2 – Um jardim selvagem
por DietrichMe levanto e saio da cabana. Enquanto caminho pela aldeia em direção à floresta, mais uma vez os olhares daquelas mulheres me escrutinam, descascam minha pele, e eu sangro. Vou em passos rápidos, quero ficar acampada na floresta, não quero impor minha presença a elas mais que o absolutamente necessário. Quando estou afastada o bastante, estendo meu cobertor no chão, ao lado de uma árvore frondosa, e acendo uma pequena fogueira. Muito rápido, percebo que não estou só. Posso não lutar mais, mas todos meus sentidos continuam tão aguçados quanto os da guerreira formidável que eu fui. Essas habilidades me salvaram da morte muitas vezes, pois eu era capaz de perceber o perigo com antecedência e fugir. Era Lívia me protegendo.
No entanto, a pessoa que me observa não é uma ameaça. Ela ainda está longe, e parou de se aproximar. Está de tocaia, me olhando com atenção, sem imaginar que sei onde está e que me observa. Ela está certíssima em achar que não a percebo, pois ela é furtiva como uma onça e uma guerreira tão incrível quanto eu fora. Se eu não fosse tão filha de minha mãe, provavelmente não a perceberia.
Eu a deixo observar-me. Colho frutas e raízes, e as asso na fogueira. O cheiro dos vegetais assados logo toma o ar, e minha boca enche de água. Quando me sento no cobertor e ponho os vegetais no prato, resolvo acabar com o mistério:
– Você quer um pouco? – pergunto em voz alta para ela poder me escutar.
Dou uma risada quando ouço um galho partir, ela provavelmente tomou um susto imenso. Os passos, que ela agora não faz questão de disfarçar, se aproximam, e vejo Varia surgir de entre as árvores. Ela me olha, meio desconfiada, mas percebo que ela também ficou impressionada com o fato de que eu estava consciente de sua presença. Estendo o prato de vegetais em sua direção. Ela pega uma rodela de batata, ergue uma sobrancelha e morde apenas o cantinho.
– Onde está a carne? – ela pergunta.
– Não como animais – respondo, e ela solta um riso debochado. Dessa vez, morde um pedaço maior da batata – você pode se sentar, se quiser, não precisa comer em pé – me afasto no meu cobertor, deixando um bom espaço para ela. Ela titubeia por um segundo, mas se acomoda. Está tensa, rígida, em alerta. Eu coloco o prato entre nós, para que ela possa se servir à vontade.
– Não tem graça sem carne – ela diz. Ela não olha para mim, ela olha para a fogueira. Eu aproveito para olhar bem para ela. Ela continua igualzinha desde a última vez que a vi, alta, forte, imponente, usando aquela roupa tipicamente amazona que deixava pouco para a imaginação. Na última vez que estive aqui, ela, por ironia do destino, usava um penteado muito parecido com o que eu usava quando eu era Lívia. Agora usava os cabelos soltos, adornado por tranças. Penso que ela está linda, e minha respiração acelera um pouco. Depois de um longo silêncio, ela continua:
– Porque está aqui? Separamos uma cabana para você – ela finalmente olha para mim e sou obrigada a interromper minha análise detalhada do perfil dela.
– Prefiro ficar aqui – respondo, baixando os olhos.
– É falta de educação negar nossa hospitalidade – ela diz. Ela tem um tom brincalhão e atrevido em sua voz. Eu lembrava desse tom na voz dela, antes de ela descobrir que eu era Lívia. Tínhamos quase nos conectado, quase conseguido uma camaradagem, antes de tudo desabar quando ela descobriu minha verdadeira identidade.
– Não será a pior coisa que fiz – respondo.
Ela fica séria e desvia os olhos. Recosta-se na árvore, flexiona uma perna e apoia o braço no joelho, estendendo a outra perna. Contempla fixamente a fogueira. Ela quer falar algo comigo, e desconfio o que seja, mas vou deixá-la tomar a iniciativa. Após um longo momento de silêncio, os vegetais assados quase no fim, ela pergunta:
– Você lembra dela? – sua voz é quase inaudível.
Não precisei interrogar para saber de quem ela estava falando.
– Ela tinha os cabelos pretos e muito lisos. Os olhos delas eram mais escuros que os seus, e eram ferozes e desafiantes. A blusa dela era azulada, e tinha detalhes cor de vinho. Cortei o lado esquerdo da garganta dela, e ela caiu sobre suas pernas. Eu te chutei, e você desmaiou. Achei que você tinha morrido. Eu fiquei muito irritada pelos sacos de ouro que eu ia perder com a morte dela. Tão irritada, que nem me incomodei em conferir se você estava viva ou não, apenas queria sair dali o mais rápido possível. Muito depois, no barco, pensei que tinha sido impulsiva, que talvez você estivesse viva e eu pudesse vendê-la.
Eu disse tudo isso olhando em seus olhos, que foram aos poucos marejando. A respiração dela aumenta de velocidade, suas mãos tremem. Acho que ela quer me matar ali mesmo. Mas ela engole em seco e se recompõe.
– Com que calma você fala do seu passado – ela diz – não achei que lembrasse dela, afinal…
– Afinal eu matei tantas pessoas – eu completo – lembro de cada uma delas. Faz parte da minha maldição.
