Gabrielle caminhava pesadamente por caminhos há muito conhecidos. Não havia planejado a viagem, apenas deixava que seus pés a levassem. Ela não tinha idéia de para onde estava indo, só esperava que toda aquela caminhada pudesse distraí-la da dor que a corroia por dentro.

Já não sabia há quanto tempo caminhava. Não sentia, fome, sono, cansaço, nada. A tristeza que tomava conta dela a tinha distanciado de todas as suas necessidades humanas, como se ela também tivesse morrido E ela andava, andava e andava. Não via as árvores por onde passava, não ouvia o canto dos pássaros, não sentia o sol que batia incansável em sua pele.

Saiu da estrada e entrou na floresta sombria. Já estava acostumada a mais completa escuridão interior, de modo que uma floresta escura não lhe trazia receios.

Andava lentamente como se Atlas tivesse transferido a ela o peso do mundo.

Seus olhos estavam duramente vidrados, mirando o nada. Quem a visse desse jeito, não a reconheceria.Seu cabelo, antes perfumado e bem penteado, estava desalinhado e descuidado; as roupas eram sujas e esfarrapadas e os sais jaziam esquecidos nas botas surradas.

Após algum tempo de caminhada na floresta, ela ouviu um estalo. Vira-se rapidamente, procurando em todas as direções, seus olhos brilhando de expectativa.

-Xena, é você?- sua voz é fraca, mas comovida.

Após alguns segundos olhou para o chão e viu um galho quebrado sob seus pés. A luz sumiu de seus olhos novamente, uma lágrima escorreu por seu rosto e caiu no chão. Sua mão fechou-se fortemente. O corpo tremia tanto que ela deixou-se cair de joelhos no meio das folhas já semidecompostas. Engolindo um soluço, deixou escapar de seus lábios o reflexo de uma melodia já conhecida por seu coração destruído.

 

“Vim gastando meus sapatos,

Me livrando de alguns pesos

Perdoando meus enganos

Desfazendo minhas malas…

Talvez assim chegar mais perto.”

 

Sua voz era baixa e tristemente entrecortada. Não lembrava em nada o melodioso e alegre timbre da antiga barda. A cada palavra seu coração pesava mais e outra lágrima marcava sua pele.

Um mês.  Um mês. Trinta dias que meu coração parou de bater. Sim, porque eu também morri…

Seus olhos se fecharam e ela se lembrou dos risos, das brincadeiras, das aventuras…

Tudo vai ficar bem, eu prometo.

Abriu os olhos ao escutar a frase conhecida. Olhou para os lados, mas não havia nada. As palavras estavam apenas na sua cabeça. Esforçou-se para levantar, precisava ir, precisava esquecer.

Andou por tanto tempo que suas lágrimas secaram, seus pensamentos se esvaeceram e a noite veio. Mas ela não parava, não havia nada que a fizesse se concentrar.

Despertou de seus devaneios quando sentiu algo em seus pés. Era água. Havia chegado à beira de um riacho sem perceber. Olhou para a lua refletida na água límpida.

Não importa o quanto está frio, você tem que tomar um banho, Gabrielle! – dizia Xena e a empurrava na água.

Um sorriso brotou em seu rosto ao lembrar-se disso. Olhou para seu corpo sujo e suas roupas desgastadas.

Tudo bem Xena, eu tomo banho!, escutou a própria voz.

Despiu-se e entrou no riacho. Chegando à profundidade ideal, olhou para trás e disse:

-Xena me alcance o…

Parou ao ver margem vazia. Sentiu um arrepio frio percorrer-lhe o corpo e percebeu-se mais só do que nunca. Mergulhou e quando saiu deixou escapar numa voz trêmula:

 

Vim, achei que eu me acompanhava

E ficava confiante

Outra hora era o nada

A vida presa num barbante

E eu quem dava o nó…”

 

Sua mente tornou-se lúcida por alguns instantes. Pensou que precisava comer. Não sentia fome, mas não se lembrava da última vez que tinha posto algum alimento na boca.

