções, seus olhos brilhando de expectativa.
-Xena, é você?- sua voz é fraca, mas comovida.
Após alguns segundos olhou para o chão e viu um galho quebrado sob seus pés. A luz sumiu de seus olhos novamente, uma lágrima escorreu por seu rosto e caiu no chão. Sua mão fechou-se fortemente. O corpo tremia tanto que ela deixou-se cair de joelhos no meio das folhas já semidecompostas. Engolindo um soluço, deixou escapar de seus lábios o reflexo de uma melodia já conhecida por seu coração destruído.
“Vim gastando meus sapatos,
Me livrando de alguns pesos
Perdoando meus enganos
Desfazendo minhas malas…
Talvez assim chegar mais perto.”
Sua voz era baixa e tristemente entrecortada. Não lembrava em nada o melodioso e alegre timbre da antiga barda. A cada palavra seu coração pesava mais e outra lágrima marcava sua pele.
Um mês. Um mês. Trinta dias que meu coração parou de bater. Sim, porque eu também morri…
Seus olhos se fecharam e ela se lembrou dos risos, das brincadeiras, das aventuras…
Tudo vai ficar bem, eu prometo.
Abriu os olhos ao escutar a frase conhecida. Olhou para os lados, mas não havia nada. As palavras estavam apenas na sua cabeça. Esforçou-se para levantar, precisava ir, precisava esquecer.
Andou por tanto tempo que suas lágrimas secaram, seus pensamentos se esvaeceram e a noite veio. Mas ela não parava, não havia nada que a fizesse se concentrar.
Despertou de seus devaneios quando sentiu algo em seus pés. Era água. Havia chegado à beira de um riacho sem perceber. Olhou para a lua refletida na água límpida.
Não importa o quanto está frio, você tem que tomar um banho, Gabrielle! – dizia Xena e a empurrava na água.
Um sorriso brotou em seu rosto ao lembrar-se disso. Olhou para seu corpo sujo e suas roupas desgastadas.
Tudo bem Xena, eu tomo banho!, escutou a própria voz.
Despiu-se e entrou no riacho. Chegando à profundidade ideal, olhou para trás e disse:
-Xena me alcance o…
Parou ao ver margem vazia. Sentiu um arrepio frio percorrer-lhe o corpo e percebeu-se mais só do que nunca. Mergulhou e quando saiu deixou escapar numa voz trêmula:
“Vim, achei que eu me acompanhava
E ficava confiante
Outra hora era o nada
A vida presa num barbante
E eu quem dava o nó…”
Sua mente tornou-se lúcida por alguns instantes. Pensou que precisava comer. Não sentia fome, mas não se lembrava da última vez que tinha posto algum alimento na boca.
Algum tempo depois Gabrielle estava mastigando um pedaço de peixe em frente a uma pequena fogueira. Olhou para as chamas e viu a imagem da melhor amiga. Seu coração palpitou e o vazio voltou a encontrá-la. O vácuo levou-a de volta a uma época em que também se sentia perdida:
Sim, Gabrielle sou eu! Eu quero que faça algo: feche os olhos. Feche bem os olhos e pense em mim…
Gabrielle engoliu o alimento que havia em sua boca, fechou os olhos e ouviu a própria voz:
Por que? Por que você partiu? Há tantas coisas que eu quero dizer…
-Há tantas coisas que eu ainda quero dizer…-disse em voz alta
Gabrielle eu sempre estarei aqui!
Abriu os olhos e mais uma vez olhou para o céu. Soltando um suspiro pegou um galho próximo e começou a rabiscar algo no chão:
“Eu lembrava de nós dois
Mas já cansava de esperar
E tão só eu me sentia
E seguia a procurar
Esse algo, alguma coisa
Alguém que fosse me acompanhar.”
Ouviu um barulho próximo. Parecia um sussurro. Virou-se encarando as folhas das árvores que balançavam suavemente. Era só o vento.
