1 – Inveja
por DietrichEu estava em missão na Índia quando soube que minha mãe Xena tinha falecido. Eu e alguns companheiros estávamos ocupando pacificamente as terras de um cruel senhor da guerra, de modo a forçá-lo a dar abrigo às pessoas que não tinham onde morar. Num dia em que não estávamos sofrendo violentos ataques, um mensageiro veio até mim, carregando aquele pergaminho. Antes de abri-lo, eu já tinha sentido que não era nada de bom. Quando reconheci a letra de minha mãe Gabrielle, me entregando aquela notícia fatídica, eu não pude evitar de imediatamente perder a consciência.
Quando acordei, meu companheiro mais próximo, Dinesh, estava ao meu lado. Eu tivera, como acontecia toda noite, pesadelos terríveis sobre as pessoas que Lívia tinha matado. Ele me disse que eu tinha chorado durante o sono. Compartilhei com ele o meu pesar, e ele me amparou. Saí da tenda para andar pelo acampamento e senti, mais uma vez, o imenso peso da missão que me tinha sido enviada por um poder maior que eu. Olhei para todas aquelas pessoas, vi em cada rosto e senti em cada alma a dor e o sofrimento que carregavam. E, misturada àqueles sentimentos, a esperança que depositavam em mim.
Eu ainda segurava o pergaminho em minhas mãos. Sabia que ele provavelmente tinha viajado por meses para me encontrar. Tudo que eu queria era correr de volta para a Grécia e ficar perto da minha mãe Gabrielle, consolá-la pela imensidão de sua perda, estar ao lado dela. Mas, se tinha uma coisa que minha mãe Xena tinha provado com sua vida e com sua morte, é que nossa vida terrena não vale nada se não a colocarmos à serviço de algo maior que nós mesmos. Ela viveu sob essa lei, do início ao fim, abraçando-a até as últimas consequências. Ela seguira, dando os passos de uma guerreira, o caminho do amor que eu agora seguia.
Foi por isso que decidi que não visitaria minha mãe Gabrielle até acabar a missão que eu estava cumprindo ali, com aquelas pessoas. Dinesh tentou insistir que eu fosse imediatamente, que ele cuidaria de tudo, e eu sabia que ele cuidaria mesmo, sendo ele fiel e dedicado ao caminho do amor como eu mesma era. Mas eu não honraria o meu caminho e o amor de minha mãe Xena se eu não seguisse meu propósito até as últimas consequências, como ela tinha feito. Então, fiquei.
Foram meses até conseguirmos abrigar todas as pessoas. Tantos, tantos de nós morreram. Com a maldição que me foi dada para carregar, eu sinto o flagelo da violência que assola o mundo como se fosse em minha própria carne. Foi um período de indizível sofrimento, mas conseguimos nosso objetivo. Porém, não foi sem pesar no coração que eu entreguei minha missão nas mãos de Dinesh, pois não conseguia parar de pensar nas minhas duas mães. Eu precisava ver a que ainda vivia, ou não conseguiria ter a paz necessária para prosseguir.
Assim, me coloquei em viagem de volta para a Grécia.
Ainda não tinha conseguido acessar inteiramente o poder da força maior que me guiava, pois eu ainda tinha um longo caminho de purificação para percorrer, mas, às vezes, ela me revelava coisas. Não em sonhos, vozes ou visões, mas por meio de um saber inesperado que repentinamente se apossava de mim. Foi assim que eu soube que eu encontraria minha mãe na tribo amazona, e fui também tomada pela intuição que havia alguma outra coisa que eu precisava encontrar nesse lugar, mas não me foi revelado o que era.
Caminhei vagarosamente, pela quarta vez, por aquela floresta de árvores altas e frondosas, que continuava linda como sempre fora. Era impossível não lembrar de Lívia ao passar por ali. Muitos pensariam que Lívia não existe mais em mim, mas ela está aqui sempre, e ela grita o tempo todo. Em todas as minhas missões de paz, ela quer sair e vencer pelo poder da violência. Eu não a rejeito, nem tento calá-la, eu tento ouvir o que ela tem a dizer. É fácil ouvir a voz dela, porque agora eu sei A Verdade. É real para mim como os objetos físicos são para as pessoas.
Eu lembro de toda e cada uma das coisas que ela fez. Sinto, inclusive, que as lembranças sobre ela são ainda mais intensas do que na época que eu ainda era Lívia. Lembro com riqueza de detalhes de cada um de seus sentimentos, de seu gosto pelo sangue, pelo poder e pela violência. Penso que foi a força que me guia que a tornou tão vívida para mim. Eu preciso de Lívia para poder ser Eva.