Algum tempo depois Gabrielle estava mastigando um pedaço de peixe em frente a uma pequena fogueira. Olhou para as chamas e viu a imagem da melhor amiga. Seu coração palpitou e o vazio voltou a encontrá-la. O vácuo levou-a de volta a uma época em que também se sentia perdida:

Sim, Gabrielle sou eu! Eu quero que faça algo: feche os olhos. Feche bem os olhos e pense em mim…

Gabrielle engoliu o alimento que havia em sua boca, fechou os olhos e ouviu a própria voz:

Por que? Por que você partiu? Há tantas coisas que eu quero dizer…

-Há tantas coisas que eu ainda quero dizer…-disse em voz alta

Gabrielle eu sempre estarei aqui!

Abriu os olhos e mais uma vez olhou para o céu. Soltando um suspiro pegou um galho próximo e começou a rabiscar algo no chão:

 

“Eu lembrava de nós dois

Mas já cansava de esperar

E tão só eu me sentia

E seguia a procurar

Esse algo, alguma coisa

Alguém que fosse me acompanhar.”

 

Ouviu um barulho próximo. Parecia um sussurro. Virou-se encarando as folhas das árvores que balançavam suavemente. Era só o vento.

Escutou uma voz há muito esquecida encher sua mente:

Gabrielle, os mortos podem te escutar. Se seus sentimentos forem puros.

Levantou-se e gritou com todas as forças de seu ser:

 

“Se há alguém no ar

Responda se eu chamar

Alguém gritou meu nome

Ou eu quis escutar?”

 

Não houve resposta. Gabrielle não se surpreendeu. Sentiu uma leve brisa passando por seu rosto.

Tão suave, até parece um..um…

Seria possível? Finalmente a tinha encontrado?

Xena prometera ficar junto dela, no entanto nesse tempo todo a única companhia de Gabrielle era sua própria dor.

-Xena, você voltou pra mim?

Nada. Silêncio.

-Xena!Responde!

Ela esperou, mas nada aconteceu. Não havia ninguém ali. Deixou que seus lábios externassem aquilo que a enchia por dentro:

 

“Vem, eu sei que ta tão perto

E por que não me responde

Se também tuas esperas

Te levaram pra bem longe

É longe esse lugar…”

 

Sentiu o cansaço perpassar seu corpo. Fazia muito tempo que não descansava seus ossos. Sentou-se e passou as mãos pelo rosto. Não tinha certeza se conseguiria dormir. Pegou o que restou do jantar. Havia sobrado mais da metade. Novas lágrimas tremeluziram em seus olhos ante o brilho das chamas.

-Se ela estivesse aqui não sobraria nada…

-Gabby você vai comer todo o seu peixe?

-Vou sim!

-Se você não quiser mais, já sabe… –fala Xena de boca cheia.

-Já sei. Mas eu vou comer o meu! Você não tinha pegado cinco deles para você comer?

-Sim. Mas eu comi todos…

Gabrielle lembrou do quanto riu diante dessa afirmativa. Sua barriga doía tanto que ela não conseguiu mais comer o peixe. Moral da história: Xena acabou devorando o jantar da barda também.

Suspirando, enrolou o resto do jantar e deixou perto das cinzas da fogueira. Decidiu se deitar. Abriu a bolsa para pegar seu velho cobertor. Um breve e triste silvo escapou de seus lábios quando seus dedos envolveram uma coisa conhecida: um bracelete de Xena. Suas mãos tremeram e ela largou o objeto. Pegou o cobertor e não voltou a olhar a bolsa. Esticou o cobertor e se deitou mirando as estrelas. Não fazia idéia de onde estava, mas parecia ser muito longe de qualquer lugar onde um dia ela quis chegar.

Virou-se de lado. Lá longe estava sua mochila, onde suas coisas estavam misturadas àquelas da pessoa que ela mais amou na vida. Sua respiração estava calma, mas a voz enchia-se de emoção quando cantarolou o verso que ecoava em sua mente:

“Vem, nunca é tarde ou distante

Pra eu te contar os meus segredos

A vida solta num instante

Tenho coragem, tenho medo sim…”

 

Não conseguiu terminar o verso. Sua voz travou quando ela sentiu um calor às suas costas e um peso morno envolveu-lhe a cintura. Ela sabia quem era, porém não teve coragem de virar-se e olhar. Tinha medo que fosse embora. Ficou parada, sentindo a proximidade de seu ser mais querido. Sim, sua amizade as tinha unido para sempre.

