3 – Você vai falhar mais de uma vez
por DietrichEu abro os olhos no meio da noite, acordada por uma outra presença. Novamente, não é uma ameaça. Ela deita ao meu lado e me abraça com todas as forças, eu logo sinto as lágrimas molharem minhas costas. Eu me viro e a aconchego em meu colo, e ela chora tanto, tanto… Ela me olha de novo daquele jeito, tentando ver ela em meu rosto, e são minhas lágrimas que escorrem. Quando seu choro finalmente se acalma, ela me diz:
– Eva… eu preciso te dizer uma coisa.
Eu tremo. Eu sinto tanto pavor, porque eu sei o que ela quer conversar. Temo que ela me abandone, que eu fique, definitivamente, sem mãe nenhuma. Mas eu sabia que esse dia ia chegar. E provavelmente só chegou porque minha mãe Xena morreu. Ela jamais tocaria nesse assunto, não por medo de me magoar, mas por medo de magoar sua alma gêmea, de interferir no amor entre elas.
– Às vezes, é muito difícil para mim amar você – ela diz.
Tento não demonstrar o quanto aquelas palavras me machucam, mas é como se ela estivesse enfiando agulhas em mim.
– Eu lembro quando Callisto matou Perdicas – ela prossegue – foi uma das primeiras vezes que senti a sede de sangue manchar minha alma. Eu sei que não foi você, mas…
– Fui eu – seguro a mão dela, minhas lágrimas aumentam. Cada vez que eu pisco, por um milésimo de segundo, aparece na escuridão de minhas pálpebras o corpo caído de Gabrielle enquanto eu ergo a espada para atingi-la, minha mãe Xena me atacando, a espada manchada com o sangue dele, ouço o grito daquela Gabrielle diferente, de cabelos compridos – eu sou ela, mãe.
Ela ri e acaricia meu rosto.
– De novo, você está igual à sua mãe. Para ela, não bastava carregar nas costas as coisas que ela tinha feito, ela carregava também as coisas que não tinha feito. Callisto matou Perdicas, não você. Eu sentir raiva disso não é sobre você, é sobre mim, meus rancores.
Ela desvia os olhos dos meus por um momento, depois volta a me fitar, e continua:
– Depois, eu tive uma filha. Um deus sombrio a colocou dentro de mim. Eu tinha acabado de tirar uma vida e ter aquele bebê em meus braços restaurou uma parte da minha alma que tinha sido destruída quando matei Meridian. Ela era minha Esperança. E a pessoa que eu amava mais que tudo nessa vida olhou para mim e me pediu para matá-la. Eu enganei Xena, e minhas ações resultaram na morte de Solan. Acabei tendo que matar minha filha. Mais de uma vez.
A voz dela tremia. Eu permanecia calada. Não haviam palavras possíveis.
– Depois eu tive que ver Xena ficar grávida de você, uma criança de origem misteriosa, como tinha sido o meu bebê. E Xena simplesmente me disse que você era boa, e eu aceitei. Sem questionar.
Ela deu um suspiro muito fundo e fechou os olhos. Parecia estar invocando forças para continuar.
– Você nasceu, e você era uma criaturinha tão linda e perfeita como tinha sido minha Esperança. Eu nunca tinha visto Xena tão feliz. Eu te amei tanto, não apenas por você ser esse bebê maravilhoso, chorona, comilona, mas também pelo tanto que você fazia meu amor feliz. Eu lembro de te segurar no colo, cantar para você, e de te agradecer por trazer tanta alegria a ela. Mesmo os deuses nos perseguindo não tiravam aquele brilho nos olhos dela quando te via. Mas chegou ao ponto em que se tornou impossível de lidar.
Ela passou a mão nos cabelos curtos e prosseguiu:
– A vi lutando com todas as forças para defender você. Quando você era bebê e quando te reencontramos depois do nosso sono de vinte e cinco anos. Ela ficou tão quebrada ao vê-la sendo Lívia. Foi mais uma coisa que não era culpa dela que ela colocou nas próprias costas. Mas, ela lutou por você até o fim. Mesmo depois de você ter matado Joxer.
Os olhos dela se cravaram em mim. Eu vi a raiva, a dor. Quase não aguentei encará-la.
– Você matou Joxer, Eva. Ele era minha família.
– Sim, mãe. Eu o matei – sussurro. Eu realmente queria que ela me esbofeteasse naquele momento, que ela gritasse comigo. Mas ela só me olhava, e falava:
– Eu vi Xena, no último segundo, escolher morrer ao invés de matá-la. Ela não teve forças para fazer a escolha que eu tive que fazer. E você ia matá-la, Eva. Você era uma mulher adulta e poderosa, não um bebê, como era Esperança. Se Eli não tivesse agido, você teria matado sua mãe.
Eu não consigo mais suportar. Baixo os olhos e escondo o rosto nas mãos, as lágrimas escorrem livremente e eu soluço. Ela me abraça, mas eu mal aguento seu toque. Gabrielle é uma pessoa das mais misteriosas. Ela está me dizendo as coisas mais duras que já ouvi de alguém, e também é ela que me consola.