Paro quando vejo um séquito de amazonas se aproximar de mim. Pela forma que me olham, vejo que elas sabem de tudo que aconteceu. Sabem que fui Lívia, que as escravizei, sabem que sou Eva, mensageira de Eli e que fui perdoada. Elas não gostam disso, mas não irão contra a decisão que já foi tomada. Não há muita coisa que eu possa dizer para elas, nem elas para mim. Então ouço o “siga-me” que uma delas profere, e apenas obedeço.
Quando chego na aldeia, a primeira pessoa que meus olhos focalizam é Varia, e imediatamente minhas mãos esfriam. Eu vejo o sangue da irmã dela escorrendo no chão quando cortei sua garganta, o reflexo de mim mesma nos olhos da amazona quando lhe tirei sua família, ouço novamente o baque do corpo da jovem Varia no chão, quando chutei seu queixo com tanta força que ela caiu desacordada.
Ela me fita demoradamente e se aproxima de mim. Seu rosto é impassível e sem emoções. Pode-se dizer que da última vez que nos vimos estávamos em bons termos, mas é difícil encontrar bons termos quando a pessoa à sua frente assassinou sua família diante de seus olhos. Eu sei que, quando ela me vê, pensa imediatamente em Tura. O mesmo ocorre comigo.
– Você de novo – ela diz.
– Sim – respondo, tenho dificuldade em encará-la – minha mãe Gabrielle está aqui?
– Sim. Está na cabana real – ela aponta para o local.
– Como ela está?
Vejo uma tristeza passar em seus olhos cor de âmbar.
– Oscila. Alguns dias está bem, em outros…
Meu coração esmaga ao ouvir aquilo. Fico em conflito, penso se a decisão de demorar para vir foi realmente a correta. Minha mãe estava precisando de mim, e eu a tinha deixado por uma estúpida missão. A vida é uma sequência de decisões complicadas, das quais você nunca realmente tem plena noção das consequências.
Ando em direção à cabana, e sinto o olhar de Varia me seguir. Sinto também o olhar das outras amazonas. Elas detestam minha presença ali. Minha pele parece queimar com o ódio que transpira delas. Mais uma vez, questiono minhas decisões. Me sufoca pensar no sofrimento que causei a elas. Não por culpa, o poder que me guia me ensinou que a culpa é paralisante, um sentimento inútil que te coloca no caminho da autossabotagem e te afasta da verdadeira transformação. A mudança vem do perdão e das ações. Me sufoca porque consigo me colocar no lugar delas e experimentar sua dor em mim mesma. Cerro os dentes e apresso um pouco meu passo.
Entro na cabana com os passos mais leves que sou capaz de dar. Meu coração despenca quando vejo minha mãe deitada na cama, os olhos perdidos contemplando o teto. Ela segura o chakram, que agora é dela, contra seu peito, seus dedos volteando suavemente o círculo de aço. Sei que ela está acariciando minha mãe Xena naquele momento. Uma lembrança desproporcional e deslocada me vem e me causa um baque. Vejo outro chakram diante de mim, aquele de detalhes dourados, sinto-o em meus dedos, e o dedilho quase como minha mãe faz nesse momento, o lanço e ele parte uma melancia ao meio. É outra pessoa que fui e ainda sou, e que a força que me conduz está me revelando aos poucos. Pergunto-me porque me estão sendo dadas tais memórias. Como se as de Lívia não fossem o bastante…
Eu vou me aproximando, percebo que minha mãe ainda não se deu conta da minha presença. Ela só me nota quando já estou bem perto, e seus olhos ficam enormes quando me vê. Ela sorri, mas no mesmo segundo, as lágrimas começam a escorrer de seus olhos, enormes e cheias, e logo molham seu rosto. Ela se levanta e segura meu rosto em suas mãos. Eu consigo ver que não é para mim que ela está olhando. Os olhos dela desenham as linhas do meu queixo, as maçãs do meu rosto, a cor dos meus olhos. É sua alma gêmea que ela busca em mim. Então ela me abraça com força, e eu devolvo na mesma intensidade.
– Eu sinto tanto, mãe – eu digo. As lágrimas que eu vinha segurando finalmente encontram um caminho de saída. Cai sobre mim de uma vez, como um golpe violento e pesado, a percepção do quão pouco eu convivi com a mulher que me deu a vida tantas vezes. Do quão pouco eu pude ser sua filha. Eu oscilo em meus pés e Gabrielle me sustenta, ao mesmo tempo que eu também a sustento.
– Eu também – diz ela, com aquele sussurro que só ela sabe fazer – eu também, Eva.
Sentamo-nos na cama, eu a abraço e ela descansa a cabeça em meu ombro, ao mesmo tempo em que eu me apoio nela. Por um momento, apenas choramos juntas. Quase não consigo suportar, pois minha dor está misturada com a dela. Existe um buraco imenso dentro do peito dela agora, e eu consigo vê-lo quase como uma imagem física, como conseguia ver seu coração sendo tomado pelas trevas do inferno. A parte de mim que é Lívia amaldiçoa o poder superior que ainda não me concedeu a graça de saber curar do mesmo jeito que Eli fazia. Queria curar minha mãe do abismo que eu via em seu interior.