Seu coração estava quente agora, enternecido. Não tinha forças para falar e, pensando bem, não havia o que dizer. Permaneceu como estava e em pouco tempo adormeceu, embalada pela sensação de proteção, carinho, amizade…completude.

No outro dia acordou assustada. Seria verdade?

Não havia ninguém ao seu lado.

A tristeza turvou-lhe o semblante novamente. Levantou-se e foi pegar um pedaço de peixe para comer. Quando pegou o embrulho viu que a comida havia sumido. Só restavam os espinhos.

Uma alegria sem tamanho envolveu-lhe. Não foi um sonho!

“Que se danem os nós!”- cantarolou, pouco antes de se jogar no rio com roupa e tudo.

 

FIM

 

\”Xena e Gabrielle tinham arranjado uma pequena pousada para passar a noite, porém, a barda parecia perturbada com algo…\”

Aqueles pensamentos estavam tirando completamente a concentração que eu não possuía. Há dias não conseguia concentrar-me por causa do que aconteceu. Larguei a pena e o pergaminho em que escrevia e passei os dedos pelos cabelos, numa tentativa frustrada de recuperar a calma.

Levantei e olhei minha face refletida no espelho, ato que era simplesmente incomum para mim. As olheiras estavam cada vez mais visíveis sob minha pele, resultado de seguidas noites em claro perturbada com pensamentos. Ou tentando pensar. Tomar um ar talvez fosse a melhor saída para tal situação.

Caminhei até a porta de meu quarto e desci as escadas, aparentemente sem saber ao certo para onde meus pés me levavam.

O vento que soprava não me incomodava, apesar de estar meio frio e eu trajar apenas uma roupa de tecido fino. Apoiei os cotovelos sobre uma cerca e passei a fitar as inúmeras estrelas espalhadas pelo céu sem nuvens daquela noite.

Os lençóis pendurados em um varal iam e vinham, como se dançassem ao sabor do vento, tão brancos como a luz das estrelas que brilhavam forte.

Mesmo tendo toda a calma que aquele lugar transmitia, não conseguia deixar que os pensamentos que estiveram me atrapalhando saíssem de minha cabeça. Parecia que o lugar deles era ali, não me permitindo pensar em mais nada.

Um estranho som fez com que eu parasse de fitar as estrelas e me virasse. Era algo como pessoas se movendo, não sabia dizer ao certo.

Amaldiçoei a mim mesma por não ter trazido comigo meu cajado, mais uma vez a distração havia tomado conta de mim.

Entretanto, quando fixei meus olhos sobre o que estava produzindo tais ruídos, fiquei completamente sem ação.

Meus joelhos insistiam em dobrar-se, fazendo com que eu quase caísse ajoelhada no chão. Levei inutilmente uma das mãos à boca, contendo uma exclamação que nunca veio. Em vez dela, meus olhos encheram-se de lágrimas que não tardaram a escorrer por meu rosto.

Eu sabia exatamente o motivo pelo qual tais reações ocorriam, contudo era algo que eu jamais quis que ninguém soubesse – pelo menos não naquele momento. Mesmo que minha busca tenha sido sobre ele, não estava preparada ainda. Tratava-se de uma grande força capaz de mudar o sentido das coisas, e por muitos denominado amor.

Isso apenas mostrava como o destino era injusto. Eu, uma sonhadora, que rezava para que os deuses me tirassem de algo tão comum e me entregassem a estrada, agora, nada mais almejava do que um lar, uma vida comum ao lado del… Por que simplesmente teve de ser desse jeito, e justamente por essa pessoa?

Mas não eram exatamente esses pensamentos que me passavam pela cabeça no momento. Eu só pensava em sumir daquele lugar, da minha vida.

Quando pensei que estava longe da cena que estivera presenciando, notei que meus pés não haviam me levado à parte alguma. E por mais que quisesse, não conseguia mover-me.

Nem meu olhar conseguia desviar a atenção de tal cena.

Não sabia por quanto tempo permaneci a apenas observar, os segundos tornaram-se minutos, os minutos horas, as horas dias…

– Que falta… de respeito… – as palavras apenas escaparam-me dos lábios, em meio aos soluços que invadiam meus pulmões.

Nenhum dos dois havia notado minha presença no local, mas ambos interromperam o que estavam fazendo e agora me fitavam surpresos.