– Maldição?
Me arrependo de ter usado aquela palavra, não sei se devo explicar. Varia não sabe exatamente como me tornei Eva. É o tipo de história que só serve para quem já passou por algo semelhante. É impossível explicar a alguém o que é sentir o toque daquilo que é transcendente e inominável, o que é ter A Verdade, tão simples e tão poderosa, disposta diante de seus olhos num milésimo de segundo. Mas, sinto que ela merece que eu tente, pelo menos, formular algumas palavras. Ela veio aqui para isso.
– A mesma força que me tirou do caminho da violência – explico – fez todas as memórias de Lívia transformarem-se em pinturas na minha mente. Posso ver todas, quase como se estivessem diante de mim nesse momento. Desde a primeira à última pessoa que matei, as que encarei antes de roubar-lhes a vida, as que passaram de relance. As que matei individualmente, as que pereceram no meio da guerra.
Ela me encara, e vejo choque em seus olhos.
– É uma maldição terrível – ela diz.
Me surpreendo com as palavras dela. Não era uma reação comum. Nas poucas vezes que tentei falar disso, as pessoas diziam que tinham inveja, que queriam lembrar. Ela continua:
– Se eu lembrasse de cada pessoa que matei, jamais poderia ser uma guerreira. Se eu lembrasse do rosto de Tura, não poderia continuar vivendo. O esquecimento é uma benção dos deuses.
– Sim – concordo, feliz em saber que ela me entende ao menos um pouco.
– É incompreensível para mim porque esse tal deus único escolheria justamente você para espalhar a mensagem dele.
– Para mim também.
– Ele não lhe disse o porquê?
– Não. Ele revela o que quer, quando quer, da forma que quer.
– E você simplesmente… segue e aceita.
– Sim.
– Como uma ovelhinha.
Dou uma risada. É ofensivo, mas ela não está errada. Novamente, me encontro naquele lugar solitário, onde é impossível explicar isso para alguém que não experimentou.
– Exatamente.
– E em troca dessa obediência, ele nem carne deixa você comer. É muito estranho. Você deve ter muita certeza do que está fazendo para se submeter a isso.
– Eu duvido o tempo todo. Às vezes quero abandonar tudo.
– Quando quis abandonar tudo?
– Todas as vezes que alguém morreu por consequência da não-violência.
– Mas você continua. Por que?
– Porque eu lembro da Verdade.
– Que verdade?
– Que o amor é chave de todas as coisas.
Ela ri mais uma vez. Eu não me incomodo, eu sei que o que falo soa alienígena.
– Ouvir justo você falando isso… é simplesmente cômico. Como o amor seria a chave? O mundo é violento e cruel. É um jardim selvagem. Ou você mata, ou morre.
– O amor é a única expressão da perfeição divina que temos acesso – eu mordo o último vegetal – não precisa ir muito longe para perceber. Você ama sua irmã, você ama as amazonas e tenho certeza que sabe o poder que esse amor tem. A Verdade consiste apenas em estender esse amor à todas as criaturas vivas. O ódio destrói. Gera um ciclo de violência que só pode ser interrompido pela não-violência.
– Isso que você está falando nunca será real. Todos somos animais sedentos de poder, capazes do pior.
– E do melhor. Como, por exemplo, quando você escolheu me perdoar. Se tivesse me executado, minha mãe se vingaria. Alguém vingaria vocês, matando minha mãe. Depois minha mãe seria vingada. Mas você escolheu outra coisa.
– Negar a violência é negar a vida – ela retruca – para me manter viva, tenho que consumir. Consumir é destruir. Depois, serei consumida. E assim a terra continua.
Sorrio. A imagem que ela evoca é quase bonita em sua crueldade simples.
– Acho que não conseguiremos concordar nesse ponto – digo.
A noite já quase fechou completamente, os últimos resquícios da claridade solar estão desaparecendo. Eu acho lindo esse momento limítrofe entre a noite e o dia. Os olhos parecem que ficam confusos, os contornos das coisas às vezes ficam definidos, no momento seguinte, viram manchas difusas. O que ilumina o rosto de Varia agora é a luz da fogueira, que ela voltou a observar. Seu corpo está menos tenso, sua cabeça encostada na árvore está mais solta. A cor castanha de suas íris adquire um tom muito particular, que eu acho fascinante. Repentinamente, seus olhos se estreitam e ela volta a me encarar.
– Se eu decidisse matá-la agora, o que faria?
– Tentaria fugir. Mas provavelmente não conseguiria por muito tempo. Minha força e meus músculos já não são mais os mesmos.
– Mas não reagiria de forma alguma?
– Não.
Ela fecha os olhos, ri e balança a cabeça para os lados.
– Você é maluca, Eva.
– Você provavelmente está certa – estou maravilhada por ela ter me chamado por meu nome. Ela já tinha dito meu nome quando fez meu julgamento, mas nunca tinha me chamado de Eva numa conversa pessoal e com tanta naturalidade.
Ela se levanta para ir embora e eu lamento por dentro. De repente, não quero ficar sozinha na floresta.
– Caso mude de ideia, a cabana ao lado da de Gabrielle está reservada para você – ela começa a caminhar e a vejo desaparecer na escuridão da noite.
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