Nos afastamos e ela me lança aquele olhar que finalmente me vê, Eva. É um olhar complicado, esguio. Existe um amontoado de mágoas e feridas antigas que resvalam muito além do que eu fiz quando era Lívia. É o que Callisto fez com ela, é a outra filha que ela vê em mim. Sempre existiu uma barreira entre eu e minha mãe Gabrielle, e eu daria tudo, até abandonaria minha missão divina se isso derrubasse aquele muro e me permitisse finalmente entrar no coração dela.
Minha mãe Xena foi rápida em me amar e me aceitar, não só porque eu tinha saído de seu ventre, mas porque os pecados do nosso passado eram tão parecidos. Gabrielle estava longe de ser uma pessoa inocente à dureza da vida, era uma mulher sábia e experiente, mas ela nunca tinha ultrapassado os limites que eu e minha mãe tínhamos, não uma, mas tantas vezes. Ela nunca cometera genocídio, nunca assassinara a sangue frio, nunca sentira o prazer de matar simplesmente por que dá vontade. Eram sentimentos sombrios que eu tinha em comum só com minha mãe Xena. E tanto essa parte de mim como de minha mãe Xena tinham sido causa de imenso sofrimento para Gabrielle.
Mas ela se esforça, como sempre se esforçou. Ela sorri e acaricia meu cabelo, me pergunta o que andei fazendo. Eu, meio constrangida e um tanto desesperada para ganhar o amor daquela mulher, conto das missões de paz que tenho promovido em todos os lugares pelos quais viajei, e como cada vez mais pessoas abraçam o caminho da não-violência. Fico querendo que ela sinta orgulho de mim.
Me percebo, subitamente, compartilhando minhas angústias como jamais compartilhei com ninguém, nem mesmo com Dinesh. Conto sobre as difíceis decisões que tenho que tomar para me manter fiel ao meu caminho. Tem algo na forma que minha mãe Gabrielle me olha que faz meu coração derramar-se. Eu entendo porque minha mãe a amou tanto.
– Você é tão filha de sua mãe – ela diz, seu sorriso era triste.
Eu sorrio de volta. Eu queria implorar: por favor, me chama de filha também! mas permaneço calada. Ela continua:
– Você escolhe o bem maior. Como ela fez. Provavelmente, um dia vou te perder também.
Agora é mágoa e dor que ecoam em sua voz, e também algo de acusação. Apenas seguro as mãos dela nas minhas, não tem nada que eu possa dizer para consolá-la, pois ela está certa. O tipo de problema em que eu me meto provavelmente me tirará cedo desse mundo. É meio impressionante e contraditório como, para atingir o bem maior, temos que aprender um certo egoísmo. Para cumprir minha missão nessa vida, tenho que ignorar os sentimentos da pessoa que é mais importante para mim nesse mundo. O absurdo dessa percepção me faz rir.
– Do que está rindo? – ela pergunta.
– Apenas algumas ideias idiotas que aparecem em minha cabeça.
Ela balança a cabeça para os lados, e me olha como uma mãe olharia uma criança malcriada. Meu coração palpita ao ver esse olhar nela. Peço que ela me conte o que tem feito. Descubro, surpresa, que logo após minha mãe Xena morrer, ela foi cumprir uma missão no Egito. Ela estava fugindo do luto, e afundou-se em batalhas sangrentas. Até que não pôde mais se esconder de si mesma, e tinha vindo ficar com as amazonas. Foi quando ela finalmente deixou o peso da perda cair sobre ela, e se permitiu sentir a dor da qual estivera fugindo. Eu a abraço e beijo sua testa quando as lágrimas voltam a cair de seus olhos.
Seu choro aumenta de volume, é intenso e dolorido. Ela soluça e seu corpo se sacode em meus braços, eu uso toda minha força para segurá-la, pois ela fraquejou, ela está entregue à dor naquela hora. Percebo que a perda dela é maior que a minha. Eu amo minha mãe Xena com todas as minhas forças, mas, para mim, ela sempre foi mais uma ideia do que uma pessoa real. Para Gabrielle, é a mulher que ela passou anos ao lado. Sinto inveja de Gabrielle nesse momento. Eu queria ter convivido o suficiente com minha mãe Xena para sentir uma angústia do tamanho da que ela sente agora.
Ela para de chorar, e vejo que ela está exausta. Ela se deita na cama e fecha os olhos, me deito ao seu lado, seguro sua mão e ela aperta-a. Tento alcançar o vazio e a pureza de amor que são necessários para curar uma pessoa, me tornar um canal condutor para que a força superior alivie a dor de minha mãe, mas não acontece. Eu me frustro e sinto raiva, mas não solto a mão dela até ela adormecer.
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