Xena passou a me observar perplexa, a mim e as lágrimas que escorriam por meu rosto.

Ela esticou um dos braços e tentou me alcançar, todavia, dei alguns passos para trás, a fim de evitar o toque. Assim que notou meu ato, recuou seu braço para junto de si novamente.

Meus pés sustentavam-me com um enorme esforço. Para mim, nada mais importava.

Com as poucas forças que tinha, consegui cambalear até o primeiro lance de pequenas pedras que bloqueavam meu caminho. Quando dei por mim, já estava tirando as poucas peças de roupa que usava, e mergulhando meu corpo na água gélida do rio.

O frio pouco me importava naquele momento. Mergulhei totalmente, fazendo com que minha cabeça afundasse nas águas.

Fui nadando em curtas braçadas, enquanto minhas lágrimas salgadas misturavam-se à água na qual me banhava.

A sensação da água gelada contra minha pele quente cada vez mais se evidenciava. No começo o frio me era insignificante, mas a cada segundo aquela sensação parecia me ferir, tirando totalmente de mim o que me mantinha respirando.

Fechei meus olhos, para tentar conter as lágrimas. De repente, não consegui mais abri-los. Tudo se tornou escuro e eu não sabia mais onde me encontrava.

Não sentia mais a água em volta de meu corpo, muito menos o chão sob meus pés…

Foi quando senti duas mãos segurando-me pelos ombros e me sacudindo suavemente. Abri os olhos devagar, acostumando-me com a luz.

Lembrei-me devagar do que havia acontecido antes disso; ato que fez meus olhos encherem-se de lágrimas novamente.

Levei inconscientemente uma das mãos ao rosto para limpar meus olhos, que cada vez mais teimavam em chorar.

Uma brisa leve bateu contra meu corpo, lembrando-me de que eu não trajava coisa alguma. Olhei para cima, confusa, e vi que um profundo par de olhos azuis me fitava.

Sentei-me assustada, tentando tapar meu corpo com as mãos.

Esta que estivera a me observar levou uma de suas mãos a meu rosto, e retirou uma mecha de minha franja do meu olho, colocando-a para o lado. O toque fez com que minhas bochechas molhadas enrubescessem.

– Xena… O que está acontecendo…? – eu perguntei, aceitando a toalha que ela me oferecera para me cobrir.

Suas bochechas coraram.

– Eu descobri que… – levantou os olhos e lançou-me um olhar na qual nunca tive o prazer de desfrutar como fazia agora, repleto de ternura e sinceridade – Não é Marcus a pessoa que me completa…

Um frio percorreu minha espinha tamanha a intensidade do olhar que recebi. Mesmo se fosse o dia mais quente da estação, meu corpo não pararia de tremer.

Internamente, desejei com todas as minhas forças que a pessoa na qual ela se apaixonara fosse eu. Desejei poder ter nascido alguns anos antes e poder ter vivido tal experiência.

Então ela apanhou uma de minhas mãos e a segurou firme junto da sua. Seus cabelos desalinhados refletiam a luz da lua – suas belas feições reforçadas.

Meus próprios cabelos estavam ainda molhados, escorrendo por todo o resto do meu corpo.

Com sua outra mão, acariciou novamente minha bochecha. Eu apenas fechei os olhos, deixando que o rubor tomasse conta de minha face. Senti sua mão aproximar-se de minha nuca, puxando suavemente minha cabeça na direção da sua. Deixei-me ir, sabendo o que estava para acontecer. Por incrível que pudesse parecer, esse momento estivera presente em muitos de meus sonhos. Tais pensamentos fizeram com que mais uma vez minha face se tornasse rubra. Sua respiração batia levemente contra meus lábios, à medida que nos aproximávamos. Os entreabri, ansiando pelo que estava por vir…

– Gabrielle! O que está escrevendo aí? – perguntou Joxer, abraçando a jovem barda e roubando alguns pergaminhos de suas mãos.

Gabrielle acordou de seu transe e apanhou os muitos pergaminhos espalhados pelo chão.

– Eu não sabia que você escrevia romances tão bem… – disse novamente Joxer, saindo do quarto e levando consigo o último dos pergaminhos que a barda estivera escrevendo.

– ESCREVENDO?!?!