Escutou uma voz há muito esquecida encher sua mente:
Gabrielle, os mortos podem te escutar. Se seus sentimentos forem puros.
Levantou-se e gritou com todas as forças de seu ser:
“Se há alguém no ar
Responda se eu chamar
Alguém gritou meu nome
Ou eu quis escutar?”
Não houve resposta. Gabrielle não se surpreendeu. Sentiu uma leve brisa passando por seu rosto.
Tão suave, até parece um..um…
Seria possível? Finalmente a tinha encontrado?
Xena prometera ficar junto dela, no entanto nesse tempo todo a única companhia de Gabrielle era sua própria dor.
-Xena, você voltou pra mim?
Nada. Silêncio.
-Xena!Responde!
Ela esperou, mas nada aconteceu. Não havia ninguém ali. Deixou que seus lábios externassem aquilo que a enchia por dentro:
“Vem, eu sei que ta tão perto
E por que não me responde
Se também tuas esperas
Te levaram pra bem longe
É longe esse lugar…”
Sentiu o cansaço perpassar seu corpo. Fazia muito tempo que não descansava seus ossos. Sentou-se e passou as mãos pelo rosto. Não tinha certeza se conseguiria dormir. Pegou o que restou do jantar. Havia sobrado mais da metade. Novas lágrimas tremeluziram em seus olhos ante o brilho das chamas.
-Se ela estivesse aqui não sobraria nada…
-Gabby você vai comer todo o seu peixe?
-Vou sim!
-Se você não quiser mais, já sabe… –fala Xena de boca cheia.
-Já sei. Mas eu vou comer o meu! Você não tinha pegado cinco deles para você comer?
-Sim. Mas eu comi todos…
Gabrielle lembrou do quanto riu diante dessa afirmativa. Sua barriga doía tanto que ela não conseguiu mais comer o peixe. Moral da história: Xena acabou devorando o jantar da barda também.
Suspirando, enrolou o resto do jantar e deixou perto das cinzas da fogueira. Decidiu se deitar. Abriu a bolsa para pegar seu velho cobertor. Um breve e triste silvo escapou de seus lábios quando seus dedos envolveram uma coisa conhecida: um bracelete de Xena. Suas mãos tremeram e ela largou o objeto. Pegou o cobertor e não voltou a olhar a bolsa. Esticou o cobertor e se deitou mirando as estrelas. Não fazia idéia de onde estava, mas parecia ser muito longe de qualquer lugar onde um dia ela quis chegar.
Virou-se de lado. Lá longe estava sua mochila, onde suas coisas estavam misturadas àquelas da pessoa que ela mais amou na vida. Sua respiração estava calma, mas a voz enchia-se de emoção quando cantarolou o verso que ecoava em sua mente:
“Vem, nunca é tarde ou distante
Pra eu te contar os meus segredos
A vida solta num instante
Tenho coragem, tenho medo sim…”
Não conseguiu terminar o verso. Sua voz travou quando ela sentiu um calor às suas costas e um peso morno envolveu-lhe a cintura. Ela sabia quem era, porém não teve coragem de virar-se e olhar. Tinha medo que fosse embora. Ficou parada, sentindo a proximidade de seu ser mais querido. Sim, sua amizade as tinha unido para sempre.
Seu coração estava quente agora, enternecido. Não tinha forças para falar e, pensando bem, não havia o que dizer. Permaneceu como estava e em pouco tempo adormeceu, embalada pela sensação de proteção, carinho, amizade…completude.
No outro dia acordou assustada. Seria verdade?
Não havia ninguém ao seu lado.
A tristeza turvou-lhe o semblante novamente. Levantou-se e foi pegar um pedaço de peixe para comer. Quando pegou o embrulho viu que a comida havia sumido. Só restavam os espinhos.
Uma alegria sem tamanho envolveu-lhe. Não foi um sonho!
“Que se danem os nós!”- cantarolou, pouco antes de se jogar no rio com roupa e tudo.
FIM