– Sim, eu teria – digo, e é a mais absoluta verdade.
– Mas ele interviu – ela continua, seu queixo descansa no topo da minha cabeça enquanto eu choro – e agora eu via você deixando de ser Lívia e se tornando a mensageira do homem no qual eu uma vez tivera tanta fé, e no qual eu ainda acredito, apesar de não ser, nessa vida, capaz de seguir seu caminho. Você, que tinha matado tantas pessoas, você, que era a prova ambulante do quanto eu falhara com a minha filha, do quanto eu ainda estava magoada com Xena pelo que ela tinha me feito passar, você, que tinha matado Joxer, andava o caminho do amor.
Ela segura meu queixo, me faz erguer a cabeça e olhar para ela. Suas palavras continuam jorrando:
– As Fúrias não tiveram um trabalho muito árduo para me fazer enfiar meu sai em você. E Xena era o principal motivo de eu fazer o meu melhor para conviver com você. E agora ela não está mais aqui.
Eu penso que é agora. É agora que perderei minha outra mãe. Os dedos dela passam suavemente por meus cabelos, tão pretos como os da minha mãe Xena. Ela vai me dizer que eu não precisava me incomodar em ter vindo vê-la. Que ela estava melhor sem mim.
– Eu lembro da primeira vez que a vi – ela prossegue – salvando-nos dos soldados de Draco. Ela era a mulher mais linda e forte que eu já tinha visto. Eu tinha ouvido vagamente falar sobre Xena, a Princesa Guerreira, uma mulher que tinha sido imensamente cruel, embora eu não soubesse exatamente que crueldades seriam essas. Eu era uma jovem tola, e decidi segui-la. Todas as vezes que eu descobria algo sobre seu passado, parte de mim se recusava a crer que era a mesma mulher que eu tinha na minha frente. Por um tempo, era como se existissem duas Xenas, uma má e uma boa, e eu só conhecesse a boa. Tivemos que passar por muitas coisas para que eu percebesse que só havia uma Xena, que a mulher que eu tinha diante de mim era uma combinação de luz e escuridão e sempre seria, assim como eu sou também luz e escuridão. E, como se fosse possível, isso só fez meu amor por ela crescer ainda mais.
Ela continua afagando meus cabelos. A voz dela continua calma enquanto fala comigo. Eu parei de chorar e apenas escuto tudo aquilo, meu nível de medo está tão grande que até as lágrimas sumiram. Eu estou resignada, eu sempre soube que meu futuro era solitário.
– Da mesma forma que não existe uma Xena má e uma boa, não existe Lívia e Eva. Você é Lívia também, e tudo que ela fez, foi você.
Ela nem imagina o quanto está certa.
– Xena queria separar Lívia e Eva, ela queria desesperadamente acreditar que você era apenas Eva. Quando ela te defendeu no tribunal das amazonas, tentou colocar tudo nas costas de Ares, mas era você fazendo tudo aquilo. Eu tentei argumentar como ela, porque estava tentando te salvar, por ela. Mas não consegui. E, mais uma vez, ela foi te salvar.
As lágrimas mais uma vez enchem os olhos dela e eu sequer tenho coragem de consolá-la. Não me sinto no direito. Eu continuo tremendo da cabeça aos pés.
– Eu a amava mais que qualquer coisa nesse mundo ou em outro – ela pega minha mão e a beija – ela fez coisas tão terríveis, e quanto mais eu a entendia, mais eu a amava, com toda aquela escuridão. Eu nunca deixei de acreditar na luz que havia nela, mesmo quando ela não acreditava, e eu estava certa, ela era feita de violência e amor, tudo ao mesmo tempo. E é por isso que amo você também, Eva. Eu amo você por inúmeros motivos. Eu amo você porque acredito na sua luz, com todas as minhas forças, como eu acreditava na luz de Xena, na luz da minha Esperança. Eu amo você porque você é um pedacinho de Xena na terra, eu a vejo em você, e isso me enche de alegria. Eu amo você porque, mesmo com tudo que você fez, você está dando seu melhor para ser uma força do amor na terra. Você vai falhar mais de uma vez, e eu também. Mas eu sempre estarei com você, como estive ao lado de sua mãe, e como não pude estar ao lado da minha Esperança. Você é minha filha linda.
Eu pensei que nunca mais experimentaria nada tão poderoso quanto o toque do divino, mas, ao ouvir Gabrielle me dizer aquilo, eu percebi o quanto estava enganada. Ela me apertou em seus braços e eu a abracei com força, sequer consegui chorar. Eu senti meu amor por ela se derramar por meus poros, e senti o dela me envolver como uma brisa fresca num dia de calor. Mais uma vez, fui arrebatada pelo poder da Verdade, pela certeza do meu caminho. Não havia nada mais poderoso que essa força.
– Eu te amo, mãe – eu falei, e dormimos nos braços uma da outra.
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